sexta-feira, 16 de setembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: AMAR - ELO QUE FAZ A COR DAR, POR RILNETE MELO


N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|04

 AMAR - ELO QUE FAZ A COR DAR

Por RILNETE MELO


"Marisa,  26 anos, universitária, teve fotografias íntimas divulgadas pelo seu ex-namorado. A jovem terminou um relacionamento de 8 meses e  Túlio, seu parceiro inconformado, chegou a ameaçá-la de morte. Marisa fez o boletim de ocorrência face à ameaça e, então Túlio vazou as fotos da sua ex-amada nas redes sociais, em sites pornográficos e perfis falsos do Instagram.  Tal fato quase leva Marisa a tirar sua própria vida."

O relato acima é matéria de jornal e os nomes são fictícios,   mas a realidade sobre a exposição imagética feminina no ciberespaço é preocupante, pois tem levado muitas pessoas ao suicídio.


Pegando carona nesses meados de “setembro amarelo", eu faço uma breve reflexão sobre o assunto,  pois a violência contra as mulheres na Internet tem gerado uma onda de suicídio e tem me  incomodado muito. Há alguns meses, a filha “trans”  de uma amiga minha, sofreu bullying e injúria através de comentários em uma rede social, chegando a cortar os pulsos.  Outra filha de uma conhecida,  teve um vídeo intimo viralizado no ciberespaço e tentou envenenar-se com medicamentos.... São muitos os casos!  Vamos fazer valer a campanha de prevenção ao suicídio que visa a conscientização sobre esse grave problema e formas de evitá-los. Fiquemos atentas para o sinal de alerta e vigiai o espaço virtual!

Sou consciente que  existe uma dificuldade de controle das novas tecnologias,  mas convenhamos que a existência de leis, como a  13.718/18 que tipifica crime de divulgação de imagens, não é uma condição para erradicação desses e outros crimes que acontecem no universo virtual feminino, pois o patriarcado machista não nos exime sequer das violências fisicas/domésticas. O que se observa é que o estigma de inferioridade e subordinação social da mulher é gritante nesse tipo de violência, e tal crime configura difamação,  violência psicológica e injúria. O que se recebe como bônus é simplesmente a retirada do conteúdo do provedor, e uma pena (se tiver) de doação de cestas para o agressor, mas a dor da vítima permanece, o estrago na honra e na alma é irreparável  e a mente fraca...  ah! Essa  é  capaz de apagar o brilho do sol!

Estejamos atentas queridas leitoras, Mães,  adolescentes,  jovens mulheres ou qualquer gênero que possa sofrer esse tipo de violência, pois a vulnerabilidade do ciberespaço é algo extremamente perigoso.

Tenho um perfil no Facebook com mais de 4.000 seguidores, por ser escritora, às vezes aceito solicitações de perfis masculinos, com interesse em comum (literário), porém já sofri vários assédios provenientes de postagem de uma simples foto da minha imagem. Ou seja, não posso me dar ao luxo da prática da auto estima? Simplesmente porque sou mulher? Sei que pode existe crimes cibernéticos contra a figura masculina, mas os maiores índices de crimes praticados no ambiente on-line são contra nós mulheres, o que tem nos levado a uma grande  insegurança ao navegarmos no ambiente virtual, onde somos vítimas de uma misoginia desenfreada.

E falando de misoginia, eu já cheguei a uma conclusão que a  Vagina é o órgão mais poderoso desse universo. Sim!  Uma simples anatomia do corpo  é capaz de trazer desigualdades, revolta, insegurança,  agressividade e por aí vai... Como bem disse Simone de Beauvoir “Ninguém, na frente das mulheres,  é mais arrogante, agressivo e desdenhoso do que o homem inseguro da sua própria masculinidade.”

É  hora de darmos um basta nessa  violência sem limites que está interrompendo vidas. Vamos tirar da teoria a   sororidade, vamos nos dar as mãos,   unir forças e lutar para fazer valer a lei ‘Carolina  Dieckmann" e muitas outras que dormem nos arquivos dos tribunais. É hora de soltar a voz, seja através da poesia, música  ou qualquer meio de comunicação e/ ou movimentos coletivos.

O nosso blog “Feminário Conexões” é um dos grandes aliados nessa luta, pois tem sido um importante espaço virtual para deixar ecoar esse grito, uma espécie de  carinho no que se refere  às  causas femininas, onde, através da poesia,  crônicas  contos e outros textos, temos abordados assuntos que traçam rotas, estratégias e articulações em torno das questões que dizem respeito às nossas vivências e pautas enquanto mulheres.  

De acordo com o relatório da Febrasgo (Federação brasileira de ginecologia e obstetrícia), o número de suicídios femininos no Brasil cresceu de 45,7% entre 2009 e 2021 e muitos desses casos foram provenientes de crimes cibernéticos. E essa dor é nossa. Essa dor é minha, pois veste a minha pele e aperta minha alma,  e embora com um misto de insegurança e impotência, eu grito e não desisto. A poesia é minha arma,    pois como escreveu Gabriel Celaya  em “ Cantos Íberos”: “A poesia é uma arma carregada de futuro”. É através da poesia que ouço meus ecos e mato os meus demônios todos os dias. A dor do suicídio sangra nas minhas entranhas,  pois já andou rondando a minha vida... Eu considero-me uma mulher gigante, embora com 1,50m de altura e uma dismetria na perna direita, eu me apoio na “esquerda”  e sigo pisando as pedras no meio do meu caminho. É sem papas na língua que alcanço essa realidade que me inquieta. Eu solto o verbo no papel por todos, todas e todes que sofrem com esse caos e essa barbárie que caminha o nosso país nesse desgoverno misógino, racista e que tenta cercear a nossa liberdade de expressão.

