terça-feira, 25 de novembro de 2025

ASTRID CABRAL, POR SANDRA GODINHO

Fonte da imagem: aqui
Astrid Cabral nasceu em Manaus, AM, onde fez os primeiros estudos e integrou o movimento renovador Clube da Madrugada. Foi morar no Rio de Janeiro ainda quando adolescente. Graduada em Letras Neolatinas na atual UFRJ. Lecionou língua e literatura no ensino médio e na Universidade de Brasília, onde integrou a primeira turma de docentes saindo em 1965 devido ao golpe militar. Em 1968 ingressou por concurso no Itamaraty, tendo servido como Oficial de Chancelaria em Brasília, Beirute, Rio e Chicago. Com a anistia, em 1988 foi reintegrada à UnB. Ao longo de sua vida profissional desempenhou os mais variados trabalhos, fora e dentro da área cultural. Detentora de importantes prêmios, participa de numerosas antologias no Brasil e no exterior. Colabora com assiduidade em jornais e revistas especializadas. Viúva do poeta Afonso Félix de Sousa, é mãe de cinco filhos. Fonte: http://www.jornaldepoesia.jor.br/astridcabral.html 



A PROSA NA OBRA "ALAMEDA" DE ASTRID CABRAL 

Sandra Godinho

A primeira vez que tomei conhecimento de Alameda, a obra inaugural de Astrid Cabral publicada em 1963, foi através do meu querido e falecido amigo José Benedito dos Santos que, sabendo que eu escrevia um romance cujo narrador era uma árvore, deu-me o livro de presente. O efeito da escrita da autora em mim foi devastador e indelével. Meu querido amigo me fez entender a grandeza de Astrid e, além disso, reconhecer que era uma mulher à frente do seu tempo.

Primeiro, porque ela deu protagonismo ao mundo natural. Não que não houvesse outros autores que mencionassem matas e florestas. Inferno Verde, livro de contos de Alberto Rangel publicado em 1908, e A Selva, romance de Ferreira de Castro publicado em 1930, já mencionavam o mundo natural, mas sempre como cenário, selvagem, inóspito e imenso. Astrid não somente deu protagonismo ao mundo natural, mas também relacionou o mundo natural ao humano, fazendo uma analogia à nossa própria vida. Ao personificar grãos de feijão, laranjas, rosas, papoulas, folhas, orquídeas etc., atribuindo-lhes características humanas, a autora fugiu do que poderia ser considerada uma literatura regional, algo que na tradição literária sempre foi considerada menor. Além disso, Astrid antecipa uma consciência ecológica que só tomou vulto no Brasil em meados dos anos 1980, quando a consciência nacional sobre as questões ambientais passou a ser levada a sério, corroborada por estudos científicos de maior envergadura. Não fosse isso o bastante, Astrid trouxe temáticas femininas às suas narrativas, especialmente ao tratar a terra como um “cemitério e viveiro de sementes”, reforçando a função maternal, equiparando a terra ao útero feminino; trata-se agora da mãe-terra e da mãe-natureza, mas não só. Astrid, ao abordar temas como a beleza e a reprodução, e refutando-as como o ápice das funções femininas, evidencia o ativismo feminista em suas narrativas.

Outro item que me chamou a atenção foi o título escolhido pela autora, Alameda, que é, afinal, um caminho constituído por árvores plantadas em fileiras. O que se intui através desta escolha é que realmente Astrid não quis retratar a natureza selvagem, mas uma domesticada, singularizada e culturalizada. Ao discorrer sobre esta natureza domesticada, Astrid, por analogia, fala da nossa própria domesticação frente aos valores impostos por nossa sociedade.

Alameda traz-nos 20 histórias triviais, singelas e colhidas do nosso cotidiano. Através delas, Astrid faz profundas reflexões filosóficas e psicológicas sobre nosso próprio existir. São narrativas cujos temas tratam do ciclo da vida, da finitude e do recomeço, da provisoriedade de tudo, da impermanência e da permanência, esta última vista sob o viés da beleza e da reprodução.

