sábado, 18 de junho de 2022

CALDEIRÃO LITERÁRIO II: DA FORÇA DOS SONHOS QUE NOS MOVE




         CALDEIRÃO LITERÁRIO II: DA FORÇA DOS SONHOS QUE NOS MOVE


Por Marta Cortezão

 

Tragediazinha

 

Cansou-se da eterna espera

o morno amor chove-não-molha

e retirou seu cavalinho

da chuva peneirando lá fora.

Casou-se com a igreja

o fogão a máquina de costura

e recheou os frios dias

de tríduos e novenas

biscoitos bolos rendas.

Mas na calada da noite

no recato escuro

ainda embala o velho sonho

de um amor absoluto.

 

{Astrid Cabral, em "Lição de Alice". Rio de Janeiro: Philobiblion, 1986, p. 39.}

 

Ano passado, durante a apresentação das poetas que participavam da Coletânea II: uma Ciranda de Deusas, fui selecionando textos de autoras contemporâneas e/ou do cânone para celebrar a presença de cada escritora que cirandava conosco, mas não somente. O meu desejo também era fomentar diálogos, mergulhar nas velhas certezas e debater-se no mar das dúvidas que ora nos preenche ora nos esvazia, nos levando sempre a provocações e ao desejo de seguir abocanhando com gosto a maçã do conhecimento.

Na ocasião, o texto-poema que selecionei foi Tragediazinha, de Astrid Cabral, que, naquele momento, me provocou o seguinte:

 

Esperar pelo exato momento que nunca chega, pelo sonho tantas vezes adiado, pela euforia adormecida no corpo, pelo corpo que se debruça, cansado, sobre o regaço do sonho guardado, pela palavra-corpo sempre prestes a nascer, pelo voo adestrado... Não, é preciso um basta! É tempo de libertar este pássaro-sonho de canto triste e solitário, no azul da alma! É tempo de permitir-se abrasar pelo fogo do "amor absoluto", pois a Literatura ainda é esse abraço que cura a fadiga diária da vida. Escrevamos!”

[Marta Cortezão, 18/06/2021]

 

         A poeta amazonense Astrid Cabral já, no título, ironiza, por meio do tom pejorativo do diminutivo “tragediazinha”, as situações tão normalizadas pela repressão patriarcal sofrida pelas mulheres e que são difíceis de serem detectadas com clareza e consciência, pois há uma dinâmica da repressão sistemática do feminino que vem se impondo – quase que invisivelmente ao longo de séculos e séculos – através das funções matriarcais que nos são atribuídas de forma pejorativa. A tríade cozinha-casa-igreja continua sendo as nossas prisões. Contudo, é ledo engano pensar que somos apenas vítimas nessa história mal contada, porque é “na calada da noite/ no recato escuro” que se “embala o velho sonho/ de um amor absoluto”. 

         O encontro com o “amor absoluto” é a liberdade não apenas no corpo, mas da mente; é a condição que nos faz abrir os olhos e negar, rotundamente, a liberdade de um voo adestrado. Essa liberdade genuína a que me refiro é a que aduba o canteiro dos sonhos, é a que gira a engrenagem e põe mulheres em movimento, porque é SEMPRE tempo de libertar este pássaro-sonho de canto triste e solitário, no azul da alma! É sempre tempo de nos permitir ser abrasadas pelo fogo do “amor absoluto”, pois a Literatura ainda é esse abraço que cura a fadiga diária da vida. Escrevamos!

 

E para mexer esse Caldeirão Literário II de hoje, experimentaremos da poção mágica das companheiras-escritoras: Tânia Alves, como seu livro Cabelos de Toin oin oin (Pontes Editora, 2021), com ilustrações de Tatiane Galheiro; também Margarida Montejano com o seu recente Fio de Prata (Scenarium livros artesanais, 2022), Isa Corgosinho acompanhada de seu livro Memórias da Pele (Editora Popular Venas Abiertas, 2022), ainda as escritoras Maria do Carmo Silva com seu Recomendações Poéticas (Cogito Editora, 2021) e Elisa Lago trazendo na bagagem seu livro-instrumento Sonoridade (Editora Edufma, 2021).

Segue abaixo a sinopse de cada livro acima citado:

 


CABELOS DE TOIN OIN OIN

Tema tão importante a ser desenvolvido desde a mais tenra infância: a importância da autoimagem positiva. Tratado de maneira tão delicada e sensível.