O momento é de expungir essa sociedade de “machos" e fazer um apelo aos  que transitam no nosso espaço presencial e virtual: Expulsem de vocês essa insanidade do patriarcado machista, tornem-se homens elegantes e lembrem-se que pelo sacrifício divino viestes ao mundo através de uma mulher, portanto deixem-nos viver em paz. Deixo para alguém, que  em algum momento possa ter tido um pensamento suicida o Poema “Eco", de minha autoria:


ECO


Presa no porão escuro

das dúvidas atormentadas,

quando em desatino

desatei o nó em palavras

desfiz  o suicídio...

 

Na ponta do lápis

o socorro em tessitura

Agarrou o papel

 

Com as lágrimas do ontem

E o pó da agonia ,

Eu fiz meu café

ferver na poesia,

Exalando o socorro

dos dias pósteros

Em que transcorria

 

Não sei em qual tempo

(Talvez setembro...)

Amarelo

Tempo que não nego

Ao ouvir em meus versos

Quase em decesso


A voz

Numa  rima atrevida

Em eco:

Vida

Vida

Vida

 ☆_____________________☆_____________________☆

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 



LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|13


SORORIDADE EM QUALQUER IDADE

Por Carollina Costa


Outro dia estava relendo anotações que fiz do livro Sejamos todos feministas, da nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Nesse livro ela conta que na Nigéria, o mais alto ponto de realização social que uma mulher pode chegar é ter um marido. Há até mesmo uma espécie de ditado popular que diz que é melhor ter um mau marido do que marido nenhum, mesmo esse "mau" podendo significar muitas coisas.


Sou brasileira, mulher, escritora, professora, estudante de pós-graduação e quanto mais eu  busco entender o porquê de ainda existir esse tipo de validação social mesmo com as mulheres já se dedicando a outras partes de sua vida,  vejo também que esse tipo de valorização se replica. Não é só na Nigéria que se alimenta a ideia de que conquistar um marido é o suprassumo da vida de uma mulher. Também vejo isso no Brasil, porém, em alguns círculos, de modo mais velado.

Sou de uma geração de mulheres que se dizem feministas em alto e bom som, vão a passeatas, compartilham postagens na internet e até têm fotografias de pensadoras penduradas nas paredes do quarto ou da casa, mas na hora de pôr o discurso em prática tudo muda de figura. É fácil fazer correntes de Facebook, WhatsApp e Instagram apoiando aquela famosa X na causa Y, se solidarizar com a realidade da moça A, festejar o sucesso da moça B, mas não é tão simples fazer o mesmo quando essa moça é sua vizinha, sua parente, sua amiga ou colega de trabalho. Uma união que deveria ser do micro para o macro fica apenas no macro, apenas na realidade aparente, pintando figuras e afetos que não se sustentam além dos 15 segundos de um stories.

Já ouvi mulheres mais velhas comentarem dessa mesma falta de união entre suas colegas de geração, porém, ao menos no caso delas, é algo mais exposto. É dito na cara, ou melhor, logo se vira a cara. É doído e triste, mas ao menos é honesto. Antes fossem todas assim, diretas e honestas em qualquer idade.

Já ouvi que sou "muito focada no que eu faço" em tom de crítica e que estaria tudo bem faltar a uma reunião de amigos se eu fosse em um casamento, mas jamais por motivos de trabalho. Acontece que nenhum dos pouquíssimos e brevíssimos relacionamentos que já tive — e não gostaria de ter nenhum de volta — chega aos pés da paixão que tenho pelo que faço. Veja bem, não sou contra ter uma companhia, de preferência uma que seja boa, mas acredito que fazer disso o centro das realizações de uma mulher já não cabe mais. Talvez alguns séculos atrás, quando ainda éramos vistas como uma propriedade passada de pai para marido e de marido para filhos, mas hoje já temos uma meia dúzia de direitos que nos garante certa autonomia. O curioso é que, de todo peso e cobrança social existente, o que as mulheres podem exercer umas sobre as outras é o mais dolorido.

Celebrar as conquistas profissionais de uma mulher tanto quanto celebram as demonstrações de afeto deveria ser algo mais comum em nossa sociedade. Mais do que isso, deveriam celebrar nossa inteireza. Celebrar a mulher que decidiu ser dona de si mesma, que traçou seu próprio caminho, que escolheu não fazer de um alguém a razão da sua vida, mas partilhar a vida que já tem com outro alguém que valha a partilha.

Desejo que a sororidade saia da teoria para a prática e que as ideias de tantas pensadoras tome forma sólida em nossa sociedade e deixem de ser só palavras. Desejo que as mulheres possam celebrar cada vez mais a si mesmas e umas às outras. E, leitora, se ninguém ainda te disse isso hoje, saiba: eu celebro você!


@cbcarollina

POESIA NA REDE: SETEMBRO AMARELO, POR FLAVIA FERRARI

           

                      POESIA NA REDE|07

SETEMBRO AMARELO
                                                                                                 Por Flavia Ferrari

    Dez de setembro é o dia mundial de prevenção ao suicídio. Foi bonito ler nas redes poemas que enfrentaram o tabu que o tema apresenta e versaram sobre a vida, sentidos, experiências e esperança. A poesia está em todos os lugares e acompanha as datas, os momentos e movimentos. Não consigo pensar em um gênero literário que tenha um alcance tão gigantesco e esteja presente de forma tão ostensiva no cotidiano, desde textos publicitários, apresentações acadêmicas, até em grandes shows musicais, em que multidões gritam músicas (poéticas) ao som de guitarra e bateria.

    Crianças amam o contato com a poesia e surpreendem-se quando conseguem construir um verso, criar uma rima e, o mais importante, gostar do que criaram, orgulhando-se de sua autoria.

    Contardo Calligaris*, em inúmeras entrevistas, dizia que o sentido da vida é a própria vida. Ele acrescentava que ficar procurando sentidos era perda de tempo e questionava: será que é necessário ter mesmo um sentido?

