Era uma segunda-feira, dessas do tal calorão de 39° que quase fritava meus miolos e fritava também ovo no asfalto, dessas em que o dia branco, na verdade foi cinza; Do bombril impregnado nas unhas, pó de casa varrida no pé e massa cinzenta pensando debaixo do chuveiro: Tenho que fazer isso, depois isso, amanhã aquilo... E eternamente isso!
Exausta, depois de me virar nos 30, marido já dormindo, ponho um cafezinho na xícara, destravo o celular para escrever alguma coisa, embora com o corpo pedindo arrego, a mente ainda escrevive! Passeio pelo Instagram e vejo, enfeitando o feed viralizado, o tema da redação do Enem 2023: “Desafios para o enfrentamento da invisibilidade do trabalho de cuidado realizado pela mulher no Brasil”.
Mas o comentário que me desafiou a escrever essa crônica foi lançado para mim em um post recente, quando ainda nem tinha ideia do tema da redação e já abordava exatamente sobre a invisibilidade do papel da mulher desde os tempos mais remotos até os dias atuais, que é cuidar, amar, cuidar... E no profícuo ofício de cuidar, mendigar amor! E o famigerado machista, agora já deletado do meu perfil e denunciado, de pronto comentou: “Se você conseguir descarregar caminhão, trocar pneu de jamanta e emboçar parede, pra senhorita eu dou “A taça cacete", (me diz aí quem não soltaria as cachorras??).
Saiba muito bem, pai da Santa ignorância e do olho cego, que se tivesse olimpíadas para o trabalho doméstico, não haveria taças para tantas vencedoras! Dada a largada, a categoria “Excesso de cuidados" subiria ao pódio ao som de uma “Ave Maria", pois, no silêncio rotineiro da mulher, o cuidado doméstico soa como uma música piedosa que é (in)visível, embalando as protagonistas nos bastidores do cotidiano.
Na sociedade capitalista, a relação de poder do homem em detrimento da mulher, ouço dizer que se “dá(va) “?? pelo fato do homem ser responsável pela renda familiar, mas o mercado de trabalho foi aberto para as mulheres e a conta ainda não fechou, pois agora é dobradinha:
“Trabalho e cuidados".
A verdade é que, em pleno século XXI, a mulher ainda é o “anjo do lar”, e que anjo!! Carrega nas asas o peso do trabalho dobrado, dentro e fora de casa, no sonho de alçar voo rumo à igualdade de gênero e à equidade.
“Desde que me lembro de ser gente, lá em casa, quem dobrava os lençóis da cama era eu, minhas irmãs ou mamãe", porque isso era serviço de mulher! Isso tem mais de meio século e os lençóis ainda não chegaram nas mãos dos homens, pois eles não sabem dobrar as pontas iguais, afinal, de igualdade o universo masculino nada quer saber, né? E se sabe, ainda pergunta onde fica.
Lembro que minha avó costurava, fazia crochê, consertava guarda-chuvas, fazia a comida, varria a casa, passava a roupa no ferro de brasa, e fazia e fazia, e ainda ajudava meu avô a plantar e colher, botava a comida dele na mesa e, no final do dia, ele pedia o lençol para dormir, pois não sabia onde estava... Será que lembrava de agradecer?. Fala sério, mudou alguma coisa? Um tantinho? Nada? Coisa nenhuma?
Conquistamos sim, quebramos alguns tabus e estereótipos, como o direito ao voto e ao trabalho desigualmente remunerado, mas há um trabalho (cuidado) eterno que continua invisível, o status quo “gestão do lar”, sempre na manutenção das condições observadas.... Casa varrida, roupa lavada, fralda trocada, mamadeira pronta, comida no prato, cama arrumada... Na verdade é uma verdadeira “Largada doméstica” apenas com ponto de partida.
E aqui eu deixo um poema de minha autoria para que possamos refletir sobre nossa saúde mental, sobre o excesso de cuidados para com o outro e das situações estressantes às quais nós mulheres estamos mais propensas e sem reconhecimentos.
LARGADA DOMÉSTICA
Lambeu o chão,
esticou a língua
ao sal
e correu para a panela,
como sempre correu contra o
tempo.
Cozinhou os sonhos,
o prazer,
a vida.
- Do menu servido
no prato cotidiano -
a carne parida,
o amor ofertado,
e o reconhecimento
ao molho.
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