A cada dia, parece-nos, perdemos aquela
antiga proposta crítica estável, firme, inflexível, em relação à literatura,
enfraquecendo-se a confiança em modelos muito formalizados. Estamos vivendo uma
mudança de paradigmas em todos os níveis do conhecimento humano, situação que
propicia, por sua vez, uma visão mais complexa, teoricamente falando.
Voltamo-nos ao necessário diálogo que cada crítico estabelece com o seu objeto,
na busca da elucidação das questões que, no seu desafio, a obra lhe propõe.
Isto não é propriamente uma novidade, vem de certo tempo à esta parte. Desde
meados do século XIX, com Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e companhia. O poema em
prosa (e leia-se também a prosa poética), tornou-se uma terceira via da
modernidade literária, a ponto de suscitar uma trajetória e tradição próprias
desde então. Talvez como resposta ao dilema da expressividade poética. Vale a
pena atentar para uma linhagem de textos contemporâneos que revelam algumas
características em comum. Inspirados por forte carga subjetiva, apresentam uma
linguagem despida de requintes e próxima da anotação íntima: mas com alta dose
de reflexão. Importante referir que a atitude meditativa não provoca
necessariamente uma depreciação do efeito poético. O ato de refletir implica
alguma complexidade; esboça-se a partir de operações entrecruzadas, envolvendo
ao mesmo tempo as capacidades de perceber, duvidar, julgar, raciocinar – mistura
que se resolve na singularidade do poema. Essa perspectiva permite ao sujeito
lírico ocupar a centralidade do texto e despertar as associações que lhe
interessam ou cativam.
Paralelamente a isto, vivemos em uma
sociedade de escala global. que ignora os sintomas e o sofrimento advindos de
relações humanas desencontradas, do pouco caso com a natureza que nos sustém, e
finalmente, assistimos perplexos a deterioração e decadência do humano, mesmo
em face de tanto desenvolvimento tecnológico. Por cima, tome-lhe coice com a
tal da pandemia monstruosa.
O tempo torna-se algo efêmero e impreciso,
em virtude da velocidade dos acontecimentos e da multiplicidade de
possibilidades que se oferecem aos nossos olhos. Parece-nos que, ou melhor;
plantam em nossas consciências a sensação de liberdade individual plena, tão
sonhada durante tanto tempo. Liberdade esta que mostra-se carente de
referenciais sólidos, tornando cada vez mais difícil a visualização de um ponto
norteador, algo que indique uma coisa semelhante a um sentimento de certeza
para o sujeito em suas escolhas. Nessa perspectiva, a Pós-Modernidade oferta
aos indivíduos uma liberdade aparente à custa de um sentimento de insegurança
generalizada, e dessa forma, o mal-estar vai se caracterizando pela liberdade
fluida, e não pela opressão e repressão de outrora. Desamparo no sentido de que
carecemos de referências sólidas de identificação, uma vez que se tornou
impossível fixar-se a um determinado tipo de identidade em um cenário em que a
transitoriedade dos referenciais é perpétua e contínua. Viceja por seu turno, a
violência de todos os tipos, às vezes chegando às raias do terrorismo, fruto de
uma sociedade desigual onde a desconsideração com o outro incentiva práticas
intolerantes e retaliadoras.
Voltemos ao poema em prosa produzido aqui
e agora, em um meio como este no qual “o real está demasiado posto e nos encara
com olhos esbugalhados” e que o sentimento forte que nos assedia é “sentir
profundamente a impotência, o nojo e a vergonha de ser... [humano]”. Os textos
de “Bordados” da escritora Roberta Gasparotto, recentemente editado pela Camino
Editorial do Rio Grande do Sul, nutrem-se de algumas conquistas radicais
como a mescla de gêneros e subgêneros literários, a fusão e trans-fusão de
poesia e prosa, verdadeiros vasos comunicantes que forjam os vários modos de
poetização/liricização da prosa e de prosificação da poesia lírica. A obra que
foi publicada em formato e-book revela uma escrita concisa – e
contraditoriamente sentenciosa –, interessada muitas vezes em registrar o
flagrante da subjetividade em face da circunstância real ou imaginária. Ou por
outras palavras: o poema se transforma em "pequena reflexão”, deslizando
para um tom sem ornamentos, acionando uma sensibilidade aguda e sintética.