    Demorei um tanto para concordar com ele, mas o que a poesia tem me trazido é justamente a pergunta que me move, “será?”

       Saúde mental é tema urgente e pouco a pouco está sendo tratado com mais seriedade pelos veículos e formadores de opinião. Mas o caminho ainda é longo e árduo. Temos um sistema de saúde pública no Brasil desenhado para um atendimento à saúde mental de excelência à população, mas faltam recursos e a precarização tem chegado a galope.

    As redes sociais, dependendo de como é usada, pode gerar muita ansiedade e disparar gatilhos preocupantes. Por isso conversar, falar, expor, escrever ajuda muito e permite encontros acolhedores.

    Ter acesso a poesia que a rede nos proporciona tem me trazido momentos de alegria, de comoção, de questionamento e de deslumbramento. A cada poema lido, vejo um sentido, imagino, sonho, boto alguns versos no meu colo. Talvez seja a arte o caminho para o bem-estar. Acredito que seja, para mim assim o é.

    Gostaria de finalizar com dois poemas que gostei demais, escritos dentro do contexto do setembro amarelo, de duas poetas que admiro muito.

 

Dorsal


Perpetuar a vida

como a avenida


que ao final

não encontra borda


mas a esquina

a rampa

o contorno da via


há saída


Jéssica Iancoski**


....................................................................................................................


na borda, a vida é mais difícil

na borda, a vida pinta abismos

na borda, tudo se faz inacessível

só não a cantiga em dor maior


a borda, autoflagelo da desdita

a borda é a zona da divisa

a zona é a borda que divide

a força dos sonhos em nada, em pó


a vida é a borda suicida

a antivida é a culpa que aflige

a sina é trilha única que permite

o salto ardiloso no escuro da dor


....................................................


a corda é a mão que segura

acorda! é a voz que ulula

a borda é esperança que uiva

quando frágil botão se abre em flor...


Marta Cortezão***

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Referências:

*Contardo Calligaris: Entrevista disponível em https://tvbrasil.ebc.com.br/impressoes/2019/12/o-sentido-da-vida-e-propria-vida-diz-contardo-calligaris


** Jéssica Iancoski é pessoa não-binária, escritora, poeta e artista plástica. Publicou em várias antologias e revistas, nacionais (Mallarmargens, Ruído Manifesto, Acrobata, etc) e internacionais. É idealizadora do Toma Aí Um Poema – o maior podcast lusófono de declamação de poesias, segundo o Spotify – com mais de 44 mil ouvintes diferentes, ao longo do tempo e, também, revista literária digital. Nasceu em Curitiba em 10 de Fevereiro de 1996. É formada em Letras pela Universidade Federal do Paraná e em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

***Natural de Tefé, no estado do Amazonas, radicada na Espanha desde 2012. Poeta, escritora, tradutora, ativista cultural, feminista, interessada em promover a Literatura Feminina mundo afora. Desenvolve o projeto "Tertúlias Virtuais" a fim de divulgar a produção literária de escritoras que se movimentam pelas redes sociais. Também idealizadora, junto com Patrícia Cacau, do Projeto Enluaradas, coletivo feminino, onde organiza coletâneas, visando encontros e debates sobre literatura. Responsável pelo projeto editorial das Coletâneas Enluaradas I, II e III (poesia). Mantém o blog Feminário Conexões, onde divulga e promove a Literatura Contemporânea do Feminino, junto a várias escritoras e poetas parceiras. A ideia deste blog é ampliar o leque e abraçar mais autoras que queiram somar conosco a fim de contribuir para criar um significativo catálogo virtual, literário e cultural. É colunista da Revista Literária Voo Livre. Livros solo publicados: “Banzeiro Manso” (Editora Porto de Lenha, 2017, poesia) e “Amazonidades: gesta das águas” (Penalux, 2021, trovas). É coautora de várias antologias Brasil e Europa. Sua máxima: "O voo só pode ser pleno quando em bando."

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Flavia Ferrari
[foto arquivo pessoal]

Poeta e professora da rede pública de São Paulo, Flavia Ferrari lançou, em novembro/2021,  o seu primeiro livro de poemas, intitulado "Meio-Fio: Poemas de Passagem". A obra foi editada pelo Toma Aí Um Poema, o maior podcast de leitura de poemas lusófonos. Flavia Ferrari escreve desde a adolescência, mas começou publicar seus poemas no início da pandemia, compartilhando seu trabalho nas redes sociais e contribuindo com revistas literárias digitais. Desde o princípio, os seus poemas foram muito bem recebidos pelos leitores e pelos periódicos digitais. @fmferrari

domingo, 11 de setembro de 2022

ELES LEEM ELAS: AS LARANJAS DE ALICE MAZELA, DE GÉSSICA MENINO, POR RONALDO RHUSSO


ELES LEEM ELAS|12

AS LARANJAS DE ALICE MAZELA, DE GÉSSICA MENINO 



Achei interessante “eles que leem elas”, escreverem a respeito de quem ou da obra que leram, e escolhi “As Laranjas de Alice Mazela” (Editora Toma Aí Um Poema, 2021) da estreante Géssica Menino e que tem a excelente Apresentação da Flavia Ferrari.

É um livro de contos que me surpreendeu no sentido em que leva o leitor a fazer reflexões acerca do cotidiano e, a mim, fez-me pensar um pouco acerca de cada personagem com um olhar que nos leva a perceber claramente não ser propriamente nosso, mas uma, por assim dizer, apropriação do olhar da autora a qual, desconfio, fala muito de si mesma e de histórias que vivenciou em cada um desses contos.

Cada livro é um Universo particular ou mesclado, e a autora inicia o seu livro de uma forma poética “Quando conquistei uma bolsa para ir estudar na universidade meus prantos, de alegria, ao chão se derramaram”.

