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sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE





FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|03

A POÉTICA DO ESPAÇO NA LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: A CASA – O INFINITO PARTICULAR

 POR ISA CORGOSINHO

 

Esses móveis trazem em si uma espécie de estética do oculto. (...), basta uma observação preliminar: uma gaveta vazia é inimaginável. Pode apenas ser pensada. E, para nós, que temos que descrever o que se imagina antes do que se conhece, o que se sonha antes do que se verifica, todos os armários estão cheios.                                                                    

(BACHELARD, 1994, p. 21)

A epidemia COVID--19 que assombra a humanidade nos cinco cantos do mundo, enlutando os continentes com as cifras desestabilizadoras de milhares de mortes, aumentou, sobremaneira, a responsabilidade das mulheres pelo coletivo familiar. O duro e pesado fardo feminino agravou-se ainda mais pelo desemprego que atinge os mais vulneráveis na já penalizada classe trabalhadora. No mundo todo, mas principalmente no Brasil, o feminicídio atinge índices alarmantes, fomentado pela familícia fascista que desgoverna o país. 

Os movimentos sociais criam meios e modos de organização para confrontar o caos sanitário e o total descaso governamental que impera de norte ao sul do país. As organizações de resistência, que em contexto de normalidade expressavam-se nas manifestações de rua, apropriam-se das mídias virtuais, que ganham força devido às medidas de segurança. O Projeto Enluaradas nasce nesse complexo e desafiador contexto, com posições estéticas vinculadas ao ético, com militância firmada nos movimentos feministas e em outras bandeiras dos movimentos culturais.

Se pensarmos num lugar de fala, ele certamente será traçado em geografia complexa, numa espiral centrípeta de comunicações poéticas; pontilhado, marcado por fragmentos incisivos de um discurso amoroso afirmativo e transgressor.

A arte é o front principal da resistência do coletivo Mulherio das Letras e suas ramificações, como o Projeto Enluaradas: a poesia é a força motriz do processo criativo. A partir de chamadas para publicações nos diversos Grupos do Mulherio, poetas dos diferentes cantos do mundo escancaram suas gavetas e lançam, enviam seus poemas para publicação e divulgação em meios impressos e virtuais. Outras ações são desencadeadas com o propósito de fortalecer os canais de criação, escuta, circulação e trocas entre as poetas participantes.      

Embora recente, o Projeto Enluaradas marca posição de protagonista, vanguarda no crescente fluxo da literatura feminina contemporânea, e já nos oferece profícuas possiblidades reflexivas sobre suas coletâneas de poesias. Ao nos debruçarmos sobre alguns poemas do projeto, ocorreu-nos a vontade de refletir teoricamente sobre a constituição de algumas imagens reincidentes na poética feminina que merecem um início de conversa. 

Além das marcas ideológicas, a riqueza imagética que transborda dos versos das enluaradas nos movimentou em direção a uma obra que parece se localizar na constelação das filhas de Selene: A poética do espaço, de Gaston Bachelard.  Por que essa obra mobiliza nossa atenção? Primeiro, porque a casa, local por excelência de abrigo, tornou-se, no contexto pandêmico, um complexo sistema espacial: isolamento, lazer, esconderijo, prisão, escritório, escola, ateliê, retiro, oficina e, sobretudo, território propício aos vários tipos de violência e neurose. Segundo, porque a casa voltou a ser habitada vinte e quatro horas pela família que ali estava quando começou a pandemia. O isolamento, por mais tristonho que seja, pode nos dar um ganho inesperado, e as dádivas dele são inúmeras: aguça a intuição, erradica as lamentações, elimina as fraquezas com os golpes, proporciona um insight penetrante, assegura o poder incisivo da observação e de visão de perspectiva jamais alcançadas nas pessoas que o negam e o rejeitam. Finalmente, porque foi nesse espaço de isolamento, tirando proveito de suas dádivas, que parte significativa de mulheres se debruçou sobre a escrita criativa, buscando na linguagem literária o refazimento do caos em cosmos.      

Na Poética do espaço, Bachelard apresenta a casa como um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Constrói uma ideia de casa que diverge da noção de um objeto, apresenta uma reflexão sobre as relações simbólicas pelos trilhos da relação realidade e imaginação, na concepção de um ideário fenomenológico. Para um fenomenólogo, as nuanças de nosso apego a um lugar predileto não são colorações superficiais suplementares. É necessário dizer como habitamos o nosso espaço vital em conformidade com as dialéticas da vida, como nos enraizamos, cotidianamente, “num canto do mundo”.   

 

Porque a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a acepção do termo.  

(BACHELARD, 1993, p. 24)

 

Destacam-se, nesses trilhos, as relações oníricas que simbolicamente transcendem os espaços físico e material, normalmente pensados em seus predicados utilitários, e nos leva a interpretar a ideia de que “todo espaço verdadeiramente habitado traz a essência da noção de casa” (1993, p. 25).  Interessa-nos muito a fala de Bachelard quando afirma que na mais interminável das dialéticas, o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, por meio do pensamento e do sonho.

É nessa forma expandida da simbologia da casa que nos orientamos para interpretar os sentidos enunciativos da poesia: abrigos, aposentos, refúgio – elementos de unificação e integração do homem frente ao mundo de dispersão dos sonhos, das lembranças e do pensamento; avassalados por inundações de imagens exteriores e pelo medo da morte, enlutados por perdas de entes queridos.   

