quarta-feira, 7 de setembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL, POR RILNETE MELO



N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|03

 0 GRITO FEMININO NA INDEPENDÊNCIA  DO BRASIL


Por RILNETE MELO


              Era final de outono na Bahia, o sol começava a se esconder ao longe, no horizonte da estrada de terra batida da fazenda Itapororoca. Pelo caminho uma dupla prosseguia a pé, cantando o refrão: “Pelo bem dessa nação/ pela terra e pelo pão /independência na cabeça e amor no coração” ... Era Quitéria e seu cunhado soldado Medeiros que voltavam de mais um dia de caça. Durante todo o percurso matutava na cabeça de Quitéria a ideia de ingressar no exército, e assim como José Medeiros lutar pela independência do seu país, bem como dar um basta nessa ideologia de desigualdade de gênero. Naquele dia, ao chegar em casa, tirando o casaco suado, pendurando o canil no armador da rede, exibindo o cinturão com algumas munições e a espingarda que lhe descia quadril abaixo, ela batia na mesa dando socos e em voz alta gritava: Eu vou amanhã naquele quartel! Nem que eu tenha que fugir de casa! Ah! Juro que eu vou!

Na semana anterior, um emissário do governo havia ido à casa do pai de Quitéria com o objetivo de convocar voluntários para o combate libertário. O velho Gonçalves disse que não tinha nenhum filho para enviar à guerra e que deixassem ele em paz. Escondida atrás da porta Quitéria ouvia todo aquele blá blá blá com paixão, curiosidade e o peito de mulher guerreira batendo descompassado, ardendo de vontade de dizer que ela ia, e pensava; Ah! Como eu queria ser homem nessa hora!

Mas, desgarrando-se do modelo de família cristã burguesa, tendo conhecimento de que seus hormônios femininos não tiravam seus atributos de inteligência e criatividade, teve um insight brilhante!

—Tetê! Eu vou me apresentar no exército brasileiro amanhã! - disse Quitéria.

—Você enlouqueceu menina? No exército não aceita mulher, sem esquecer que nosso pai jamais aceitará essa sua decisão. - retrucou Tereza

Tetê, como Quitéria chamava sua irmã mais nova, fora cuidada por ela desde que sua mãe havia falecido lhe deixando com 10 anos de idade, dois irmãos e uma irmã para cuidar.  A vida não fora fácil para Quitéria depois que sua mãezinha foi morar no céu, pois sua madrasta não aceitava esse seu espírito independente, com sede de emancipação e quebra de tabus. E nessa lengalenga ela cresceu, ouvindo que mulher nasceu para bordar, tecer, fiar, cozinhar e cuidar da casa e do marido. O tempo passou, Tereza casou-se com José Medeiros e Quitéria permaneceu solteira, não teve oportunidade de estudar, mas de caça, pesca, montaria, armas e anseio de autonomia... ah! ela entendia até demais!

Naquele dia, Quitéria tinha ido até a casa da irmã para lhe falar de um plano de fuga, pois soube que seu pai ia fazer uma viagem de negócios.

— Minha irmã! Eu tive uma ideia genial! posso contar com sua ajuda? – falava Quitéria entusiasmada. – Vou cortar meu cabelo igualzinho ao de um homem, vou fugir de casa e me alistar no regimento da artilharia, mas preciso que você me empreste uma roupa do Medeiros. Tereza ficou estatelada com aquela atitude da irmã, mas não podia negar seus favores àquela que sempre cuidara dela como se fosse sua mãe:

— Oxe Mainha! inté eu fiquei com vontade de ir! Não fosse o Zé e as crianças eu ia também! – disse Tereza

— Pois ande logo que eu tô avexada! Me empresta o uniforme do Zé que hoje eu vou usar seu codinome e vou ser Soldado José de Medeiros e ninguém me segura!

Esse era o maior desejo de Quitéria, pois seus ideais estavam bem longe do patriarcado machista imposto pela sociedade.   Com a necessidade de legitimar suas inquietações, agora se dirigia até a barbearia do velho Quincas para a transformação...