Valorização dos próprios traços, dos cabelos, da sua descendência... este livro trata mais do que a questão da autoestima, empodera as crianças, trazendo em versos a beleza de cada um.

 


FIO DE PRATA, publicado pela Scenarium livros artesanais, aborda a tênue linha da existência, através de sete contos ilustrados pelo artista plástico Ruy Assumpção. Os contos retratam experiências reais e imaginárias, permeadas pela fantasia que a poética da vida e da literatura ilumina. Neles, o leitor encontrará lampejos de memórias do universo feminino que o convidam e o conduzem, de forma livre e imaginativa ao exercício da reflexão.

 


O livro MEMÓRIAS DA PELE, com a simbologia de Mnemosyne, a matriarca da Musas, se abre para várias possibilidades de sentidos.

A memória evoca aqui a preocupação com a dispersão e a desmemória, o memoricídio. Há, portanto, um vínculo inseparável do que foi vivido com o que se vive, minha poesia está amparada pela historicidade de forma sincrônica e diacrônica nos vieses líricos do feminino (Quem és, Maria; Joana sob o signo do fogo etc.).

É um convite para que possamos mirar o presente com o olhar no passado, reencenar as utopias e vislumbrar o horizonte de expectativas (Fibras do tempo) para além do mínimo Eu que se volatiza na agoricidade ou se fecha nas bolhas virtuais.

São Memórias experienciadas pelos sentidos, encarnadas, expõem as paixões, as dores, os amores, as perdas, o gozo, as afeições, o estranhamento, o deslumbramento e o susto, as atrocidades praticadas e vivenciadas pela humanidade, tatuadas na extensa pele do feminino ancestral que nos habita.

Os estratos da pele recobrem de importância a percepção dos sentidos, opõem-se à perda da pele impostos a todos, principalmente às mulheres, que são submetidas aos processos culturais ultrajantes dentro desse sistema patriarcal e misógino.

De todos os sentidos, o tato é o mais ancestral. A minha poesia quer tocar e ser tocada em sua constituição de ser vivo da linguagem.

Pertenço à árvore genealógica de Clarice Lispector, que nos convida a aprofundar as raízes na potência inesgotável do tato, enquanto “(re)descoberta do mundo”.

De tato vem contato, são as imagens do con-tato que são lançadas para o leitor para que ele opere a interpretação responsiva no espírito e no abraço.

É conhecimento intuitivo que busca refratar a realidade, lançar os dados da multiplicidade do universo feminino, em contato imediato e concreto na construção das imagens poéticas.

 


RECOMENDAÇÕES PÓÉTICAS, segundo livro de poesias da autora Maria do Carmo Silva, está composto por poesias inspiradas no cotidiano humano, nas questões ambientais, humanas e sociais que ocorrem no nosso país, incluindo a temática da negritude, a amizade, a solidariedade, ao fazer poético e aos temores trazidos pela pandemia. O livro é organizado em 4 partes, sendo que cada uma destas partes é constituída por poesias com temáticas semelhantes, introduzidas com uma gravura e fragmentos de textos dos escritores: Gilberto Gil, Guilherme Arantes, Cora Coralina e Mário Quintana, reverenciando os grandes nomes da literatura brasileira, cujas produções poéticas são admiradas pela autora.

Colaboraram com a construção desta obra: o editor Ivan de Almeida da COGITO editora, O Dr. Fábio Araújo Oliveira, professor de Língua Portuguesa (UNEB DCH V), a Professora e Psicopedagoga Jocinere Soares de Almeida e o radialista, web jornalista, bacharel em Direito, editor e fundador do site de notícias e mídia TRIBUNA DO RECÔNCAVO Hélio Alves com os textos das orelhas.

 


SONORIDADE tende a se consolidar como caminho temático e/ou estético da poeta, que parece entrevistar a si própria, com sua lírica em primeira pessoa, versos em tons de diálogo e uma pontuação que sugestiona os leitores. Este novo trabalho de Elisa Lago traz uma voz poética que brada os dilemas entre os desejos e as condições de realizá-los. Ao percorrer a escuta desses acordes durante a leitura, sente-se aflorar uma saga lírico-amorosa, com sabor intimista, entrecortada de versos que revelam estados sentimentais inspirados pelo eu lírico.                                                               

(Por Ana Néres Pessoa Lima)

Aqui fica o nosso convite para você, às 17h (Brasília), somar poesia conosco, no canal do YouTube Banzeiro Conexões! Lemberamos também de nosso encontro de domingo, às 19h (Brasília), no (COM)PULSão POÉTICA, encontro transmitido pelo perfil do Instagram @enluaradas2021, com mediaçao da poea Carrolina Costa. Será um prazer ter a sua companhia!



sexta-feira, 10 de junho de 2022

CALDEIRÃO LITERÁRIO I: DAS FLORES QUE PERFUMAM O CAMINHO



CALDEIRÃO LITERÁRIO I: DAS FLORES QUE PERFUMAM O CAMINHO


Por Marta Cortezão

 Todo o trabalho que faço é construído sobre uma base de gentileza amorosa. O amor ilumina assuntos.