Em Destino, por exemplo, uma plantinha se encontra dentro de um vaso, tomando sol num canto da janela, até que um gato descuidado a derruba, destruindo o vaso que se parte em inúmeros cacos. A empregada recolhe os cacos, a planta e os atira pela janela. Esta plantinha, nomeada por Astrid de “brotinho”, traz a primeira conexão com o humano/a mulher, visto que brotinho era uma gíria da época que fazia referência a uma moça. Temos aqui também os temas caros a Astrid, que nos remete à finitude da vida, da morte que nos colhe ao acaso, ainda que no texto esteja presente certa mensagem de esperança: apesar das nossas prisões, somos abençoados por simplesmente existir. Além disso, se atentarmos para o trecho da obra: “Era o sol que lhe punha aquelas grandes sardas douradas, o ar todo faceiro. Também a pose graciosa com que distribuíra seus membros, já agora multiplicados, era convenientemente adequada ao banho de sol [...] A cútis fina, queimada de tempo, engelhava-se até a queda final, que seria mansa, ao arrepio do primeiro vento”, reparamos que a verve poética de Astrid já se faz presente nas assonâncias, aliterações, nas metáforas, nas imagens e no ritmo das frases.

Imagem Pinterest
No segundo conto, Arvoreta, árvore, arvoreta, é interessante notar como Astrid, no próprio título, transmite o andar do sol pelo céu, projetando a sombra de uma árvore, que se alonga no começo da manhã, fica justa ao meio-dia e torna a se alongar no final da tarde. É o sol que banha a árvore, que lhe dá luz, mas a árvore só se enxerga através da sua sombra, sempre dentro da própria individualidade, exacerbada, orgulhosa, altiva e iludida pelo olhar alheio. Por mais que a árvore se iluda e se ache exuberante, será sempre prisioneira de si mesma, presa às próprias raízes. Observando o trecho da narrativa: “Quando fazia sol, via-se fotografada ao longo da calçada, e via-se também crescer e diminuir, a imagem apagar e acender. Gostava da brincadeira de verão, a divertida dinâmica de sua sombra a crescer e minguar num só dia – arvoreta, árvore, arvoreta. Mas tudo era jogo visual, o percurso do sol acionava a silhueta. Depois de certo tempo, não mais se iludia. [...] Bem que gostaria de escapar-se, transpor-se além de suas fronteiras a fim de fruir nova dimensão, mas não ousava”, notamos a poética pungente da autora na sua prosa.

Imagem Pinterest
O conto A praça discorre sobre uma praça que foi inaugurada pelo prefeito e que, passada a euforia dos primeiros passeios, é desprezada por seus frequentadores. Aqui, a autora define a praça como sendo a terra remodelada pelo prefeito, o chão que aceita tudo e, após algum tempo, torna-se desprezado pelos homens. A mãe-natureza, tal qual as mulheres, também é ignorada pelos homens. Expressões presentes no texto como ‘pise de mansinho’ ou ´cuide de seu jardim’, evidenciam a antecipação de uma consciência ambiental. Nos trechos seguintes: “Elas, (as plantas), não viviam em função dos homens, nem deles dependiam, como era o empenho de muitos fazer supor. Descaso, desprezo, nada lhes alterava o destino da espécie” [...] “ Era portanto certo que (as plantas) existiam para autossatisfações, donas de si mesmas e tão livres dentro do repouso como o ar que as oxigenava. O que havia era abuso, exorbitância do espírito dominador dos homens”, se substituirmos ‘as plantas’ por ‘as mulheres’, a analogia ao mundo feminino ainda é pertinente.