Bachelard esclarece que não é apenas em sua positividade que a casa é verdadeiramente vivida, não é somente no momento presente que reconhecemos os seus benefícios. Os verdadeiros bem-estares têm um passado; a antiga locução: “Levamos para a casa nova nossos deuses domésticos” tem mil variantes (BACHELARD, 1994, p. 25). E o devaneio se aprofunda de tal modo que, para o sonhador do lar, um âmbito imemorial se abre para além da mais antiga memória. A casa, como o fogo, a água, nos permitirá evocar luzes fugidias de devaneio que iluminam a síntese do imemorial com a lembrança. Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam dissociar, ambas trabalham para aprofundamento recíproco e constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança com a imagem.  De tal modo, a casa não vive somente no dia a dia, mas no curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os tesouros dos dias antigos. Por outro lado, a casa possui espaços que representam o refúgio das emoções - sótão, porão, corredores – que são desvendados pelo estudo psicológico sistemático dos lugares físicos da nossa vida íntima. A literatura feminina está carregada de enunciados poéticos que associam a intimidade aos espaços físicos da casa e suas adjacências.  Assim compreendida, a casa configura um corpo de imagens que dão ao indivíduo razões e ilusões de estabilidade, constância. É preciso reinventar constantemente sua realidade: distinguir suas possíveis imagens é perseguir a alma da casa; perseguir uma psicologia da casa.  O resultado dessa ordenação está na representação da casa como ordenação de imagens que a torna um ser vertical, muito ligada à ideia de consciência ou, por outro lado, a imagem da casa como um ser concentrado em que se enfatiza a “consciência de centralidade”. A relação consciente e inconsciente - realidade da casa e do espaço de forma concreta e realidade do espaço de forma abstrata - indicam a relação junguiana com a realidade e seus símbolos.

A poética do espaço de Bachelard oferece-nos reflexões importantes para a interpretação de alguns poemas, que situam o lirismo numa relação estreita com as dimensões metafóricas da casa e as ambivalências dos seres ali representados. Nota-se que, na poesia, o espaço adquire o caráter de poética ao estabelecer relações simbólicas que envolvem os dramas e aspirações dos seres em seus espaços habitáveis ou desejados, sonhados. Esse mundo simbólico funde elementos do eu lírico a espaços que transcendem o material e acenam para representações arquetípicas junguianas.  Trata-se não apenas do consciente, mas das relações entre espaço e inconsciente, em que a leitura da realidade transcende para camadas psicológicas que denotam e conotam informações cruzadas sobre a relação entre o ser e o espaço.  São os poetas e escritores que nos levam a refletir sobre a diversidade de imagens associadas à memória, à infância, à passagem do tempo e à precariedade do mundo de representações. O canto nos leva à tomada de consciência frente ao universo e à significação da vida, a partir de pequenos olhares sobre espaços dos detalhes e da simplicidade.  Por outro lado, a imensidão reflete uma busca existencial numa espécie de meditação exaltada, cuja transação da espacialidade poética produz infinitos particulares, em buscas de grandezas relativas. É nessa tentativa de compreensão de espaços, pela via de uma poética, que se chega a uma noção mais amplificada dessas relações e as aproximam das reflexões filosóficas e psicanalíticas e que buscam na imagética e na fenomenologia os alicerces para as complexas relações entre o homem e o espaço.

 

C(ASAS)

                Nic Cardeal

 

Eu tenho c(asas) que me habitam os olhos,

verdadeiras vilas com quintais por trás das retinas,

telhados que acolhem chuvas esparsas,

uns ventos, uns pássaros em descanso das asas,

chaminés exalando fumaças em busca de nuvens espessas.

 

Quisera pudesse trazer os meninos e meninas perdidas

a habitar minhas casas por trás das retinas

que corressem livres, cantantes, felizes

– esses meninos e essas meninas –

entre o balanço das redes e a colheita das amoras,

fazendo estrelas brilhantes nos céus dos meus olhos depois do poente...

 

Eu tenho paraísos secretos depois dos desertos dos meus pensamentos,

depois das costas, das omoplatas,

dos contornos das minhas estradas internas tão tortas,

passeios noturnos indo dar na janela da alma,

quem sabe ali o mundo estivesse sempre bonito

e eu pudesse esconder toda essa ‘minha gente’ a salvo.

 

Então nós faríamos festas nas vilas, nas casas, nas folhas, nos ventos,

e ‘os meus meninos e as minhas meninas’ seriam crianças felizes,

sem medos, sem tempo, sem susto, sem limbo,

amarelinhas desenhadas nas bordas, nas beiras,

no centro, nos cirros, nos nimbos,

cirandas e rodas e poesias e prosas,

risadas rosadas, espécies de esperanças eternas

em casas etéreas com tetos tão ternos,

deixando bem longe as tristezas do mundo concreto...

Eu tenho um vaso de sonhos brotando na sacada da alma encharcada

– depois da lama, além do lótus –

haverá de nos caber um respirar em amor

onde ‘meus meninos e minhas meninas’

sejam sementes e brotos e flores e frutos

de um deus mais decente.