{bell hooks}

 

Gostaria de falar do Projeto Enluaradas, contar sobre as coletâneas já realizadas, Se Essa Lua Fosse Nossa e Uma Ciranda de Deusas (2021, e dizer que estamos concorrendo ao Prêmio Jabuti 2022 com esta última), também da terceira coletânea que estamos realizando, essa que encerra não apenas uma trilogia, mas um ciclo de ‘escrevivências’, o I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida.

No entanto, me dei conta que não é o momento, pois o que urge é falar de “gentileza amorosa”, da poética que abraça, desse “amor que ilumina assuntos”. É preciso falar das flores que perfumam caminhos. É preciso dizer que se não fossem a força e a companhia de cada uma das poetas enluaradas que nos acompanham, não teríamos encontrado essa Lua Toda Nossa, esse lugar onde escutamos e somos escutadas, onde nos sentimos pulsar ao compasso da poesia, não daquela das ilustres gravatas, mas a poesia da poeta do tanquinho de roupas por lavar, a da professora sempre atrasada nas correções dos exames, a da atendente do supermercado que escreve os versos nas notas fiscais para não perdê-los, a da avó aposentada que só agora pôde dedicar-se à escrita, a da que se envergonha dos versos e os esconde nas gavetas, a da afoita que encoraja outras, a da doutora que escreve teses e artigos de revistas, a da que interrompe um poema para atender um ente querido, a da estrangeira que aprendeu a recomeçar a vida pela escrita, a da bruxa queimada e aprisionada nas fogueiras do tempo, a da ribeirinha que conhece os segredos dos rios, a da que cuida de seus canteiros de flores... Enfim, falo da poesia que está em todas nós, as poetas enluaradas, as que vivem e conjugam o amor à sua maneira, afinal é ele, o amor, que acende a chama de nossos versos... Falo da poesia que nos une, da literatura que nos humaniza, falo de você, poeta, que me convence com o poder de sua palavra.

E nesse ambiente  poético amoroso, apresentamos o nosso CALDEIRÃO LITERÁRIO, que é mais uma das propostas do Projeto Enluaradas, com transmissão para o dia 11/JUN, sábado, às 17h (horário Brasília), via canal do YouTube Banzeiro Conexões. Assim como o (COM)PULSÃO POÉTICA que acontece todas as segundas, quartas (às 17h – horário Brasília), sextas e domingos (às 19h – horário Brasília) no perfil @enluaradas2022. Com essas ações queremos, para além de conhecer e acompanhar de perto o percurso literário de nossas companheiras de escrita literária, também desejamos promover e divulgar a literatura contemporânea lusófona produzida por mulheres.


 
Hoje, no perfil @enluaradas2022, às 19h (BSB)

          E para falar das flores que perfumam caminhos, estaremos na companhia das poetas Maria Alice Bragança, Teresa Bendini, Clara Athayde e Cátia Castilho Simon, com mediação de Marta Cortezão. As poetas convidadas falarão da importância dos coletivos femininos, em especial do Enluaradas, e, sobretudo, de suas obras literárias. As que seguem abaixo:



1. Misterioso pássaro (Editora Bestiário, 2021), de Maria Alice Bragança:

Composto de pouco mais de 100 haicais, "Misterioso pássaro" é meu terceiro livro individual e o primeiro dedicado a essa forma literária, inspirada na tradição japonesa e no caminho apontado por Matsuo Bashô (1644-1694). Ao mesmo tempo em que se inspiram nesse caminho, os tercetos reunidos nesse livro atualizam-se em diálogo com os praticantes do gênero no Brasil (Millôr Fernandes, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Ricardo Silvestrin, Alexandre Brito, Ricardo Portugal, entre outros). Outros mestres da tradição japonesa influenciam - e têm ecos presentes neste livro - como Kobayashi Issa (1763-1828) e Masaoka Shiki (1867-1902).