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No conto Laranja de sobremesa, temos outra história simples e trivial, discorrendo sobre uma laranja que está sobre um prato. Ao ser servida de sobremesa, reflete sobre o ciclo da vida: ela vem de uma árvore que deu fruto, que virou semente, que virará árvore novamente. Nós, assim como a laranja, seremos consumidos pelo tempo, mas deixaremos nossas sementes sobre a terra. Astrid retrata a finitude da vida, o recomeço e também nossa submissão ao tempo. A laranja aguarda seu destino, assim como todos nós. A beleza e o viço são precários.

No texto intitulado A cerca, ela que é “uma árvore sob outra forma’, reflete sobre sua vida, está entregue agora às intempéries e aos cupins, e se sente culpada pela morte de seu amigo gato, que caiu de pé em um dos seus sarrafos pontiagudos. De sua abundância de árvore, forte e firme sobre a terra, ela está reduzida a um corpo estéril capaz de causar a morte de outro ser. Escrita em tom melancólico, a cerca fala sobre seu inconformismo e sobre sua degradação, refletindo sobre a inutilidade de tudo, convencendo-se de que sua vida foi apenas um acaso. Os temas neste conto são o sentido da vida e a inevitabilidade da morte. Apesar do tom melancólico, o que me chama a atenção nesta narrativa é a ironia empregada pela autora: a árvore firme e forte se tornou uma cerca que mal para em pé. A partir desta história aparente e linear, Astrid traz subtextos potentes: a despeito da estabilidade e da firmeza que um ser pode ter, todos podem desmoronar de uma hora para outra, ou: é suposto que uma cerca contenha as coisas, mas a cerca de Astrid não contém nada, nem a passagem do tempo, nem as ações alheias, ou: a cerca lamenta ter perdido as referências do passado, de quando era árvore, mas para viver o presente, o passado não importa, ou: nutrir um sentimento melancólico previamente à morte é vivenciar a morte em si mesma, ou: o vínculo com as nossas raízes é o que nos fortalece.

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O conto A aventura dos crótons fala de uma planta ornamental, o cróton, que, crescendo belo num canteiro graças às podas do jardineiro, passa a invejar as heras que “pintam de verde as paredes da casa da esquina”, crescendo horizontalmente para todos os lados, em total liberdade. O cróton quer se aventurar, então roga à natureza que lhe conceda este desejo. A natureza parece atendê-lo, lançando uma chuva torrencial que liberta suas raízes do solo e o leva, mas, sem ter como fincar-se à terra, é levado pelas águas e sucumbe. O texto fala sobre deixar uma vida cercada de segurança, já que a “tenacidade do jardineiro zelava pela dócil submissão de todos”, mas limitada e cheia de marasmo. Astrid refere-se à impermanência, à liberdade e ao risco de viver. Podemos fazer outras reflexões, como: a inveja e o anseio por outras terras estão presentes tanto nas plantas quanto nos seres humanos, ou: o resultado de todo esforço é uma surpresa, nem sempre agradável, ou:  o  “jardim do lado de lá”, pode ser apenas uma ilusão, ou: é preciso dar valor à terra onde se vive, ou: o desejo de mudar pode gerar uma frustração imensa, é preciso ter os meios, não só o desejo, ou: o desgosto em habitar um lugar que não se deseja faz perder todo o sentido e o encanto da vida. Neste texto, há também uma consciência da heterogeneidade, do outro e do lugar que ele ocupa.

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No conto Queixa contra o vento, uma quaresmeira reclama dos caprichos do tempo, sempre lutando contra a ameaça de tombar e sucumbir. Neste trecho da obra “O vento fica aí a soprar sem cessar. Sem saber do meu medo, da gana de fechá-lo em algum lugar. Dentro de um morro, de uma gruta. Afinal, que pretensão pensar nisso. Logo eu, que não me aguento em pé, que sofro de câimbras, que não resisto ao seu menor suspiro”, notamos o uso de rimas, cadência das frases, assonâncias e aliterações, evidenciando a forte verve poética de Astrid, presente desde esta obra inaugural.