E aqui eu já percebo o abrir de alma da autora ao mencionar “seus prantos”... Alguém diria que pranto poderia inferir uma coisa só, um choro em demasia causado por algum infortúnio, mas aqui o leitor nota que houve sucessões de prantos e infortúnios, os quais foram exorcizados ou derramados a partir de uma notícia muito boa, a de que a tão sonhada oportunidade de buscar uma formação superior agora seria um fato e que sejam lá quais foram os infortúnios passados, seriam superados e, enfim, lançados ao chão a fim de, no máximo, servirem como adubo para o surgimento de uma nova vida...

Assim, a Géssica inicia o conto cujo título é Lembranças e que, no livro, inicia uma sessão de catorze contos, curiosidade que levará um sonetista inveterado como eu, por uma mera questão de costume, ver uma relação com a arte de compor essas pequenas canções em catorze versos, de maneira que passa a encarar essa coleção como uma simbólica Ode à dedicação na Arte de escrever e externar aquilo que ao autor sufoca, mas é capaz de encantar o leitor e, como antecipei, fazer refletir...

[foto arquivo pessoal da autora]

“O Barba Azul”, “É Apenas por Enquanto” e “Relativo” completam o que vou chamar de primeira estrofe. Cada Conto com sua peculiaridade. A gente se demora em pensar no fato de que até as características ditas ou vistas como negativas nos rotulam, classificam e nos põem no círculo das atenções sejam elas quais forem, mas, se nos despimos dessas características é como se desaparecêssemos! Dia desses, conversando com uma aluna, menina linda e gentil, me dizia que sofrera bullyng porque era gordinha quando começou a frequentar a escola, de forma que se esforçou para emagrecer e teve que suportar muita fome se privando das guloseimas que a mãe, uma doceira, fazia. Quando conseguiu emagrecer bastante passaram a chamá-la de “sem corpo” numa alusão de que a mesma, embora na puberdade, tinha corpo de criança... Assim torna-se fato a conclusão de que mudar não vai agradar a todos e a gente pode, na melhor das hipóteses, perder a única atenção que nos davam... É aí que a gente cai na real de que toda a sensação de falta de sentimento pode-se dizer que “é apenas por enquanto” e se o que pensam de nós ou os “para quês?” da vida são relativismos, nos resta valorizar a percepção de que algumas coisas, que são tão comuns em nosso cotidiano, como legumes que nos são servidos à mesa e dos quais fazemos pouco caso, porém quando vistos nas barracas de feira, encaramos a realidade do quanto custam e do quanto fazem diferença no orçamento e, principalmente, na nutrição física que pode ou não vir a gerar ótimas ideias na mente e se tornarão textos que encantarão leitores que se identificam com os cenários convertidos em palavras.

“Sem Destino”, “O Distinto”, “Para se Pensar” e “As Laranjas de Alice Mazela” formam o segundo Quarteto do livro e parece proposital que essa parte do meu “Soneto mental”, enquanto vou lendo, feche com o conto que empresta o título ao livro da Géssica.

“Ela escuta o barulho horrendo do vidro brigando com o chão”. Eu nunca pensei assim quando da queda de um frasco de perfume ou com outro conteúdo. Em “Sem destino” a gente não tem muita certeza de quem está narrando, porém a quantidade de observações aos detalhes contidos na casa e no jardim, com a rotina daquela que se vê menina na foto guardada no computador é muito interessante! Há uma ponte para “O Distinto” que, talvez, nem tenha sido proposital na organização do livro, entretanto as reflexões acerca do que seria a “Arte de amar” e a abrupta enumeração de episódios trágicos ocorridos com pessoas que têm nome, com pessoas que deixam pessoas que, também, têm nome é, de fato, “Para se pensar”, porque em todos os casos o Distinto, o Amor, esteve presente e a tudo testemunhou! Até a história de Lucinda e Marcos, a primeira menina mulher do acaso que vivenciou Movimentos e tormentos, enquanto o outro, o “bebum”, num apenas tênue interagir com Lucinda é só mais um dos “pirões perdidos” para o mundo e Alice? Sem mazelas, a não ser no nome, narra sua epopeia e se torna aquela que já não irá mais ouvir a velha pergunta: “Ainda estás aqui”?

[arquivo pessoal da autora]
Gessica Menino é mãe do Christopher, uma das vencedoras do concurso literário nacional “Novas Contistas da Literatura Brasileira”, pela Editora Zouk, com o conto “As curvas do tempo”, publicado em 2018 e um dos ganhadores do Concurso Literário Internacional da Academia Fluminense de Letras 2018, na modalidade conto, com o texto intitulado: “A vida de um casal de professores”. Autora do conto “Sem perder o ritmo”, publicado em 2020 na antologia “O lado poético da vida” e lançou “As Laranjas de Alice Mazela” pela Editora TAUP (Toma Aí Um Poema 2021)”.

Nesse ponto entramos no primeiro “Terceto” ou se preferirem, na terceira estrofe ou parte do livro com “Uma Descoberta”, “Um Dia Solene ou Sublime” e “Sois”...

“Uma descoberta” narra a autoconsciência de Bianca que “Escrevia todas suas ideias, pensamentos e emoções a qualquer tempo apropriado com a esperança de algum dia publicá-los, mas havia tanta comoção desastrosa de tudo que acontecera”.  Ela alimentava em si um fio de esperança que acabou, nesses nossos tempos pandêmicos, se tornando realidade para tantos que, como Bianca, se descobriram escritores... E não é um dia sublime aquele em que você tem nas mãos um livro, filho precioso contendo em seu interior muito mais que um filho gerado no útero? Ou você pode fazer um paralelo com um pequeno pássaro morto que pode simbolizar um breve ciclo que pareceu longo dado a quantidade de momentos complicados, mas que, pela força do vento das mudanças, alimentou a terra, como um livro alimenta intelectualmente aqueles que o leem... E é aqui que, eu que leio elas, uso as palavras da Géssica Menino: “Pois sois belas, sois uma beleza de conquista, uma guerreira da vida, a geradora da fonte inesgotável, a desculpa alheia de espinhos. Sois tudo e nada ao mesmo tempo em que carrega consigo um silêncio arrebatador e um grito de um vencedor. Sois”.