A maior parte dos tercetos não mantém a métrica usual no haicai brasileiro (5-7-5) e muitos deles não têm kigo (palavra ou termo de estação). A composição por justaposição de duas cenas e a adoção de um termo de corte são recursos presentes.

Escritos em sua maioria durante o isolamento necessário ao enfrentamento da primeira onda de covid-19, antes da vacinação, muitos desses pequenos poemas dão conta de momentos de contemplação e meditação na janela de meu apartamento, principal forma de contato na época com o mundo externo.

Silêncio, observação de ensinamentos contidos na natureza e, às vezes, de detalhes, de uma vida miúda, como uma teia de aranha ou uma pequena borboleta, surgem aqui em diversos momentos.

 

por sobre a mangueira

a bela flor bailarina ―

borboleta amarela

 

Ou, mais miudinho ainda:

 

pétalas perfiladas

ondulam em procissão ―

fila de formigas

 

Alguns tercetos flertam com o senryu:

 

chuva salgada ―

o namorado disse adeus

e levou o guarda-chuvas

 

kama sutra no varal ―

enroscam-se cuecas calcinhas

o vento inventa

(Por Maria Alice Bragança)


 

2. Krenak, o menino dos braços co mpridos (Editora Letra Selvagem, 2021), de Teresa Bendini

Krenak é um indiozinho que tem seus braços crescidos, toda vez que abraça algo. Acontece que o menino não consegue deixar de abraçar. Quer curar o mundo com seus abraços. Principalmente ao saber de uma epidemia, já planetária. Ele descobre, ao ouvir a voz das mulheres sábias, que o planeta sofre devido às escolhas erradas dos homens. Elas cantam para ele seu canto de bênçãos. Então seus braços ficam esguios e se erguem em direção aos céus. Ficam lá por muito tempo como se fossem os fios de ligação entre os dois mundos. Quando descem estão cobertos de estrelas e trazem dádivas. Depois se alongam até a África e os baobás. Lá, as mulheres sábias lhe entregarão a semente do recomeço.

Nesse livro resolvi fazer uma homenagem ao indígena Ailton Krenak. É comovente o que Krenak nos comunica com seu pensamento, já registrado em seus livros. Sim, os povos originários de nossa terra, possuem uma "poética" bastante interessante de interpretação do mundo. Eles podem ter algo a nos ensinar nesses dias difíceis de pandemia. Convido as crianças que vão ler esse texto a mergulharem em sua leitura, de tal forma, que se sintam abraçadas pelo indiozinho Krenak.

(Por Teresa Bendini)



3. Panaceia Poética (Editora Personal, 2022), de Clara Athayde

 

A todos apresento aqui uma coletânea autoral de escrita poética, iniciada num tempo novo onde surgiu a necessidade de reinventar para continuar.

Tempo de encontrar A ESSÊNCIA, ouvir mais os sentimentos e assim me expressar no agora.

Sem prever resultados, este hobby surgiu naturalmente como processo criativo de um fazer artístico que, aos poucos, se tornou independente e com identidade própria.

Então simplesmente fui deixando fluir dos sentidos o que demanda expressão.

Agora o novo é a meta, no vazio de expectativas e intenções.

Que a leitura seja prazerosa!

(Por Clara Athayde)



4. Rastros de estrela (Editora Território das Artes, 2022), de Cátia Castilho Simon

Neste Rastros de estrela, conjunto de 22 narrativas curtas que Cátia Simon oferece aos leitores, a autora faz uma espécie de inventário das relações humanas e das severas impossibilidades que as acompanham.

Dona de um vocabulário rico e versátil, hábil na técnica do conto, Cátia tem uma desenvoltura narrativa poucas vezes vista, capaz de seduzir seu leitor e de levá-lo texto adentro. Os motes são amores proibidos, situações de infidelidade conjugal, infância cevada no egoísmo, perdas definitivas, tudo apresentado por uma visão de mundo na qual a humanidade essencial reluz como guia.

Leitora sofisticada, especialista em Clarice Lispector, Cátia traz menções à obra clariceana, estabelecendo intertextos que podem ser usufruídos às camadas, contos narrados com um estilo muito peculiar e com desfechos que chegam a estontear o leitor — como fazem as estrelas de brilho próprio.

(Por Cíntia Moscovich)

 


Foto de Patrícia Cacau

5. Elvira Virgínia (Editora da Autora, 2021), de Dani Espíndola

 

Lançado em 2021, ELVIRA VIRGÍNIA, o livro de poesia de Dani Espíndola traz uma seleção de poemas cujas “eus-líricas” dão voz a inúmeras mulheres, cada qual com suas belezas e complexidades, medos e paixões.