Então, decidida a tomar o passo mais importante da sua vida, adentrou a barbearia, dando um tapinha no ombro do Quincas, pediu que deixasse suas madeixas com um corte masculino daqueles bem militar. O velho barbeiro esbugalhou os olhos - sem entender nada - disse-lhe apenas que iria cumprir o seu papel, mas sabia que aquele feito não seria do agrado do seu pai, pois ele conservava suas filhas no âmbito doméstico, limitando o seu espaço feminino e os costumes sociais.

— Pois assunte bem Sr. Quincas! Eu não vou seguir à risca esse papel social imposto pela sociedade, e aproveitando que meu pai viajou, hoje eu vou me alistar no exército e não ouse dar com a língua nos dentes.

Cabisbaixo, sem saber a quem obedecia, mas com a ética absoluta de um bom profissional, Quincas prometeu sigilo à menina Quitéria, que agora, deixando aquele recinto em busca do jogo da vida que lhe tornaria mais feliz, sacodia os últimos fios de cabelos que teimavam em agarrar-se à sua nova pele. Um vento de reforma profunda soprava seu rosto e descia entre a abertura do uniforme, indo até o seio arfando, apertado pela faixa que tirava a protuberância feminina, dando vazão a sua autonomia e ao seu desejo incansável de luta.

As botinas eram pesadas; mas nos pés de Quitéria pareciam travesseiros de plumas. A calça folgada escondia as belas curvas e davam-lhe segurança no disfarce da sua nova identidade. A aba do quepe sobre os olhos não conseguia esconder o brilho que afugentava suas retinas, os passos acelerados iam de encontro ao batalhão “Regimentos de artilharia”, onde o sonho de lutar pela independência do brasil e a sua emancipação, ia se concretizar. Era manhã de sol forte, a rua estreita que dava acesso ao quartel agora parecia agigantar-se. Somente vira assim, a estrada densa da floresta, a mira na sua caça e o sonho de conquistar sua própria independência.

Quitéria pensava em tudo que deixaria para trás, o seu cavalo de boa montaria, as manhãs de pesca, os tiros ao alvo... e o perdão do seu pai. Não via agora com os olhos do corpo e sim com os olhos da alma lutadora e forte. Pouco conhecera da vida da cidade, mas o que ouvia sobre o laço colonial que existia entre Brasil e Portugal era suficiente para romper os obstáculos que encontrasse até chegar àquele quartel. A fila para alistamento estava grande, mas grande mesmo era a vontade de romper a fronteira predominantemente machista e poder ter sua contribuição na sociedade.

— Nome?  José da Silva Medeiros. - Goza de boa saúde? Sim senhor! – Promete honrar o seu compromisso com a pátria? Sim senhor! – Quitéria respondia a todas as perguntas sentindo que estava atendendo aos critérios militares. No início tudo estava sob o controle e seu sexo não foi reconhecido, mas passado algum tempo, seu velho pai, por desforra à sua fuga, revelou ao oficial comandante a sua verdadeira identidade. O saiote estilo escocês de Quitéria, customizado por suas delicadas mãos, deu o ar da graça em infinitas batalhas a favor da independência, afogando o machismo, que agora ficava embaixo do que vestia o seu ego, quebrando barreiras e mostrando a força da mulher.

Era manhã de verão no Rio de Janeiro, o sol trazia os primeiros raios, que entravam pela janela do quartel iluminando o diploma na parede dos aposentos do capitão do Batalhão do Imperador, que agora fumava seu charuto e descansava suas belas e torneadas pernas, após devorar um prato de farofa de ovo com bacon, tomate e cebola, preparado por suas mãos, graças aos seus dotes femininos...

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

6 comentários:

  1. Amei mãe, a senhora arrasa muito!
    👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻😍😍😍

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  2. Muito bom o texto!

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  3. Um texto pertinente , pois a história nunca mostra a participação feminina na independência , passo importante para a emancipação da mulher. Parabéns!

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