O conto O parque fala de um parque cujas “árvores espichadas, esguias, e arbustos baixotes, corpulentos, mantêm-se atados pela tranquilidade de pedra. Ali a vida não se pui com o uso, não implica amanhãs e mortes, mas trata-se de uma paz de pedra, marmórea e mortal. Neste mundo de pedra, é sempre noite. O tema de Astrid nesta narrativa é a domesticação da própria existência. Este viver de modo mecânico, sem notar se é dia ou noite, sem atentar para o que realmente importa, é um não viver.

No conto Avispiscis pulcherrima, Astrid fala de uma árvore imaginada, uma árvore fabulosa, com a capacidade fantástica de se adaptar a tudo, aos charcos, ao deserto, às geleiras dos polos e que é de uma beleza inigualável. Apesar da exuberância, ela tem frutos estéreis, incapaz de deixar descendência, motivo de suas lágrimas. A temática de Astrid nesta narrativa diz respeito à validação da beleza pela capacidade de reprodução. A uma planta (mantendo a analogia com relação à mulher) não basta ser vistosa sem reproduzir, é necessário deixar sementes e descendência para ser validada sob o olhar dos humanos. São temas intrinsicamente femininos.

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Na narrativa A agonia da rosa, Astrid discorre sobre rosas que acabaram de florescer e, estando no esplendor de sua beleza, são colhidas e colocadas como um ramalhete dentro de uma caixa de celofane. Aqui, a beleza vira acessório, serve somente para dar alegria e prazer a alguém e, portanto, tem vida curta. A essência feminina é comprimida em um receptáculo. Aprisionada, ela murcha e seca em definitivo. A autora faz uma crítica à superficialidade, à vida de aparências e à provisoriedade de tudo.

No texto Um grão de feijão e sua história, o conto mais lindo desta coletânea na minha opinião, grãos de feijão estão sendo selecionados para serem cozidos, mas um grão é deixado de lado por não atender às expectativas da empregada. Ele é jogado pela janela e vai parar numa terra fértil, enchendo-se de esperança, julgando que vai brotar, enraizar e reproduzir, até que a empregada, que tinha o mau hábito de jogar coisas pela janela, derrama um jato de água quente sobre ele, desfazendo seu futuro. A partir desta história singela, podemos pensar em inúmeras inferências, tais como: só inteiros temos o ‘direito’ de ‘estar no mundo’, ou: a finitude nos torna tão vulneráveis quanto um grão de feijão, ou: mesmo uma planta é capaz de sentir, ou: para ‘ser’ algo ou alguém é preciso ocupar um determinado lugar, ou: é na terra que está a vida; é ela que preserva toda nossa descendência, ou: é preciso criar raízes para florescer. Astrid abre portas para vários subtextos e várias interpretações.

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Passando ao último conto da coletânea, encontramos À sombra da papouleira, onde uma folha seca e outra verde conversam à sombra da papouleira, dentro do jardim de uma casa. Elas escutam a aproximação do jardineiro e se surpreendem ao saber que o dono quer derrubar a papouleira para fazer um novo jardim. Então, as folhas se revoltam, tomando ciência de que a vida é breve e que, aos homens, “era comum o hábito de derrubar plantas e até florestas inteiras. A preocupação de Astrid com o meio-ambiente e com a prática dos homens de devastar se faz notória. Num mundo onde “a vida é um rosário de pequenas mortes”, só resistindo em coletivo podemos sobreviver.

A grandiosidade da obra inaugural de Astrid é notável e pujante, seja nos temas, seja na sua prosa poética, na sua visão à frente do seu tempo, na sua preocupação com o feminismo e nas questões ambientais, fazendo os leitores refletirem sobre a vida através de histórias singelas do nosso cotidiano, lhe reservando o merecido lugar de destaque na literatura amazonense e na literatura brasileira contemporânea. Leiam Astrid!

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Arquivo da autora


Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

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