Era final de outono na Bahia, o sol começava a se esconder ao longe, no horizonte da estrada de terra batida da fazenda Itapororoca. Pelo caminho uma dupla prosseguia a pé, cantando o refrão: “Pelo bem dessa nação/ pela terra e pelo pão /independência na cabeça e amor no coração” ... Era Quitéria e seu cunhado soldado Medeiros que voltavam de mais um dia de caça. Durante todo o percurso matutava na cabeça de Quitéria a ideia de ingressar no exército, e assim como José Medeiros lutar pela independência do seu país, bem como dar um basta nessa ideologia de desigualdade de gênero. Naquele dia, ao chegar em casa, tirando o casaco suado, pendurando o canil no armador da rede, exibindo o cinturão com algumas munições e a espingarda que lhe descia quadril abaixo, ela batia na mesa dando socos e em voz alta gritava: Eu vou amanhã naquele quartel! Nem que eu tenha que fugir de casa! Ah! Juro que eu vou!
Na semana anterior, um emissário do governo havia ido
à casa do pai de Quitéria com o objetivo de convocar voluntários para o combate
libertário. O velho Gonçalves disse que não tinha nenhum filho para enviar à
guerra e que deixassem ele em paz. Escondida atrás da porta Quitéria ouvia todo
aquele blá blá blá com paixão, curiosidade e o peito de mulher guerreira
batendo descompassado, ardendo de vontade de dizer que ela ia, e pensava; Ah!
Como eu queria ser homem nessa hora!
Mas, desgarrando-se do modelo de família cristã burguesa,
tendo conhecimento de que seus hormônios femininos não tiravam seus atributos
de inteligência e criatividade, teve um insight brilhante!
—Tetê! Eu vou me apresentar no exército brasileiro
amanhã! - disse Quitéria.
—Você enlouqueceu menina? No exército não aceita
mulher, sem esquecer que nosso pai jamais aceitará essa sua decisão. - retrucou
Tereza
Tetê, como Quitéria chamava sua irmã mais nova, fora
cuidada por ela desde que sua mãe havia falecido lhe deixando com 10 anos de idade,
dois irmãos e uma irmã para cuidar. A vida não fora fácil para Quitéria
depois que sua mãezinha foi morar no céu, pois sua madrasta não aceitava esse
seu espírito independente, com sede de emancipação e quebra de tabus. E nessa lengalenga
ela cresceu, ouvindo que mulher nasceu para bordar, tecer, fiar, cozinhar e
cuidar da casa e do marido. O tempo passou, Tereza casou-se com José Medeiros e
Quitéria permaneceu solteira, não teve oportunidade de estudar, mas de caça,
pesca, montaria, armas e anseio de autonomia... ah! ela entendia até demais!
Naquele dia, Quitéria tinha ido até a casa da irmã
para lhe falar de um plano de fuga, pois soube que seu pai ia fazer uma viagem
de negócios.
— Minha irmã! Eu tive uma ideia genial! posso contar
com sua ajuda? – falava Quitéria entusiasmada. – Vou cortar meu cabelo
igualzinho ao de um homem, vou fugir de casa e me alistar no regimento da
artilharia, mas preciso que você me empreste uma roupa do Medeiros. Tereza ficou
estatelada com aquela atitude da irmã, mas não podia negar seus favores àquela
que sempre cuidara dela como se fosse sua mãe:
— Oxe Mainha! inté eu fiquei com vontade de ir! Não
fosse o Zé e as crianças eu ia também! – disse Tereza
— Pois ande logo que eu tô avexada! Me empresta o
uniforme do Zé que hoje eu vou usar seu codinome e vou ser Soldado José de
Medeiros e ninguém me segura!
Esse era o maior desejo de Quitéria, pois seus
ideais estavam bem longe do patriarcado machista imposto pela
sociedade. Com a necessidade de legitimar suas inquietações, agora
se dirigia até a barbearia do velho Quincas para a transformação...
Então, decidida a tomar o passo mais importante da sua
vida, adentrou a barbearia, dando um tapinha no ombro do Quincas, pediu que
deixasse suas madeixas com um corte masculino daqueles bem militar. O velho
barbeiro esbugalhou os olhos - sem entender nada - disse-lhe apenas que iria
cumprir o seu papel, mas sabia que aquele feito não seria do agrado do seu pai,
pois ele conservava suas filhas no âmbito doméstico, limitando o seu
espaço feminino e os costumes sociais.
— Pois assunte bem Sr. Quincas! Eu não vou seguir à
risca esse papel social imposto pela sociedade, e aproveitando que meu pai
viajou, hoje eu vou me alistar no exército e não ouse dar com a língua nos
dentes.
Cabisbaixo, sem saber a quem obedecia, mas com a ética
absoluta de um bom profissional, Quincas prometeu sigilo à menina Quitéria, que
agora, deixando aquele recinto em busca do jogo da vida que lhe tornaria mais
feliz, sacodia os últimos fios de cabelos que teimavam em agarrar-se à sua nova
pele. Um vento de reforma profunda soprava seu rosto e descia entre a abertura
do uniforme, indo até o seio arfando, apertado pela faixa que tirava a
protuberância feminina, dando vazão a sua autonomia e ao seu desejo incansável
de luta.
As botinas eram pesadas; mas nos pés de Quitéria pareciam travesseiros de plumas. A calça folgada escondia as belas curvas e davam-lhe segurança no disfarce da sua nova identidade. A aba do quepe sobre os olhos não conseguia esconder o brilho que afugentava suas retinas, os passos acelerados iam de encontro ao batalhão “Regimentos de artilharia”, onde o sonho de lutar pela independência do brasil e a sua emancipação, ia se concretizar. Era manhã de sol forte, a rua estreita que dava acesso ao quartel agora parecia agigantar-se. Somente vira assim, a estrada densa da floresta, a mira na sua caça e o sonho de conquistar sua própria independência.
— Nome? José da Silva Medeiros. - Goza de boa
saúde? Sim senhor! – Promete
honrar o seu compromisso com a pátria? Sim
senhor! – Quitéria respondia a todas as perguntas sentindo que estava atendendo
aos critérios militares. No início tudo estava sob o controle e seu sexo não
foi reconhecido, mas passado algum tempo, seu velho pai, por desforra à sua
fuga, revelou ao oficial comandante a sua verdadeira identidade. O
saiote estilo escocês de Quitéria, customizado por suas delicadas mãos,
deu o ar da graça em infinitas batalhas a favor da independência, afogando
o machismo, que agora ficava embaixo do que vestia o seu ego, quebrando
barreiras e mostrando a força da mulher.
Era manhã de verão no Rio de Janeiro, o sol trazia os
primeiros raios, que entravam pela janela do quartel iluminando o diploma
na parede dos aposentos do capitão do Batalhão do Imperador, que agora fumava
seu charuto e descansava suas belas e torneadas pernas, após devorar um prato
de farofa de ovo com bacon, tomate e cebola, preparado por suas mãos,
graças aos seus dotes femininos...
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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis.
Amei mãe, a senhora arrasa muito!
ResponderExcluir👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻😍😍😍
Que bom ter você por aqui filho! Obrigada pelo apoio❤
ExcluirMuito bom o texto!
ResponderExcluirObrigada pela leitura Flávia 🤝🏻⚘
ExcluirUm texto pertinente , pois a história nunca mostra a participação feminina na independência , passo importante para a emancipação da mulher. Parabéns!
ResponderExcluirObrigada pela leitura! 🤝🏻⚘
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