Para a realização do livro, por acreditar no protagonismo feminino, Dani contou com a colaboração de uma equipe só de mulheres: desde a produtora e agente literária, à designer, revisora, fotógrafa, artista que desenhou as telas da capa e contracapa, prefaciadora, a maravilhosa poeta Mar Becker que escreveu a orelha, e mesmo todas as fontes usadas na tipologia foram desenhadas por mulheres.

          Venha conosco conhecer um pouco mais da produção literária de Maria Alice Bragança, Teresa Bendini, Clara Athayde, Cátia Castilho Simon e Dani espíndola!

sábado, 4 de junho de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|10


ANCESTRALIDADE É POESIA

Por Carollina Costa


Já faz um tempo que a temática de ancestralidade tem sondado meus rascunhos. Aquela ancestralidade familiar, de pai e de mãe, olhando para os antepassados e tentando conectar essa passagem de tempo com o tempo presente que sigo vivendo. Lembrando das mulheres da minha família, fui resgatando os desafios, as forças, as fraquezas, as transcendências — para mim, amar sem barganhar já é um ato transcendente — e fui tecendo falas, cenas, memórias que tenho ou me foram passadas por essas mulheres. Desses pensamentos nasceu um poema que dei o nome de Raízes, e porque ele trata da minha ancestralidade materna achei que essa coluna seria um bom espaço para compartilhá-lo.

Quantas histórias a gente escuta, quantas mais a gente assiste e só vem entender depois. Seja na felicidade ou na dor, ter a companhia dessas mulheres em mim através de ventres e memórias é a certeza de que jamais estarei só.

E vamos ao poema. 


Raízes

Avó
Mulher mais forte
que já conheci

Madrinha
A canção de ninar
que nunca esqueci

Mãe
O coração infinito
que no ventre me fez ter sentido
sentindo amor
até no chute que podia trazer dor

Bisavós
Trisavós
E outras mais

Tantas mulheres que
de ventre em ventre
viraram minhas ancestrais

Do saber passado
Cada qual com seu próprio fado
Fardo

Transforma tristeza em alegria
para a chegada da nova cria
que, talvez, quem sabe
saiba reciclar memórias




quarta-feira, 1 de junho de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA - PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|05


PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 

Isa Corgosinho


            Ao final da leitura do livro de Vania Clares, veio-me a vontade de sistematizar questões que fui anotando durante a leitura. Assim, deixo aqui registrados os meus devaneios interpretativos de suas Permanências Outonais.   

A prosa poética de Clares deixa entrever em suas fontes a ambivalência das personagens femininas de Clarice Lipector.  Com essa chave genealógica, ousamos mergulhar no processo de estranhamento intencionalmente construído numa temporalidade, cuja noite tem a mesma duração do dia. O resultado é o mergulho conjunto no equinócio intensamente vivenciado pela constante alteração do estado de consciência da personagem outonal. A gangorra do tempo malbaratado situa esse romance entre aqueles dinâmicos e interativos, também adepto à viagem pelo fluxo de consciência. Após um esboço quase perfeito para um desfecho trágico, seguem-se cenários que entrecruzam vida adulta, infância, juventude e proximidade da velhice.




Permanência da estação outonal pode parecer, mas não é um paradoxo: a personagem narradora imprime seus rastros no entre lugar do verão e o inverno. A estação outonal é aquela da transição, sacudida por fortes ventanias existenciais que marcam os capítulos Alternativas para um adeus e Passos de um esboço quase perfeito.  Tomada por uma consciência profunda da inexistência de sentido em tudo que pulsa, a mulher despe-se para a queda ou voo final. Anestesiada pela dor construída no vazio congelante, debruça-se no parapeito e pinta seu último quadro outonal, entretanto, seu corpo recebe o sopro da possibilidade e se recolhe na dualidade e desordem, viver é quase uma ordem, mesmo no limbo. As folhas que rolam ao vento, as cores delineadas, um tênue fio, o vento frio, as geadas alternam-se com a estação das frutas, dos tapetes de folhas, que caem e se renovam.  Essa ausência de sentido da existência é confrontada por uma marcada oposição entre leveza x peso. O exercício de autodeterminação é realizado cotidianamente pela personagem em oposição ao irremediável, inelutável peso de viver; a mulher confronta o acaso, a imprevisibilidade dos acontecimentos dramáticos que cercam a sua existência pintando os quadros reflexivos da leveza em matizes da travessia.