 

O eu lírico expressa no signo casa um continente que contém asas, aprisionadas na ambivalência dos parênteses, mas libertas pelas janelas do olhar, que não está doente dos olhos.  A imagem da casa desdobra-se em vilas com quintais projetados nas asas do desejo da refração. A casa é imaginada como um ser vertical. Ela se eleva. É um dos apelos à nossa consciência de verticalidade. Os elementos telhados, chaminés, vento projetam a casa como espaço de ascendência, o telhado metonímico onde descansam os pássaros, em meio às intempéries. Na vida do homem, a casa afasta contingências. Ela mantém o homem através das tempestades do céu e das tempestades da vida. É corpo e é alma, segundo Bachelard. Sem ela, a infância é um ser disperso, desprovido, denuncia o poema. A casa é imaginada como um ser concentrado. Ela nos leva a uma consciência de centralidade, ela é o primeiro mundo do ser humano. Antes de ser jogado no mundo, o homem é colocado no berço da casa.  Mas os meninos e as meninas estão ao relento, desapropriados do grande berço que é a casa e suas adjacências lúdicas para a infância. O ser é um valor e reclama um tratamento digno, e a vida começa bem, começa fechada, protegida, agasalhada e feliz no regaço de uma casa. É o que os olhos da poeta desejam, para estarem plenos de estrelas.  O desejo de acolhimento expressa-se na denúncia da injustiça reinante. A infância sem-teto, ainda mais diminuída no mundo exterior, despossuída dos valores da intimidade de um lar, mas também das possibilidades oníricas que esse espaço favorece, que as experiências dos sentidos podem oferecer.  O corpo metamorfoseia-se expressando o sentimento do mundo, prepara-se para acolhimento do universo particular “de toda essa 'minha gente'.”   Por fim, a integração com a mãe Terra, a grande casa-útero, onde se processa o ciclo vida-morte-vida. A transmutação da matéria humana convertida na árvore da vida, mas protegida por outro paradigma de justiça divina – é uma metafísica que passa por cima das preliminares em que o ser é o bem-estar, em que o ser humano é colocado num bem-estar, no bem-estar associado primitivamente ao ser.   

A casa cosmológica no poema de Nic Cardeal está em luta, em ação terrena pelo acolhimento social dos vulneráveis. Bachelard diz em seus devaneios que uma metafísica completa, que englobe a consciência e o inconsciente, deve deixar no interior o privilégio de seus valores.  No interior do ser, no ser do interior, um calor acolhe o ser, envolve-o. O filósofo reafirma que o ser deveria reinar numa espécie de paraíso terrestre da matéria, fundido na doçura de uma matéria adequada. Parece, diz ele, que nesse paraíso material o ser mergulha no alimento, é cumulado de todos os bens materiais. Para além das metafísicas, o poema de Cardeal denuncia a vulnerabilidade de toda essa nossa gente sob um sistema que se mantém às custas de graves, medonhas injustiças sociais.  O lúcido anseio, desejo de libertar as crianças da precariedade material, em dialógicos cruzamentos artísticos e cósmicos faz coro com a música Comida, dos Titãs  diversão, arte e a liberdade de viver em casas etéreas com tetos, tecidos por uma sonoridade do ser, a poesia fala no limiar do ser, ser-Tão.  

 

INSPIRAÇÃO

                                             Patrícia Cacau

Mulheres

somos iguais em tudo que é invisível aos olhos.

E nas lágrimas nos encontramos.

Nada é tão banal

E o pouco é tão importante quanto o essencial

Um universo em fios

unindo-se para reconstrução do grande ventre de sustentação

da divina mãe.

Eu sou porque muitas foram,

Tu serás e outras serão após.

Recebi e agora entrego o que foi por herança.

Permanece aquele que se entrega.

Olhado pra ti, me vejo cada vez mais mulher.

E o que antes foi solto agora está ligado.

Passado e presente reconectando com o futuro.

Seja um ser que reconhece o seu papel nessa fazedura.

Independente do corpo que habita.

Não se distraia, seja MULHER!


O poema de Cacau é um canto ancestral da sororidade. A casa aqui se desenha na ciranda das mulheres sábias. Seus versos conjugam, evocam todas las madres, as muitas mães para que nos orientem a perseguir a profunda vida criativa. Resgata o conceito da mãe selvagem que, Segundo Clarissa Pinkola Estés, não deve jamais ser abandonado, pois a mulher estaria abandonando sua própria natureza profunda, “a que detém todo o conhecimento, todos os sacos de sementes, todas as agulhas de espinheiro para os remendos, todos os remédios para o trabalho e o descanso, para o amor e a esperança” (ESTÉS, 1994, pp. 228-229).  A mãe selvagem é a escola na qual nascemos, a escola na qual aprendemos, na qual também ensinamos. Os rituais de ancestralidade são retomados nos versos de Inspiração: embora as mulheres mais jovens tenham idade suficiente para gerar sua cria (seus projetos artísticos) e bons instintos que a orientam corretamente, elas precisam do estímulo, da atenção e do apoio das “deusas-mães”. Durante muitos séculos, as velhas das tribos e aldeias compunham um sistema básico de nutrição de mulher-para-mulher que apoiava em especial as mães jovens, ensinando-lhes a alimentar, por sua vez, as psiques e as almas de seus filhos. As mulheres mais velhas eram repositórios do comportamento e do conhecimento instintivo e podiam transmitir os mesmos para as mais jovens. Elas passavam esses conhecimentos por meio de palavras, mas também pelo olhar, um toque com a palma da mão, um sussurro ou um tipo especial de abraço que diz “sinto carinho por você”.  O self selvagem que nos espreita, no poema de Cacau, é também aquele que nos convoca a resistir aos condicionamentos de uma cultura perversamente adoentada pelo sistema patriarcal. É preciso confrontar esse sistema com arrojada sensibilidade, e a criatividade é a capacidade de sensibilizar tudo que nos cerca. A poesia faz a escolha entre pensamentos, ideias, sentimentos, ação e reação, cria um ser de linguagem capaz de reações inigualáveis, que transmite ímpeto, paixão e determinação. É a ciranda das mulheres sábias em pleno processo de criação.          