A Chave de ouro ou segundo Terceto desse meu Soneto mental no qual inseri esse livro se descortina com “A Letra C”, “A Porta Azul” e “A Menina do Laço de Fita”...

Sem se prender a aliterações ou que chamaríamos de tautogramas a Géssica mostra um personagem dessa era do “teclado” procurando aquela palavra certa e conclui consternadamente que o mundo se encontra convalescente...

“Era uma manhã ensolarada com raios de sol que despojavam como um suco de laranja avassalador gritando ou em confronto com um copo de vidro”. Você já olhou para si, de longe, com um binóculo? Já se viu em sua rotina, se olhou mais velha, mais nova outra vez e guardou na mente uma referência qualquer como uma barreira entre você e você mesma, tipo uma “Porta azul”?

E com ela o livro termina, mas um novo ciclo começa porque todo esse despir de alma poética, a meu ver, mostra “A menina do laço de fita. Agora, atormentada, desiludida, envergonhada. Perguntava a si mesma: Onde estava o amor”?

Quem escreve e descreve com essa forma singela e sensível, talvez nem saiba, mas permite que muitas pessoas se vejam nesses cenários e entendam o quanto “tudo vale a pena se a alma não é pequena” como cunhou Pessoa a nos dizer que pessoas somos e pessoais são os nossos sonhos e, em vez de limão, que tal uma laranja? Que tal as de Alice Mazela? Ou será Géssica Menino?

Uma leitura muito recomendável! Divirta-se!


[foto arquivo pessoal]

Ronaldo Rhusso: autor anual de “Meditações para o Pôr do Sol” da Casa Publicadora Brasileira pela União Sudeste dos IASD, do Compêndio poético “2016, o Dia, o Tema e o Poema” (produção independente) e de “Atos de Jesus” pelo Clube de Autores (2022), além de cordéis em parceria com membros da Academia de Cordel do Vale da Paraíba. Escreve, principalmente, no site “Descanso das Letras” e em seu blogue particular “A Sós Com a Poesia”.


sexta-feira, 9 de setembro de 2022

VERBO MULHER: HELENA SOLTE SUAS FERAS, POR HELENA TERRA

 


V E R B O M U L H E R|02

HELENA SOLTE SUAS FERAS

POR HELENA TERRA 


        “Escute as feras” é o nome do livro da antropóloga francesa Nastassja Martin, que teve o rosto desfigurado por um urso. Um urso de verdade, quadrúpede, animal irracional vivendo em seu ambiente e território. Agressivo sob o nosso ponto de vista humano. Um urso como qualquer outro se o pensarmos de acordo com a sua programação genética. Talvez até passivo dentro de sua própria espécie. Mas um exemplo de violência dentro da nossa. Um urso parecido com as centenas de milhares de homens, milhões na verdade, que diariamente atacam nossas mentes e corpos e que tentam nos eliminar ou a nossos planos e ambições como se fossemos insetos. Falo de nós, as mulheres. E falo de mim. Como Tolstoi, que disse que falando de sua aldeia estaria falando do mundo, acredito que falando sobre a minha existência falarei sobre a de todas as outras mulheres, mesmo daquelas que discordam em gênero, grau e número comigo e votam no senhor que ocupa a presidência do país como um monarca a um trono nos tempos do Brasil colônia.

        O Brasil, apesar de estarmos no ano de 2022, em um certo sentido, segue colonial, oprimindo a si mesmo e preso a seu próprio provincianismo e ao seu patriarcado de terceiro mundo. Sim, o patriarcado, embora uma estrutura homogênea, apresenta diferentes camadas de ação. Aqui, nessa terra quase sem Pau-Brasil e com uma grande diversidade de bichos, nós, as mulheres estamos mais para Gregor Sansa que para Madame Bovary, personagem, diga-se de passagem, também pouco aspirável. Pois é, eu me identifico com o Gregor Sansa. Kafka não sabe, mas ele falava de uma mulher.  “A Metamorfose”, as metamorfoses somos nós, muitas vezes cumprindo três turnos de jornada, recebendo menos por nosso trabalho e ainda tendo de ouvir críticas maldosas a respeito de nossas aparências, gostos e opiniões. E quando falo em críticas maldosas estou sendo, como muitos homens gostam de dizer, boazinha, porque uma boa parte dos homens gosta de verdade de nos ofender e de diminuir a nossa autoestima. Mais de um tentou me fazer sua vítima:

Helena, você está muito magra!

Helena, e esse fio de cabelo branco?

Helena, não entendi essa sua roupa!

Helena, não quero dizer que você não é inteligente, mas você não sabe o que está dizendo.

Helena, você é louca!

             E por aí vai.