Italo Calvino, no livro Seis propostas para o próximo milênio, lançado no Brasil em 1990, nos apresenta alguns valores literários que deveriam ser preservados como lições imprescindíveis, no curso do próximo milênio. As conferências foram escritas para serem apresentadas nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures na Universidade de Harvard, em Cambridge, mas infelizmente Calvino nos deixou no ano de 1985. As palavras de Calvino, no entanto, continuam reverberando eloquentes:

Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio.  (CALVINO, 1990, p. 11)

Entre essas lições, que falam para a posteridade, A Leveza parece-me aquela inerente à prosa poética de Clares. Vários aspectos desse romance nos leva ao encontro da Leveza, tal qual a entende o escritor italiano. A própria escolha da estação outonal está repleta dos sentidos da leveza em oposição ao pesadume dos dramas vivenciados pela narradora. Mesmo nos momentos em que o peso da existência parece enredar o destino da personagem, como no capítulo Alternativas para um adeus, um esboço perfeito para o suicídio, o leitor se depara com um quadro pintado pela imaginação da personagem, em que as imagens da leveza sustentam a narrativa:

Fico a imaginar a tela que pintaria numa noite como esta, em que as folhas rolam ao vento, e em que me domina o impasse da decisão. Hoje as cores no desenho estariam bem delineadas e definidas, divididas por um tênue fio, unindo os dois lados. (CLARES, 2010, p. 19)  

A leveza aqui comparece nas imagens das folhas que rolam ao vento, pela divisão de tênue fio, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio, o que ficou no filtro das permanências sutis. Essas imagens se contrapõem à mágoa e ao amargo da boca. A visão sincrônica de imagens sutis atua como um filtro do fel que pesa no paladar, mas não é o fel da fealdade.

A imagem do fio nos remete ao ofício das Moiras de fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida; as três irmãs determinam tanto o destino dos deuses quanto o dos homens. A narradora encena o ofício de Átropos, a que corta o fio, mas é detida por Cloto que segura o fuso e tece o fio da vida, ora é Laquesis, que puxa e enrola o fio tecido, e é a figura da leveza, impressa em sua narrativa, que mantém Átropos distante, mas não ausente. Há uma inversão e reversão do ciclo vital: tudo que vive morre, tudo que morre vive. A personagem é o próprio fio nas mãos do destino, mas depois assenhora-se dele.    

Estou entre romper o tênue fio e nunca mais conseguir me reaver. Estou entre romper em duas eternamente. E não seria nada verdadeiro. Ser uma das partes ou as duas separadamente. Porque sou o próprio fio. (CLARES, 2010, p. 20)

Hoje eu sou o adubo do meu fio. O que escolherá entre sucumbir na lama ou fundir-se à semente, reiniciando o ciclo constante. (CLARES, 2010, p. 24)

            É no seio da própria literatura, com epígrafes da escritura sagrada e versos de autoria da própria Clares, que a narradora personagem lança possibilidades dialógicas para a complexidade da vida da linguagem: sobretudo ao recorrer à ironia com as citações bíblicas e ao retirar peso à estrutura da narrativa, investindo na precisão das imagens poéticas, evitando tudo que é vago ou aleatório.

A sabedoria ao buscar o pincel mais fino, a tela mais suave e clara.  A resistência à sufocação das tintas. A moldura mais perfeita.  A adequação ao expor a consistência de um fio retocado. Pelas sábias mãos da vida. (CLARES, 2010, p. 24)

A narrativa é concisa e confronta as dualidades com as ambivalências do entre lugar, a travessia. A personagem narradora oferece ao leitor um processo psicológico no qual interferem elementos sutis, situados em momentos marcantes em sua vida: os traumas da infância, os primeiros desejos, o amor, os sonhos e os acontecimentos dramáticos, a vontade de viver e o desejo da morte, a intensidade e a resiliência.

Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios.

Sirenes de fábricas, embargo de crepúsculos.

Querência de amanhecer

e distante sensação de sonho e brisa. (CLARES, 2010, p. 65)

 

Nas reflexões existencialistas, a personagem nos remete aos diferentes recortes históricos, marcados por experiências que acompanham a sua formação e as transformações culturais e políticas que marcaram as gerações do final da década de 60 até o final da década 80, aproximadamente. As citações de fragmentos musicais, nomes de bandas, astros do cinema nos remetem aos anos de intensas lutas pelas liberdades coletivas e individuais. Como um imperativo categórico, a narradora personagem constrói como medula de sua narrativa o desdobramento do evento amoroso, que marcará como uma nódoa indelével o inacabamento da travessia. 