 

MATRIOSKAS 

                              Cátia Castilho Simon

 

Antes de mim

Houve um rosário

de sim

 

Em clausuras

ad infinitum

formatado

 

No eterno

jogo

das matrioska

 

As Matrioskas russas constituem-se de uma série de bonecas, feitas geralmente de madeira, colocadas umas dentro das outras, da maior (exterior) até a menor (a única que não é oca). São pintadas com cores vivas e desenhos variados. A palavra provém do diminutivo do nome próprio Matriona. A imagem das Matrioskas pode ser entendida como pequenas casas, metáfora onde habitam nossas ancestrais. O poema de Simon pode ser compreendido no jogo de ressonâncias, que se dispersam nos diferentes planos de nossa vida no mundo; e a repercussão, que nos convida a um aprofundamento de nossa própria existência. Na ressonância ouvimos o poema; na repercussão o falamos, ele é nosso. A morfologia das bonecas, o oco das ressonâncias das matriarcas nos obriga, nos impulsiona à repercussão, ao aprofundamento de uma escuta ancestral e o repensar de nossa própria existência. A exuberância e a profundidade impulsionadas pelo jogo dialógico da ressonância e repercussão reanimam as profundezas em nosso ser. É depois da repercussão que podemos experimentar ressonâncias, repercussões sentimentais, recordações do nosso passado.  Mas a imagem atinge as profundezas antes de emocionar a superfície.          

Para compreensão dos consentimentos, forjados na clausura, é necessário o restabelecimento da intimidade com a natureza instintiva. A metáfora das Matrioskas nos revela o aprendizado das histórias das quais fazemos parte, não existem fora de nós. Imaginemos uma longa história pela porta de escuta de cada uma das Matrioskas, responsável por novas gerações de mulheres. A última geração representada pelo eu lírico que se define “Antes de mim” denuncia o enclausuramento ad infinitum, mas a própria denúncia do rosário de consentimentos, abre canais através das mulheres. É uma forma de luta da mulher selvagem para reerguer suas descendentes, por mais que sejam proibidas, silenciadas, podadas e enfraquecidas, torturadas, rotuladas de loucas, perigosas e de outros depreciativos, elas voltam à superfície. É o que revela o ser pungente da linguagem poética de resistência do feminino selvagem. Essa imagem, que a leitura do poema Matrioskas nos oferece, torna-se realmente nossa; enraíza-se em nós mesmas.  Como almeja o saudoso poeta e semiólogo Décio Pignatari, a imagem poética torna-se um ser novo da nossa linguagem; expressa-nos, tornando-nos aquilo que ela expressa – isto é, ela é ao mesmo tempo um devir de expressão e uma devir de nosso ser.     

 

SÉCULOS

                                    Flavia Ferrari

 

Querer não basta

É preciso rastejar pelo território sem trincheiras

Sob as balas que cruzam e tiram a pele

 

Sonhar de nada vale

É preciso subir ao palco e assassinar o rei

Desligar o som e encerrar o show

 

Viver não é suficiente

É preciso morrer cem vezes

E outras tantas

Para que o tempo seja generoso

 

E restaure o humano revolucionário

Que possa enfim descansar

Sem sentinelas

Sobre a terra que lhe foi devolvida

 

As imagens poéticas lançadas pela poesia de Ferrari colocam a emergência da linguagem, que está, sobremaneira, acima da linguagem significante. Ao vivenciar os versos, temos a revigorante experiência da emergência. Ainda que seja uma emergência de pequeno alcance, essas emergências renovam-se; a poesia força a linguagem a um estado de emergência. A vida se expõe nela pela sua vivacidade; a poesia reclama, para o descanso do humano num porvir generoso, que as ações sejam realizadas na dialética inseparável das ações: querer, sonhar e viver são complementares e urgentes. Para confrontar o estático espetáculo do mundo dos déspotas, a ênfase é na coragem que se arrisca nos territórios do perigo e avança sem idealizações no desmonte do palco: O rei é morto! Um grande verso pode ter uma grande influência na alma de uma língua, prova disso é a acertada alusão desta expressão no poema. Ele desperta imagens apagadas no show emudecido da vida e sanciona a imprevisibilidade da palavra. A imprevisibilidade intencional das palavras, além de ativar a tonificação da vida, é uma aprendizagem da liberdade, de retomada da terra, a grande casa-útero. Que força, que potência a imaginação poética encontra na ironia sobre os totalitarismos! Aqui a poesia coloca a liberdade no próprio corpo da linguagem; ratifica seu lugar como um fenômeno de liberdade e justiça social. É preciso perseverar na cíclica jornada de lutas: só assim o humano revolucionário pode descansar, sem medo, sobre a parte que lhe cabe desse latifúndio.       