        E por aí também se foram os que não conseguiram controlar o seu machismo e misoginia. Não servem para mim. Não gosto de gente rude. Não servem para ninguém, sabemos, como também sabemos que uma parte considerável de pessoas ainda ignora o importante ditado que diz “quem avisa, amigo é”. Fazer o quê? Ler. Conversar com as outras mulheres. Terapia. Se possível, análise mesmo. Graças a minha, tenho conseguido me manter distante dos homens com complexo de inseticida ou de chinelo de borracha que, por inveja, pensam em me esmagar. Essa é uma das minhas descobertas mais recentes: há uma quantidade expressiva de homens invejosos ao redor. Eles são o som ao redor, e não é fácil abafar suas vozes. De tão inseridas na dinâmica patriarcal, acabamos naturalizando à toxicidade e à agressividade como se elas fossem partes legítimas e positivas das relações. E de tão desamparadas pela sociedade, e mesmo por nossas famílias, acabamos por esconder as agressões que sofremos e, de certa forma, também por pôr em dúvida o nosso discernimento. Levante a mão quem nunca foi chamada de louca, maluca, pirada, despirocada, histérica, doida, raivosa etc. Se tem uma forma de violência enraizada no inconsciente coletivo masculino é essa de tentar nos tirar a razão e de nos jogar no mundo irracional das feras. Falemos então de feras. Conheço muitas de calças, camisas e barbas sobre as faces vivendo fora dos zoológicos e mostrando sorrisos antes de mostrar as garras.  Os índices de violência, em suas mais diversas formas, contra as mulheres estão altíssimos mundo afora. Mas vou falar desse mundo adentro em que vivo e, como o Cazuza, vou cantar “Brasil, mostra a tua cara”. Mostra, Brasil, a cara dos seus homens.

        Conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, trinta mulheres sofreram agressão física por hora; uma mulher foi vítima de estupro a cada 10 minutos; três mulheres foram assassinadas por dia e uma travesti ou mulher trans foi assassinada a cada dois. Ou seja, 2020 foi o circo romano e a matança das baleias. Aliás levante a mão também quem nunca foi chamada de baleia ou teve uma amiga que tenha sido. Em 2020, morremos. E em 2021 também. Eu morri em 2021, 2020, 19, 18. Morro desde que nasci. E de nada adianta cantar que neste ano não morrerei porque eu sou uma mulher que morre com as outras. Não tenho vocação para ilha. Os outros torrões, como escreveu John Donne, no “Meditações”, me interessam. Eu sou uma pessoa continente. E sou uma mulher cheia de vida e de sobrevida por persistência, como uma das minhas alunas no presídio em que trabalho fala. Persistir é um dos meus verbos preferidos. Os meus verbos, apesar de toda a oposição que me cerca, são construtivos, leais e amigos. Amigos como poucos homens conseguem ser de uma mulher. Os meus amigos conto nos dedos da mão esquerda embora eu seja destra. E falo em esquerda porque posso. “Ser de esquerda é ter uma posição filosófica perante a vida, onde a solidariedade prevalece sobre o egoísmo”. Frase do Pepe Mujica. Não me falta senso de solidariedade. Minha consciência e ação social não são só da boca para fora. Não vivo só em causa própria. Não exploro as outras pessoas. Não tiro proveito de seus bens, personalidades, capacidades produtivas e sentimentos. Trabalho e convivo com as pessoas por elas, por mim e por nós todos como se fossemos um único corpo, uma grande placenta.

          Placenta. Pensando agora, talvez pareça estranho eu recorrer a essa palavra. Não é porque podemos produzir uma que temos de produzi-la. Não é porque uma mulher pode ser mãe que ela tem de ser. Quem insiste com essa ideia, por incrível que pareça, são justo aqueles que dizem ter tirado Eva de suas costelas.  E isso também é estranho porque soa religioso, cristão, do reino de Deus. “O que realmente duvido é do amor do pai e do filho. Não acredito nesse sentimento genuíno de um ser que é cem por cento Deus e cem por cento homem e morreu por nós. Um homem? Ah, não! Talvez se fosse Maria, Nossa Senhora era mais fácil de acreditar.”, uma das narradoras do “A filha primitiva”, da Vanessa passo, diz. Pois é. Eu também tenho dificuldade de dialogar com esse senhor que fez apenas metade da população do planeta à sua imagem e semelhança. Eu não me pareço com ele. Ele não se parece comigo, ignora uma menstruação, não gera crianças, tampouco as perde ou ganha em um parto. Deus não sente o que se passa debaixo da minha pele e ainda me orienta a ser compreensiva e piedosa com aqueles que “não sabem o que fazem”. Vem cá, desde quando os homens não sabem o que fazem? Os homens não são cheios de saberes, opiniões e verdades?  

Disse Santo Ambrósio: “Adão foi induzido ao pecado por Eva e não Eva por Adão.”

Disse São João Crisóstomo: “em meio a todos os animais selvagens não se encontra nenhum mais nocivo do que a mulher.”

Disse São Paulo, esse que dá o nome a maior cidade da América Latina: “o homem não foi tirado da mulher, e sim a mulher do homem; e o homem não foi criado para a mulher, e sim esta para o homem”.  

        Santos! Todos santos, a nata da religião que sustenta o pensamento ocidental. Mentores desses que costumam dizer “não sou santo” para justificar seus erros. Imagina se fossem.  

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Helena Terra
[arquivo pessoal]
@helenaterracamargo

Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

quarta-feira, 7 de setembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, POR RILNETE MELO



N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|03

 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA  DO BRASIL


Por RILNETE MELO


              Era final de outono na Bahia, o sol começava a se esconder ao longe, no horizonte da estrada de terra batida da fazenda Itapororoca. Pelo caminho uma dupla prosseguia a pé, cantando o refrão: “Pelo bem dessa nação/ pela terra e pelo pão /independência na cabeça e amor no coração” ... Era Quitéria e seu cunhado soldado Medeiros que voltavam de mais um dia de caça. Durante todo o percurso matutava na cabeça de Quitéria a ideia de ingressar no exército, e assim como José Medeiros lutar pela independência do seu país, bem como dar um basta nessa ideologia de desigualdade de gênero. Naquele dia, ao chegar em casa, tirando o casaco suado, pendurando o canil no armador da rede, exibindo o cinturão com algumas munições e a espingarda que lhe descia quadril abaixo, ela batia na mesa dando socos e em voz alta gritava: Eu vou amanhã naquele quartel! Nem que eu tenha que fugir de casa! Ah! Juro que eu vou!