O feedback narrativo figurativiza, apresenta citações e alusões sobre as utopias coletivas que estão subjacentes a igualmente utópica história de amor. Na dialética das liberdades amorosas, a mulher das permanências outonais deseja o mais profundo e desafiador que é o viver juntinhos como nossos pais:      

[...] e vamos sair pela Augusta de madrugada comer churrasco no Eduardo´s às cinco da manhã e vamos ver o dia nascer com as luzes rosa-azuis enquanto as pessoas correm para o trabalho porque algumas pessoas não são artistas e não se dão o direito de ver o dia nascer assim sem dormir como nós que somos poetas seresteiros e poderemos ser agora tão namorados e apaixonados que você sentirá que não poderá deixar de me ensinar a ser mulher a sua mulher para a vida inteira porque nós podemos ficar velhinhos.juntos numa casa com uma varanda cheia de plantas com um cachorro vira-lata dormindo aos nossos pés [...].  (CLARES, 2010, pp.43-44)

Do grande caldeirão das utopias, ao qual São Paulo forneceu e temperou com os seus melhores ingredientes, restou também o caldo amargo das orgias libertárias, principalmente no tocante ao uso das drogas. O romance refrata, sobretudo, a distopia marcada pelo vírus da AIDS: da década de 80 até 2012, as fontes de pesquisa apontam 656.701 casos de AIDS, atingindo principalmente uma geração que se dispôs de corpo e armas a mudar o mundo. O vírus ataca justamente os centros do gozo do amor e do prazer. 

porque nós aproveitaremos as noites filosofando muito relembrando a Augusta e a guitarra de Jimmy Hendrix junto com a voz rouca da Janis Joplin e quem sabe faz a hora não espera acontecer junto com nossos porres de amor e nossos abraços de verdade quando e porque não precisávamos nem falar nada e pela vida inteira esse abraço sempre dirá tudo que queria mesmo dizer porque o amor é tão inadiável e urgente em meio às brigas que não serão nossas mas consequências do mal de uma geração inteira que ficou tão doente e inconsciente da sua própria doença maldita disfarçada em sonhos que vêm em saquinhos branquinhos comprimidos brancos destilados envelopinhos marrons sequinhos cheirosos tal esterco enfumaçando entorpecendo o sonho que não acabará nunca assim como um sonho nas acabará sim a condição da conveniência diante da realidade das limitações fazendo assim tão encantado o sonho das varandas entupidas de samambaias e fores de maracujá de balanço com almofadas coloridas e os cabelos brancos voando ao vento num por de sol alaranjado...)   (CLARES, 2010, pp. 44-45)     

Jean Baudrillard[1] interpreta o final desse período como uma pós-orgia. A orgia está inscrita na modernidade: o da liberação em todos os domínios – liberação política, sexual, da mulher, da arte, das forças produtivas e de destruição, das pulsações do inconsciente etc. Assim como em Baudrillard, o romance de Clares figurativiza o percurso da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. A pergunta que nos espreita ao final é: o que fazer após a orgia?

Não sei quando aconteceu, nem como, mas aconteceu. [...] Fiz uma loucura. Lá em casa, sabe, peguei uma seringa do lixo e a usei. Tinha muita gente lá. Depois veio aquela febre alta, os tremores. Pode ter sido nessa loucura. Ou naquelas compulsões de vários dias em que não tinha noção nenhuma do que fazia. Em que eu acordava dormindo ao lado de gente que eu não conhecia, ou às vezes, no chão de qualquer rua, tendo de perguntar aos outros onde estava, ou todo machucado com as roupas sujas, assaltado, ou dentro do carro batido em um muro qualquer. Pode ter sido qualquer um desses dias. Mas o fato é esse. Estou com o vírus, sou um portador. (CLARES, 2010, p. 55).

O filósofo francês busca respostas ao constatar a contaminação respectiva de todos as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão dos gêneros. O sexo circula em toda parte, menos na sexualidade. O político já não está mais no político, mas infecta todos os domínios: a economia, a ciência, a arte, o esporte. Baudrillard enfatiza: o esporte já não está no esporte _ está nos negócios, no sexo, na política, no estilo geral da performance.