Encontramos na obra uma mistura de
tendências estéticas. Alguns textos de caráter intimista, misturados a
outros com temáticas cotidianas e de engajamento social, notadamente com
relação à situação da mulher ante o mundo, (não necessariamente de um feminismo
militante), há ainda os de formato reduzido, quase poemas frasais. Em Roberta
Gasparotto, observamos ainda o uso constante de reticências que não indicam
propriamente divagações da voz poética, ou desvio na linha do pensamento, mas
sugerem uma continuidade daquilo que é realmente dito, indicando que a ideia
que se pretende exprimir não se completa com o término do verso, a qual só pode
ser feita pela imaginação do leitor. Senão vejamos:
Nascimento – p. 15.
quem sabe um dia retornaremos à vida
embrionária
:pulsante, caótica e organizadora de tudo.
quem sabe um dia retornaremos ao útero da
terra
:repleto de contrações e expansões onde os
espasmos moldam a
experiência.
quem sabe um dia aprenderemos com a nossa
mais remota vivência
:respiração primeva onde a lancinante dor
de receber o ar não nos
impediu de sentir o seu frescor.
quem sabe um dia retornaremos à
transparência do líquido e à
opacidade placentária
:aquele lugar onde nada se exclui, porque
tudo é parte integrante da
jornada.
quem sabe um dia deixaremos de ser tão
miseráveis
:apego ignóbil.
um dia, teceremos com cordões de barro
nossas próprias asas e
contemplaremos os voos alheios com a
alegria de quem conhece a
liberdade de ser pássaro
...
...
errante.
O amor não aceita desaforo – p. 34.
a esposa queria muito ficar famosa. ou, ao
menos, conhecida. estava
cansada de viver à sombra do marido
.
o marido queria mais e mais dinheiro. e,
claro, topou na hora ajudar a
esposa a ficar famosa
.
o amante da mulher, de repente, se viu de
escanteio. aquele amor,
antes tão caloroso, não encontrou mais
lugar frente a tantos devaneios
.
a amante do marido, se sentindo
extremamente só, abandonou aquele
homem que, durante anos, lhe provocou
incêndios
.
- o amor não aceita desaforo
pacto social – p.44.
deve haver algum pacto em curso
de todos aceitarmos a morte em vida
mutilação de sonhos
de emoções
a vida transborda
borbulha
faz barulho e incomoda
a morte não
a morte é quieta
temos tanto medo de morrer, sem saber que
a morte há tempos nos
invade...
e ronda nossas faces covardes.
A simbiose entre prosa e poesia nessa
autora, assume a ótica subjetiva para emoldurar o conteúdo objetivo (ou
imaginário) ao seu gosto e sentido. À sua maneira, atualiza o desafio de urdir
uma escrita voltada para reproduzir os movimentos líricos da alma, seus
sobressaltos de consciência e questionamentos, neste nosso mundo conturbadíssimo.
Vale salientar, todavia, que a quantidade diminuta de textos reunidos na obra,
causam no leitor aquela sensação de “quero mais”, pelo que torcemos para que a
autora nos brinde em breve, com novas produções.
Livro: “Bordados” – Poesia de Roberta
Gasparotto 1ª edição- 2021 - Camino Editorial – Viamão – RS - 53
p.
ISBN: 978-65-00-15429-0
Q lindeza, Martita! 😍 Obrigada por compartilhar essa resenha maravilhosa q Krishnarmurti fez do meu novo livro ❤️❤️❤️
ResponderExcluirLindo livro, Roberta. Excelente resenha. Parabéns!
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