ALCATEIO-ME

                           Marta Cortezão


uma alcateia me habita

multitudinária presença

que, em noite de lua cheia,

me devora e me expande

me dilacera e me liberta

me uiva e me assume

alcateia-me

em espetáculo ritualístico...


a loba já não corre

pode vislumbrar

o lume dos anseios 

Pode apreciar e uivar poesia

aos cantos cinzas do mundo

gozando em alcateia


O poema de Cortezão evoca as questões da imaginação poética, enfatizando que é impossível receber o benefício psíquico da poesia sem a participação dialógica destas duas funções do psiquismo humano: o real e o irreal. Cortezão oferece-nos uma arquetípica terapêutica de ritmanálise pelo poema que tece, transfigura e conjuga o real e o irreal, que dinamiza a linguagem pela dupla atividade da significação e da poesia. O engajamento, na poesia, do ser imaginante é tal que ele deixa de ser simplesmente o sujeito do neologismo verbal alcateio-me. As condições reais já não são determinantes. Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos. Os mais alienantes dos automatismos, os automatismos da linguagem são quebrados, rompidos quando penetramos nos domínios da sublimação pura dos versos de Alcateio-me.      

O poema realiza uma conjugação profunda com a natureza do feminino selvagem. A alcateia é a casa da mulher: ela viceja na mais profunda alma-psique das mulheres. O ritual de devoração, transmutação acontece na linguagem poética e no mundo dos sentidos. A poeta conclama a presença do arquétipo de La Loba, aquela que conhece o passado pessoal e o passado remoto, pois ela vem sobrevivendo gerações afora e é mais velha que o tempo: pode apreciar e uivar poesia/aos cantos cinza do mundo. Segundo Clarissa Pinkola, ela é a memória arquivada das intenções femininas: pode vislumbrar/ o lume dos anseios.  Pinkola assegura, em seus estudos, que a biologia dos lobos Canis Lupus e Canis Rufus são como a história das mulheres, naquilo a que se refere à sua vivacidade e à sua labuta. O poema de Cortezão reafirma características psíquicas comuns às mulheres e aos lobos: percepção aguçada pelos ciclos da lua, onde ocorre a transmutação da mulher em loba, o renascimento antropofágico da mulher loba com extrema coragem e determinação feroz.   Outro ponto de conexão entre lobos e mulheres é a capacidade intuitiva e a adaptação a circunstâncias em constante mutação. O poema está sutilmente denunciando o processo predatório contra os lobos e as mulheres por parte daqueles que os acossam e perseguem, atribuindo-lhes adjetivos ameaçadores como voracidade e agressividade. No entanto, o processo de entrega do corpo feminino ao gozo coletivo da alcateia faz coro com a dimensão cíclica de Gaia: tudo que vive morre, tudo que morre vive, viceja na comunicação poética. A poesia de Cortezão nos coloca em sintonia com o corpo selvagem: aquele que tem dois pares de olhos, um para a visão do prosaico, o outro para a vidência, os segredos; dois pares de orelhas, um para melhor escutar o som do mundo, o outro para ouvir as delicadezas e a fome da alma; dois tipos de força, a dos músculos e a inquebrantável força da alma. Encontramos essa potência do feminino selvagem no corpo multilíngue da poesia, que a amazonense, filha da floresta e do rio, nos oferece.      

 

ORAÇÃO

Francis Mary

 

Rasga meu peito depressa

Planta na minha terra

Árvores fortes a me enraizarem.

 

Dá-me de beber da seiva

Que alimenta as abelhas.

Desperta-me com o tecido das maritacas

em seus gritos.

 

Liberta-me nas corridas dos veados

Solitários nas estradas.

Pinta-me com o colorido alegre das araras

E me acalma com as águas dos igarapés.

 

Joga em meu colo, em minha sombra, a luz.

Acorda a minha vontade de amar

e no rio do amor incondicional

inteiramente ser e navegar!


A ORAÇÃO de Mary nos apresenta a imagem da casa como um grande habitat natural. A poética do espaço se configura na dialética do grande e do pequeno, nas experiências sinestésicas com natureza, no espaço onde a imaginação desfruta, sem o intermédio das ideias, quase naturalmente, o relativismo da grandeza. A imensidão no poema encena não apenas a meditação diante do espetáculo grandioso da natureza, mas a relação simbiótica do ser, as imagens aparecem com seus valores ontológicos, a dialética do interno e do externo, a impressão da imensidão fica impregnada em nós. Aqui encontramos uma participação mais íntima e integrada dos movimentos das imagens. Os elementos da fauna e flora avançam sobre nossos sentidos: ouvimos os sons, vemos as cores e tocamos as texturas generosas das imagens sinestésicas do poema. A fêmea despe sua vestimenta civilizatória e reivindica seu habitat natural; a integração profunda com a mãe terra; a necessidade de restabelecer o contato profundo com natureza selvagem. Existe aí o desejo de desapegar-se do mundo da superfície, onde reina soberano o ego civilizado.    

O corpo oferece-se num ritual de vida-morte-vida. O mergulho no útero da terra e seus mistérios representa os ciclos de renovação e os portais iniciáticos para um renascimento profundo. Gaia é a grande casa onde habita o feminino selvagem, e o seu desejo é formar um grande santuário de união com o sagrado.  Acordar a vontade de amar é um pedido para o restabelecimento da pele da alma, a cura profunda para o corpo anestesiado por um processo desenfreado de doações exaustivas: tudo que o corpo precisa para alcançar a sublimação líquida do rio e seu destino de correnteza, deslizamento.   

