quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

ELES LEEM ELAS: BORDADOS, POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS


ELES LEEM ELAS/06

BORDADOS: MESCLA DE GÊNEROS E SUBGÊNEROS LITERÁRIOS, A FUSÃO E TRANS-FUSÃO DE POESIA E PROSA, de Roberta Gasparotto


A cada dia, parece-nos, perdemos aquela antiga proposta crítica estável, firme, inflexível, em relação à literatura, enfraquecendo-se a confiança em modelos muito formalizados. Estamos vivendo uma mudança de paradigmas em todos os níveis do conhecimento humano, situação que propicia, por sua vez, uma visão mais complexa, teoricamente falando. Voltamo-nos ao necessário diálogo que cada crítico estabelece com o seu objeto, na busca da elucidação das questões que, no seu desafio, a obra lhe propõe. Isto não é propriamente uma novidade, vem de certo tempo à esta parte. Desde meados do século XIX, com Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud e companhia. O poema em prosa (e leia-se também a prosa poética), tornou-se uma terceira via da modernidade literária, a ponto de suscitar uma trajetória e tradição próprias desde então. Talvez como resposta ao dilema da expressividade poética. Vale a pena atentar para uma linhagem de textos contemporâneos que revelam algumas características em comum. Inspirados por forte carga subjetiva, apresentam uma linguagem despida de requintes e próxima da anotação íntima: mas com alta dose de reflexão. Importante referir que a atitude meditativa não provoca necessariamente uma depreciação do efeito poético. O ato de refletir implica alguma complexidade; esboça-se a partir de operações entrecruzadas, envolvendo ao mesmo tempo as capacidades de perceber, duvidar, julgar, raciocinar – mistura que se resolve na singularidade do poema. Essa perspectiva permite ao sujeito lírico ocupar a centralidade do texto e despertar as associações que lhe interessam ou cativam. 

Paralelamente a isto, vivemos em uma sociedade de escala global. que ignora os sintomas e o sofrimento advindos de relações humanas desencontradas, do pouco caso com a natureza que nos sustém, e finalmente, assistimos perplexos a deterioração e decadência do humano, mesmo em face de tanto desenvolvimento tecnológico. Por cima, tome-lhe coice com a tal da pandemia monstruosa.  

O tempo torna-se algo efêmero e impreciso, em virtude da velocidade dos acontecimentos e da multiplicidade de possibilidades que se oferecem aos nossos olhos. Parece-nos que, ou melhor; plantam em nossas consciências a sensação de liberdade individual plena, tão sonhada durante tanto tempo. Liberdade esta que mostra-se carente de referenciais sólidos, tornando cada vez mais difícil a visualização de um ponto norteador, algo que indique uma coisa semelhante a um sentimento de certeza para o sujeito em suas escolhas. Nessa perspectiva, a Pós-Modernidade oferta aos indivíduos uma liberdade aparente à custa de um sentimento de insegurança generalizada, e dessa forma, o mal-estar vai se caracterizando pela liberdade fluida, e não pela opressão e repressão de outrora. Desamparo no sentido de que carecemos de referências sólidas de identificação, uma vez que se tornou impossível fixar-se a um determinado tipo de identidade em um cenário em que a transitoriedade dos referenciais é perpétua e contínua. Viceja por seu turno, a violência de todos os tipos, às vezes chegando às raias do terrorismo, fruto de uma sociedade desigual onde a desconsideração com o outro incentiva práticas intolerantes e retaliadoras. 

