LIVROS & ENCANTAMENTOS|01
"MULHER MARIPOSA: DO MAU PRESSÁGIO FEZ POESIA", DE MARI VENTURA
POR DANIELA CARUZA
Onde dorme a poesia da mulher
piauiense? Quantos desejos desconhecidos lhes convocam à noite para passear em
sonhos dormidos, insones, proibidos?
Pouco sabemos das mulheres piauienses que se apropriaram da escrita, manifestando através das palavras os próprios anseios, desejos, sensações e visões, como protagonistas e testemunhas de um tempo[1]. Menos ainda sabemos daquelas que não escreveram. Da mulher sertaneja, o que se vê, de maneira geral, é um retrato estanque, mudo, calado, de uma existência submetida, sofrida, sobrevivente. Uma personagem do passado, se for. Se ouvíssemos a sua voz, o que ela diria? A reconheceríamos?
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A histórica exclusão do rol
daqueles que escrevem e devem ser lidos e lembrados faz da escrita da mulher
piauiense, ainda hoje, uma ousadia. Uma ousadia tão grande quanto a de manter
viva, noite e dia, em nossos corpos e espíritos, a poesia.
A sensação que permanece é a
de que fomos roubadas. Desde muito cedo na história, na curta história de uma
vida, na longa história de vidas passadas. Roubaram-nos os séculos, os meses,
os dias, os anos. Roubaram-nos até mesmo o sono.
Ficamos com os trapos. A dor
engolida, o lamento calado, os sonhos enterrados, os medos vividos. Uma raiva
amarga e ferida, numa vida comprida, corrida, ocupada, escorrida pelos dias.
Dormindo abraçadas com a solidão. Fingindo costume.
Nem mesmo nos reconhecemos.
Silenciadas, roubadas de nós mesmas, nos tornamos prisioneiras, encarregadas da
própria carceragem. Acusadas do crime do desejo, o desejo de existir. Não
parece haver saída, a não ser fugir, roubar de volta o que nem sabíamos que nos
havia sido roubado. Afinal, não é possível viver fugindo de si mesma.
Assim é que, furtiva, nos
nasce a poesia. Escondida, acuada, proibida, sentindo-se culpada, fugitiva. Até
que irrompe, furiosa, voraz. Por vezes se debate, peleja, padece, mas já não
pode ser contida. Grita. Nua, em carne viva, desafia. Parece até loucura, tanta
vontade de ser. Preferimos chamar coragem.
Capa do Mulher Mariposa, Editora Voz de Mulher, 2022
Com sua poesia,
Mari Ventura questiona os lugares que são considerados apropriados para uma
mulher na sociedade, os papéis de gênero que nos são impostos, o teor
pejorativo associado à mulher que se entrega à noite, aos devaneios, à poesia,
a mulher da vida. É a mulher que fala em sua própria voz, de seus próprios desejos,
território que lhe foi proibido. A mulher que se encontra em sua própria
companhia. Fala também de cura e da descoberta da luz/lucidez em meio à
escuridão.
As
poesias ocultas na noite são como sementes guardadas debaixo da terra.
Despertam silenciosas, e, vagarosamente, enraízam por baixo e por dentro, antes
de sair ao sol. São também como a mariposa, que, antes de ser ela mesma,
rasteja, e bravamente recolhe-se em seu casulo, sua solidão, para dentro de si
compor-se em asas, até sair voando pelo mundo.
Vê-las voando é, para muitos,
um assombro. Para nós, é pura poesia. Um sopro de luz.
Que alegria poder se criar assim, afinal.
**O texto acima é o prefácio da o obra Mulher Mariposa, de autoria de Mari Ventura.
Daniela Caruza | foto: arquivo pessoal | |
Cantora
e compositora, Daniela Caruza vive em São Raimundo Nonato, na região da Serra
da Capivara, e sua música pulsa com as forças que encontra no sertão e na
caatinga. Os versos e a musicalidade de Daniela Caruza leem o mundo a partir
dessa paisagem e criam poesia, misturam guitarras com forró e baião. Para ela,
cantar a partir desse chão é um convite para nos conectarmos com nossas
heranças mais profundas.
[1] Rocha, Olívia Candeia Lima.
Flores Incultas e a Academia Brasileira de Letras: escritoras piauienses no
contexto do feminismo no final do século XIX e primeiras décadas do século XX.
In: Mulheres e a Literatura Brasileira. Silva, N. F. C.; Cruz, L. G.; Tatim,
J.; Pereira, M. P. T. (orgs.) Macapá: UNIFAP, 2017.