 

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Trad. Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

ESTÉS, Clarissa. P. Mulheres que correm com os lobos: mitos e arquétipos da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.     

 





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quinta-feira, 21 de outubro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|02


A PRESENÇA DO FEMININO SELVAGEM NO PROJETO ENLUARADAS: 'SE ESSA LUA FOSSE NOSSA' E 'UMA CIRANDA DE DEUSAS'

 

 POR ISA CORGOSINHO

 

    Além das condições objetivas sociais, culturais e políticas, que impulsionam o atual fluxo da criação literária feminina, o resgate do feminino selvagem parece ser uma exigência nesses tempos de embrutecimento dos sentidos e deturpações dos espaços sagrados. A lua, com todas as significâncias herdadas de épocas atemporais na literatura, é uma metáfora-lugar que as organizadoras Marta Cortezão e Patrícia Cacau criaram, convite afetuoso às mulheres para que retirem seus escritos criativos das gavetas e ofereçam à Deusa Selene, que ocupem os espaços poéticos virtuais, como meios de acolhimento, circulação e publicação.  

    As temáticas são livres, mas é possível observar um fio sutil da potência norteadora da mulher selvagem nos processos criativos. O que vem a ser essa mulher selvagem? Segundo Clarissa Pinkola Estés[1], do ponto de vista arquetípico, bem como na tradição de contadoras de histórias, ela é a alma feminina, é a origem do feminino, envolve o ser alfa matrilinear.   Ela é tudo que for instintivo, tanto no mundo visível quanto no mundo oculto; pode-se nomeá-la de natureza básica, inata; na psicanálise, a partir de diversas perspectivas, de id, de Self, de natureza medial; na biologia seria chamada de natureza típica ou fundamental.  Nas mulheres que saem às ruas em protestos contra o feminicídio, os assassinatos de seus filhos, confrontando instituições autoritárias e repressivas, assumidamente patriarcais, sexistas e misóginas, está a mulher selvagem com a garra da coragem, é ela que se enfurece diante das injustiças.

    Mas em meio às lutas, entrega-nos os instrumentos de que precisamos e nos impulsiona a sermos multilíngues: fluentes no linguajar da paixão e erotismo, dos sonhos, da prosa e da poesia. A mulher selvagem desdobra-se em ideias, sentimentos, impulsos e recordações, é a que gira numa roda enorme, é a criadora dos ciclos. Podemos encontrá-la nas matas, nos rios, caminhando pelos subúrbios e praias, perambulando pelas cidades, guetos, vive entre as mulheres do campo, nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, nas ruas, nos presídios e também entre as refugiadas. Ela está ali, mesmo nos momentos de longa depressão, pânico, solidão. Quando saem do exílio de si mesmas, as mulheres se lançam em voos livres, em leituras profundas, prazerosas, nos exercícios vigorosos dos processos de criação: resolvem aprender a dançar, cantar, pintar, plantar, desenhar e escrever novos sentidos para um mundo em exaustão.

    Na escuta atenta da interpretação, observamos que as questões da alma feminina estão subjacentes aos seus escritos criativos. As mulheres descobrem na arte da escrita a beleza como ato de resistência, e se postam em confronto à cultura que tenta esculpi-las num formato intelectual mais aceitável para os detentores do poder. A ambivalência da mulher selvagem constitui a força criadora que objetiva a recuperação e o resgate da potência psíquica da mulher. É ela que transforma suas obras em seres de linguagem autônomos e transformadores.

    O convite às mulheres a bailarem sob a potência lunar, significa considerar o uso de suas palavras como insubstituíveis instrumentos para abertura de passagens e reencontro com o nosso parentesco com o absoluto, com a nossa dimensão numinosa, misteriosa. Guiadas pelos ciclos lunares, podemos nos proteger de relacionamentos de qualquer natureza que se tornaram espectrais pela negligência, domesticação ou violência.     

    A ciranda com a deusas relembra o movimento de uma dança circular atemporal, que une as mãos e os corpos das mulheres, geralmente em torno de um ou mais elementos como o fogo, a água, as árvores etc. A ciranda nos convida a dançar com as nossas ancestrais, e elas nos ensinam que, por meio de seus corpos, as mulheres vivem muito de perto a natureza da vida-morte-vida, da natureza cíclica de tudo. O canto, proferido pelas mulheres em roda, são capazes de curar ferimentos profundos, são alentos mágicos que restauram os corpos. Dizem as mitologias que os mortos podem ser ressuscitados ou invocados por meio do canto. O canto com as deusas pode ser uma fonte misteriosa, que gera vida, criação. Segundo Pinkola, na literatura oral, diz-se que tudo que tem seiva tem canto.        

    Na companhia das Mulheres enluaradas e na Ciranda de deusas, encontramos alteridades complementares do feminino contemporâneo nas digitais poéticas, prismáticas formas e conteúdos apresentados em saraus, tertúlias, blogs, publicações virtuais e impressas.

    É para liberar nossa seiva criativa no fazer poético que a deusa amazonense Marta Cortezão e a deusa nordestina Patrícia Cacau nos convidam. Agradecidas e lisonjeadas, aceitamos o convite para bailar sob a lua a ciranda das deusas no processo criativo e edificante da poesia!      