Voltemos ao poema em prosa produzido aqui e agora, em um meio como este no qual “o real está demasiado posto e nos encara com olhos esbugalhados” e que o sentimento forte que nos assedia é “sentir profundamente a impotência, o nojo e a vergonha de ser... [humano]”. Os textos de “Bordados” da escritora Roberta Gasparotto, recentemente editado pela Camino Editorial do Rio Grande do Sul, nutrem-se de algumas conquistas radicais como a mescla de gêneros e subgêneros literários, a fusão e trans-fusão de poesia e prosa, verdadeiros vasos comunicantes que forjam os vários modos de poetização/liricização da prosa e de prosificação da poesia lírica. A obra que foi publicada em formato e-book revela uma escrita concisa – e contraditoriamente sentenciosa –, interessada muitas vezes em registrar o flagrante da subjetividade em face da circunstância real ou imaginária. Ou por outras palavras: o poema se transforma em "pequena reflexão”, deslizando para um tom sem ornamentos, acionando uma sensibilidade aguda e sintética.

Encontramos na obra uma mistura de tendências estéticas.  Alguns textos de caráter intimista, misturados a outros com temáticas cotidianas e de engajamento social, notadamente com relação à situação da mulher ante o mundo, (não necessariamente de um feminismo militante), há ainda os de formato reduzido, quase poemas frasais. Em Roberta Gasparotto, observamos ainda o uso constante de reticências que não indicam propriamente divagações da voz poética, ou desvio na linha do pensamento, mas sugerem uma continuidade daquilo que é realmente dito, indicando que a ideia que se pretende exprimir não se completa com o término do verso, a qual só pode ser feita pela imaginação do leitor. Senão vejamos:

 

Nascimento – p. 15.

 

quem sabe um dia retornaremos à vida embrionária

:pulsante, caótica e organizadora de tudo.

quem sabe um dia retornaremos ao útero da terra

:repleto de contrações e expansões onde os espasmos moldam a

experiência.

quem sabe um dia aprenderemos com a nossa mais remota vivência

:respiração primeva onde a lancinante dor de receber o ar não nos

impediu de sentir o seu frescor.

quem sabe um dia retornaremos à transparência do líquido e à

opacidade placentária

:aquele lugar onde nada se exclui, porque tudo é parte integrante da

jornada.

quem sabe um dia deixaremos de ser tão miseráveis

:apego ignóbil.

um dia, teceremos com cordões de barro nossas próprias asas e

contemplaremos os voos alheios com a alegria de quem conhece a

liberdade de ser pássaro

...

...

errante.

 

O amor não aceita desaforo – p. 34.

 

a esposa queria muito ficar famosa. ou, ao menos, conhecida. estava

cansada de viver à sombra do marido

.

o marido queria mais e mais dinheiro. e, claro, topou na hora ajudar a

esposa a ficar famosa

.

o amante da mulher, de repente, se viu de escanteio. aquele amor,

antes tão caloroso, não encontrou mais lugar frente a tantos devaneios

.

a amante do marido, se sentindo extremamente só, abandonou aquele

homem que, durante anos, lhe provocou incêndios

.

- o amor não aceita desaforo

 

pacto social – p.44.

 

deve haver algum pacto em curso

de todos aceitarmos a morte em vida

mutilação de sonhos

de emoções

a vida transborda

borbulha

faz barulho e incomoda

a morte não

a morte é quieta

temos tanto medo de morrer, sem saber que a morte há tempos nos

invade...

e ronda nossas faces covardes.

 

A simbiose entre prosa e poesia nessa autora, assume a ótica subjetiva para emoldurar o conteúdo objetivo (ou imaginário) ao seu gosto e sentido. À sua maneira, atualiza o desafio de urdir uma escrita voltada para reproduzir os movimentos líricos da alma, seus sobressaltos de consciência e questionamentos, neste nosso mundo conturbadíssimo. Vale salientar, todavia, que a quantidade diminuta de textos reunidos na obra, causam no leitor aquela sensação de “quero mais”, pelo que torcemos para que a autora nos brinde em breve, com novas produções.


Livro: “Bordados” – Poesia de Roberta Gasparotto 1ª edição- 2021 - Camino Editorial  – Viamão – RS -  53 p.  

ISBN:  978-65-00-15429-0



2 comentários:

  1. Q lindeza, Martita! 😍 Obrigada por compartilhar essa resenha maravilhosa q Krishnarmurti fez do meu novo livro ❤️❤️❤️

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