Na semana anterior, um emissário do governo havia ido à casa do pai de Quitéria com o objetivo de convocar voluntários para o combate libertário. O velho Gonçalves disse que não tinha nenhum filho para enviar à guerra e que deixassem ele em paz. Escondida atrás da porta Quitéria ouvia todo aquele blá blá blá com paixão, curiosidade e o peito de mulher guerreira batendo descompassado, ardendo de vontade de dizer que ela ia, e pensava; Ah! Como eu queria ser homem nessa hora!

Mas, desgarrando-se do modelo de família cristã burguesa, tendo conhecimento de que seus hormônios femininos não tiravam seus atributos de inteligência e criatividade, teve um insight brilhante!

—Tetê! Eu vou me apresentar no exército brasileiro amanhã! - disse Quitéria.

—Você enlouqueceu menina? No exército não aceita mulher, sem esquecer que nosso pai jamais aceitará essa sua decisão. - retrucou Tereza

Tetê, como Quitéria chamava sua irmã mais nova, fora cuidada por ela desde que sua mãe havia falecido lhe deixando com 10 anos de idade, dois irmãos e uma irmã para cuidar.  A vida não fora fácil para Quitéria depois que sua mãezinha foi morar no céu, pois sua madrasta não aceitava esse seu espírito independente, com sede de emancipação e quebra de tabus. E nessa lengalenga ela cresceu, ouvindo que mulher nasceu para bordar, tecer, fiar, cozinhar e cuidar da casa e do marido. O tempo passou, Tereza casou-se com José Medeiros e Quitéria permaneceu solteira, não teve oportunidade de estudar, mas de caça, pesca, montaria, armas e anseio de autonomia... ah! ela entendia até demais!

Naquele dia, Quitéria tinha ido até a casa da irmã para lhe falar de um plano de fuga, pois soube que seu pai ia fazer uma viagem de negócios.

— Minha irmã! Eu tive uma ideia genial! posso contar com sua ajuda? – falava Quitéria entusiasmada. – Vou cortar meu cabelo igualzinho ao de um homem, vou fugir de casa e me alistar no regimento da artilharia, mas preciso que você me empreste uma roupa do Medeiros. Tereza ficou estatelada com aquela atitude da irmã, mas não podia negar seus favores àquela que sempre cuidara dela como se fosse sua mãe:

— Oxe Mainha! inté eu fiquei com vontade de ir! Não fosse o Zé e as crianças eu ia também! – disse Tereza

— Pois ande logo que eu tô avexada! Me empresta o uniforme do Zé que hoje eu vou usar seu codinome e vou ser Soldado José de Medeiros e ninguém me segura!

Esse era o maior desejo de Quitéria, pois seus ideais estavam bem longe do patriarcado machista imposto pela sociedade.   Com a necessidade de legitimar suas inquietações, agora se dirigia até a barbearia do velho Quincas para a transformação...

Então, decidida a tomar o passo mais importante da sua vida, adentrou a barbearia, dando um tapinha no ombro do Quincas, pediu que deixasse suas madeixas com um corte masculino daqueles bem militar. O velho barbeiro esbugalhou os olhos - sem entender nada - disse-lhe apenas que iria cumprir o seu papel, mas sabia que aquele feito não seria do agrado do seu pai, pois ele conservava suas filhas no âmbito doméstico, limitando o seu espaço feminino e os costumes sociais.

— Pois assunte bem Sr. Quincas! Eu não vou seguir à risca esse papel social imposto pela sociedade, e aproveitando que meu pai viajou, hoje eu vou me alistar no exército e não ouse dar com a língua nos dentes.

Cabisbaixo, sem saber a quem obedecia, mas com a ética absoluta de um bom profissional, Quincas prometeu sigilo à menina Quitéria, que agora, deixando aquele recinto em busca do jogo da vida que lhe tornaria mais feliz, sacodia os últimos fios de cabelos que teimavam em agarrar-se à sua nova pele. Um vento de reforma profunda soprava seu rosto e descia entre a abertura do uniforme, indo até o seio arfando, apertado pela faixa que tirava a protuberância feminina, dando vazão a sua autonomia e ao seu desejo incansável de luta.

As botinas eram pesadas; mas nos pés de Quitéria pareciam travesseiros de plumas. A calça folgada escondia as belas curvas e davam-lhe segurança no disfarce da sua nova identidade. A aba do quepe sobre os olhos não conseguia esconder o brilho que afugentava suas retinas, os passos acelerados iam de encontro ao batalhão “Regimentos de artilharia”, onde o sonho de lutar pela independência do brasil e a sua emancipação, ia se concretizar. Era manhã de sol forte, a rua estreita que dava acesso ao quartel agora parecia agigantar-se. Somente vira assim, a estrada densa da floresta, a mira na sua caça e o sonho de conquistar sua própria independência.

Quitéria pensava em tudo que deixaria para trás, o seu cavalo de boa montaria, as manhãs de pesca, os tiros ao alvo... e o perdão do seu pai. Não via agora com os olhos do corpo e sim com os olhos da alma lutadora e forte. Pouco conhecera da vida da cidade, mas o que ouvia sobre o laço colonial que existia entre Brasil e Portugal era suficiente para romper os obstáculos que encontrasse até chegar àquele quartel. A fila para alistamento estava grande, mas grande mesmo era a vontade de romper a fronteira predominantemente machista e poder ter sua contribuição na sociedade.

— Nome?  José da Silva Medeiros. - Goza de boa saúde? Sim senhor! – Promete honrar o seu compromisso com a pátria? Sim senhor! – Quitéria respondia a todas as perguntas sentindo que estava atendendo aos critérios militares. No início tudo estava sob o controle e seu sexo não foi reconhecido, mas passado algum tempo, seu velho pai, por desforra à sua fuga, revelou ao oficial comandante a sua verdadeira identidade. O saiote estilo escocês de Quitéria, customizado por suas delicadas mãos, deu o ar da graça em infinitas batalhas a favor da independência, afogando o machismo, que agora ficava embaixo do que vestia o seu ego, quebrando barreiras e mostrando a força da mulher.