    Deixo aqui um canto poético para bailarmos juntas. A mãe Terra e sua filha Natureza guiam essa ciranda de mulheres criativas. Eis aqui parte do pulsante legado do feminino selvagem que habita entre nós.         

           

Ciranda das Deusas líricas 

Para ouvir o podcast do poema, clique AQUI

Eu sou Gaia Gaia Gaia
de marré marré marré

Cantavam em roda
as deusas da Terra
descalças felizes
cheirando excitante rapé

Eu sou Pachamama
de marré marré marré

Respondiam as filhas da Baba Yaga
vestidas de peles
brincos de ossos
chales de teias giravam no afoxé!

Quero vossas filhas
mágicas humanas terráqueas
Lilith, Eva, Maria
Evoé!

A deusa Gaia acatava:
levem a epifânica Clarice, Tarcila, Pagu, Muylaert
Hilst vai na frente com falos, ondas de gozo, ouvindo Elis, Cássia Eller, Rita Lee na maré!

Não esqueçam Marielle que da luta nunca arredou pé!
Todas acolhidas no quarto de despejo de Carolina
com boa prosa, quente café!

Dou-lhe em troca, Baba dizia:
telúrica Cora, vertiginosa Isadora Duncan, cosmopolitas Ana Cristina e  Carla Camurati, acompanhada de Joaquina!

Entre também nessa roda, Adriana, meu Calcanhotto de Aquiles!
A roda sagrada das deusas 
girando plena e lírica

Eu de pobre muito rica
de marré marré marré
essas deusas me habitam
na lua rosa minguante cheia

Seja fria a pólis doente perversa feia
deito no colo delas
meu corpo exausto revigora
e a mente inquieta vagueia

As cordas do coração aceleram
e os olhos não mais pranteiam!

Isa Corgosinho
26/05/2021

 


[1] ESTÉS, Clarissa P. Mulheres que correm com lobos. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

 


 

 


segunda-feira, 4 de outubro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|01


LITERATURA E RESISTÊNCIA NO COLETIVO MULHERIO DAS LETRAS


 POR ISA CORGOSINHO


O mundo que se apresenta aos nossos olhos nos dá a impressão que deixamos de ser contemporâneos de nós mesmos. As fronteiras se revelam indefinidas, a partir de mudanças estruturais advindas da globalização, principalmente da economia, e do desenvolvimento da tecnociência, marcos onde muitos teóricos localizam a modernidade tardia ou a fase pós-moderna. Desde o final do século passado, lembra-nos Stuart Hall[1], abriu-se um intenso debate sobre a crise de identidade do sujeito, mobilizando diferentes áreas do conhecimento na compreensão dos deslocamentos das identidades culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade.


Os cenários políticos no mundo transformaram-se substancialmente com os novos movimentos sociais. No Brasil, desde a década de 60, mas principalmente a partir da década 80, o final da ditadura, as eleições diretas, a Constituição de 1988 e as lutas dos trabalhadores e estudantes fortaleceram os movimentos já existentes e abriram caminhos para outros:  movimentos feministas, movimentos negros, movimentos ecológicos, movimento LGBTQIA+, CUT, MST, MTST, CONLUTAS, movimentos dos povos originários, movimentos estudantis etc.    


É nessa ampla mobilização que os conceitos de mulher e feminismo desdobram-se na descentralização de identidades, abraçando o pluralismo defendido nas ações militantes, nos debates, pesquisas e políticas sobre a questão de gênero.  O movimento LGBTQIA+ avança sobre as demarcações biológicas, assumindo uma historicidade móvel, avessa à identidade unificada do nascimento à morte.  A arte acompanha essa movimentação de ideias como campo fértil para várias expressões artísticas sobre identidade e gênero.


O terror causado pela pandemia ainda assombra o planeta desde o início em 2020. As mulheres confrontam a morte (que toma conta da terra com a voracidade de milhões de foices insaciáveis, abrindo crateras profundas nos corações dos brasileiros com a cifra genocida de mais de 590.508 pessoas mortas em menos de dois anos de pandemia), vítimas ao mesmo tempo da COVID 19 e de um projeto fascista que estimula o feminicídio e desgoverna o país desde as eleições de 2018.     


É fruto do cruzamento desses desafiantes contextos históricos parte significativa da criação literária feminina que circula hoje, seja em prosa ou poesia. Assim como o mito de Perseu, as mulheres voam com suas sandálias aladas sobre um mundo que se petrificou e que parece não poupar nenhum aspecto da vida. Para cortar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o que há de mais leve, como as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que só se pode revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho de seu escudo de bronze, só assim ele consegue decepar a cabeça da Górgona. As mulheres escritoras parecem, à semelhança de Italo Calvino[2], encontrar nesse mito a alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição e forma de resistência para continuar escrevendo. Perseu consegue dominar a pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma que a vencera, contemplando-a no espelho, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais estava destinado a viver uma realidade que ele traz consigo e assume como um encargo pessoal.


A luta contra as ações petrificantes da Medusa parte de um propósito da verdadeira comunicação poética que, segundo o filósofo matemático Charles Sanders Peirce, é fazer linguagem para generalizar e regenerar sentimentos. Em fina sintonia com o pai da semiótica, Calvino afirma que entre as várias possibilidades de a literatura agir na História, talvez a única a não ser ilusória é compreender para que tipo de homem, a história, com seu labor múltiplo, contraditório está preparando o campo de batalha, e ditar-lhe a sensibilidade, o impulso moral, o peso da palavra, a maneira como ele, homem, deverá olhar à sua volta no mundo, aquelas coisas que somente a poesia  e não a filosofia ou a política pode ensinar.            

Às funções cognitiva e ética da literatura, junta-se aquela do processo criativo, em que o poeta deve entender o poema como um ser de linguagem. Ao fazer poema, o poeta está fazendo linguagem. Refratar o mundo na poesia é criar e recriar outro mundo. A posição de radicalidade do poeta (radix, radicis= raiz) é porque ele trabalha as raízes da linguagem. O resultado desse trabalho é que o mundo da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos, é com essa bela imagem que Décio Pignatari[3] nos apresenta o ser vivo da linguagem, ao discorrer sobre o que é comunicação poética. É necessário enfatizar que um bom poema nunca termina de dizer aquilo que tinha para dizer, vai ao longo do tempo criando modelos de sensibilidades. O que vale também para todos os gêneros da literatura, é claro.


Os parágrafos acima situam, ainda que de forma incipiente e sem o aprofundamento que o tema merece, uma reflexão inicial sobre o processo criativo observado no Grupo Virtual Mulherio das Letras Nacional (Facebook)[4]. Os temas mais ligados ao fazer poético desse grupo compõem uma teia com engenhosas tramas semânticas, bordadas por metáforas, metonímias, hipérboles, elipses, catacreses, sinestesias, antíteses, ironias, paradoxos, eufemismos, neologismos e tantas outras figuras pulsantes, que se irmanam na escrevivência, na esteira solidária de Conceição Evaristo. As poetas, escritoras criam um repertório substancial para expressão de suas imagens[5]. Constroem novas formas que interajam com o conteúdo e retomam outras clássicas e populares[6].


Na poesia feminina, os espaços público e privado não são dicotomizados, promovem uma dialogização humanizada; os temas agregam o passado e o presente numa movente travessia do devir a ser. No exercício da escrita literária, as mulheres almejam muito mais que uma identidade, perseguem algo maior  alteridades. Confrontam o infinito particular com um mundo dominado pelos discursos do poder fálico e racional do patriarcado.


O empoderamento vem da militância sistemática, mas também de um lugar de fala que envolve competência, compromisso, inteligência, sabedoria, aliados ao intenso e verdadeiro desejo de revolucionar o mundo. Acreditam no que fazem, e fazem arte como forma de expressão, revolução e criação de horizontes. 


O poema a seguir refrata e confronta o contexto petrificante do Brasil sob o julgo de dois vírus letais (COVID 19 e o fascismo), na luta pela regeneração dos sentimentos, pela denúncia, necessidade de forjar novas sensibilidades e o imprescindível impulso moral para revolucionar a rota tortuosa do nosso povo e país.           


Para ouvir o podcast do poema, clique AQUI

Ai de ti, PANDÊMIA 

                            (Isa Corgosinho)


Os habitantes de Pandêmia são céticos

materialistas
leem Freud Nietzsche Marx
mas legaram de Stalin
os obscuros desejos da burguesia
fazem orgia com os neoliberais
despertam grávidos de suas crias

Dos templos da inofensiva cidade
evangélicos
bélicos
e tais
destroem altares
incendeiam quintais

Ruminando fake news
vestida com a bandeira
a classe média, geleia geral brasileira:
Jesus, salve a propriedade
privada de nossos pais!
Comemoram, incitam o extermínio 
quilombolas povos originários mulheres negros florestas rios animais
a terra cultivada
sangue suor ancestrais

Assustam-se a cada virada de século
com a chegada do Fim do mundo
desprezam a vida do planeta
são escudos do seu medo ignorância covardia
os senhores
da guerra
do boi
a Vossa excrescência e sua quadrilha!

Os excluídos de Pandêmia
vagam na Nau dos Loucos
vivem na terceira margem
no isolamento profundo
miram na clara noite
as crateras da lua
esconderijo dos morcegos 
que avançam sobre a pólis
em desordenada rebeldia
Ai de ti, Pandêmia, não verás a luz do dia!






[1] HALL, Stuart. Identidades culturais na pós-modernidade. Trad. Tomaz T. da Silva, Guacira L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 1997.

[2] CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. Trad. Ivo Barroso. São Paulo: Companhia das Letras. 1990.

[3] PIGNATARI, Décio. O que é comunicação poética. São Paulo: Ateliê Editorial, 2011. 

[4]Criado em 12 de março de 2017, por um grupo de mulheres escritoras, atualmente conta com cerca de 7, 1 mil mulheres, com ramificações regionais e internacionais, lançando sementes pelo planeta a fora.

[5] Maternidade, liberdade, resistência, memórias, fazer poético, natureza, gênero, amor, infância, solidão, autoestima, amadurecimento, perdas, dor, paixão, erotismo, loucura, família, sexualidade, revolução, esperança, justiça, raça, violência, religião, fauna, flora, astros, lua, livros, rio, mar, sonhos e uma infinidade de outras palavras.

[6] poetrix, soneto, haicai, trova, aldravia, versos livres, poesia processo, poesia concreta, epopeia, drama, solilóquios, contos, novelas, crônicas, romances, diários etc.



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