Era manhã de verão no Rio de Janeiro, o sol trazia os primeiros raios, que entravam pela janela do quartel iluminando o diploma na parede dos aposentos do capitão do Batalhão do Imperador, que agora fumava seu charuto e descansava suas belas e torneadas pernas, após devorar um prato de farofa de ovo com bacon, tomate e cebola, preparado por suas mãos, graças aos seus dotes femininos...

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

LIVROS & ENCANTAMENTOS: "MULHER MARIPOSA", DE MARI VENTURA, POR DANIELA CARUZA



LIVROS & ENCANTAMENTOS|01

"MULHER MARIPOSA: DO MAU PRESSÁGIO FEZ POESIA", DE MARI VENTURA


POR DANIELA CARUZA


Onde dorme a poesia da mulher piauiense? Quantos desejos desconhecidos lhes convocam à noite para passear em sonhos dormidos, insones, proibidos?

Pouco sabemos das mulheres piauienses que se apropriaram da escrita, manifestando através das palavras os próprios anseios, desejos, sensações e visões, como protagonistas e testemunhas de um tempo[1]. Menos ainda sabemos daquelas que não escreveram. Da mulher sertaneja, o que se vê, de maneira geral, é um retrato estanque, mudo, calado, de uma existência submetida, sofrida, sobrevivente. Uma personagem do passado, se for. Se ouvíssemos a sua voz, o que ela diria? A reconheceríamos?

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| foto: arquivo pessoal |

A histórica exclusão do rol daqueles que escrevem e devem ser lidos e lembrados faz da escrita da mulher piauiense, ainda hoje, uma ousadia. Uma ousadia tão grande quanto a de manter viva, noite e dia, em nossos corpos e espíritos, a poesia.

A sensação que permanece é a de que fomos roubadas. Desde muito cedo na história, na curta história de uma vida, na longa história de vidas passadas. Roubaram-nos os séculos, os meses, os dias, os anos. Roubaram-nos até mesmo o sono.

Ficamos com os trapos. A dor engolida, o lamento calado, os sonhos enterrados, os medos vividos. Uma raiva amarga e ferida, numa vida comprida, corrida, ocupada, escorrida pelos dias. Dormindo abraçadas com a solidão. Fingindo costume.

| foto: arquivo pessoal |

Mari Ventura
é uma mulher do sertão Piauiense que nasceu e vive entre linhas e letras. É professora, artesã e escritora. Entende escrita como um lugar de essência (subjetividades e plurissignificação), existência (ter voz e vez), resistência (construção desconstrução e reconstrução de concepções e contextos sociais). Se reconhece como uma poetisa do avesso ao verso. Ainda tem um estoque de medos, mas vai bebendo a coragem em pequenas doses. Autora do livro MULHER MARIPOSA publicado em 2022 pela Editora Voz de Mulher. 

Nem mesmo nos reconhecemos. Silenciadas, roubadas de nós mesmas, nos tornamos prisioneiras, encarregadas da própria carceragem. Acusadas do crime do desejo, o desejo de existir. Não parece haver saída, a não ser fugir, roubar de volta o que nem sabíamos que nos havia sido roubado. Afinal, não é possível viver fugindo de si mesma.

Assim é que, furtiva, nos nasce a poesia. Escondida, acuada, proibida, sentindo-se culpada, fugitiva. Até que irrompe, furiosa, voraz. Por vezes se debate, peleja, padece, mas já não pode ser contida. Grita. Nua, em carne viva, desafia. Parece até loucura, tanta vontade de ser. Preferimos chamar coragem.

Capa do Mulher Mariposa, Editora Voz de Mulher, 2022

Com sua poesia, Mari Ventura questiona os lugares que são considerados apropriados para uma mulher na sociedade, os papéis de gênero que nos são impostos, o teor pejorativo associado à mulher que se entrega à noite, aos devaneios, à poesia, a mulher da vida. É a mulher que fala em sua própria voz, de seus próprios desejos, território que lhe foi proibido. A mulher que se encontra em sua própria companhia. Fala também de cura e da descoberta da luz/lucidez em meio à escuridão.

As poesias ocultas na noite são como sementes guardadas debaixo da terra. Despertam silenciosas, e, vagarosamente, enraízam por baixo e por dentro, antes de sair ao sol. São também como a mariposa, que, antes de ser ela mesma, rasteja, e bravamente recolhe-se em seu casulo, sua solidão, para dentro de si compor-se em asas, até sair voando pelo mundo.

Vê-las voando é, para muitos, um assombro. Para nós, é pura poesia. Um sopro de luz.

Que alegria poder se criar assim, afinal.


**O texto acima é o prefácio da o obra Mulher Mariposa, de autoria de Mari Ventura.


Daniela Caruza
| foto: arquivo pessoal |

Cantora e compositora, Daniela Caruza vive em São Raimundo Nonato, na região da Serra da Capivara, e sua música pulsa com as forças que encontra no sertão e na caatinga. Os versos e a musicalidade de Daniela Caruza leem o mundo a partir dessa paisagem e criam poesia, misturam guitarras com forró e baião. Para ela, cantar a partir desse chão é um convite para nos conectarmos com nossas heranças mais profundas.


[1] Rocha, Olívia Candeia Lima. Flores Incultas e a Academia Brasileira de Letras: escritoras piauienses no contexto do feminismo no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. In: Mulheres e a Literatura Brasileira. Silva, N. F. C.; Cruz, L. G.; Tatim, J.; Pereira, M. P. T. (orgs.) Macapá: UNIFAP, 2017.

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