Aqui parece que encontramos rastros do percurso do corpo do homem amado, contaminado pelo vírus: a AIDS corresponde menos a um excesso de sexo e gozo do que uma descompensação sexual por infiltração geral em todos os domínios da vida. No entendimento de Baudrillard, é em todo o sexual que a imunidade se perde, que se perde a diferença sexual e, portanto, a própria sexualidade. É na difração do princípio da realidade sexual, no nível fractal, micrológico e desumano, que se instala a confusão elementar da epidemia, conclui o filósofo.




Como conseguir falar de nossa época, de acontecimentos tão recentes, representando-os com a ideia de leveza? Clares encena a busca da leveza como um objeto inalcançável, como uma busca sem fim. Assim como Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, em Permanência Outonais é possível constatar dramaticamente o inelutável peso do viver: também no romance da escritora paulista, o peso de viver está em toda forma de opressão; na obscura rede de constrições públicas e privadas que acaba por aprisionar cada ser em suas tramas cada vez mais cerradas.  Os episódios entrecruzados dos períodos da descoberta do amor adolescente, do amor na juventude; dos projetos de profissão, da criação dos filhos, do sonho de envelhecer juntos, ou seja, todo um conjunto de coisas que apreciamos e escolhemos na vida por tudo que representa de beleza e leveza, resulta, revela-se bem cedo de um peso insustentável. 

A superação acontece gradualmente pela vivacidade e inteligência, a personagem descobre o incessante ciclo da vida nas estações e isso a impede à queda final. A mudança do ponto de observação da vida pela ótica da poesia, muda sua imagem do mundo, recriando-o pela observação indireta da palavra poética. É na relação amorosa com as metáforas que o amor profundo pelo amado atinge o estado de leveza.

Sim, é só um passo para o universo, deixarei que partas, sempre foi teu sonho: uma nave de portas abertas, do tamanho da praia iluminada de luar. Vai, minha vida, que está terra é pequena demais para tua ansiedade, é densa demais para tuas asas, é frouxa demais para o teu grito, é abafada demais para sua liberdade. (CLARES, 2010, p. 65)

O leitor não encontrará nesse romance nenhuma forma de julgamento, condenação, mas atos de coragem na sustentação dos caminhos e descaminhos da relação amorosa, também ausente está o discurso reivindicatório de vítima de relações abusivas. Há uma espécie de renascimento na morte do amado. É o que nos declara uma voz intrusa, que substitui a narração em primeira pessoa. Ocorre uma transferência mais forte da pulsão de vida, herdada do amado: o gosto pela vida, a sua alegria ostensiva, escancarada, indiscriminada, inconsequente, que se derramava em noites, olhos e gargalhadas. A personagem abraça seu processo de autodeterminação, extrai coragem da potência lírica, do amor materno, da aceitação da vida como permanências outonais: as folhas que se renovam ao vento, os dentes ficados na fruta madura e o gozo insustentável da leveza do ser, o ser da poesia. O romance de Vania Clares é um presente edificante para nossas almas femininas, por isso meu coração atento escuta essa voz.  

Na aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da noite. É nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a desordem não é senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no êxtase. (CLARES, 2010, p. 73).  

Hoje, num voo leve, me vejo.

Dispo-me sem medo dos disfarces tolos.

Sinto a centelha divina. Memória de luz.

Reconheço-me. (CLARES, 2010, p. 93)

                

 

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal _ ensaios sobre fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1996.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CLARES, Vania. Permanências Outonais. São Paulo: Sarasvati Editora, 2010.





[1] BAUDRILLARD problematiza a AIDS no contexto dos fenômenos extremos no livro A transparência do mal.

 

sábado, 30 de abril de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA

 




LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|09


CRÔNICA: EMPODERAMENTO É BRUXARIA

Por Carollina Costa


Essa semana tive a felicidade de estar no card de estreia da seleção de poetas para a coletânea I Tomo das Bruxas e comecei a pensar um pouco mais sobre essa personagem: a bruxa.

No geral, quando pensamos nos contos de fadas e filmes, a bruxa é aquela mulher mais velha, má e amargurada que quer sempre prejudicar a princesa protagonista da história, mas por que essa relação? Como isso afeta o nosso imaginário, nosso entendimento do feminino e até mesmo como a sociedade enxerga — ou encaixota — os diversos tipos de mulheres? Meus pensamentos sobre isso tomaram o formato de crônica e, em homenagem à estreia do I Tomo e às múltiplas mulheres que habitam cada uma de nós, resolvi compartilhá-la por aqui no texto dessa semana.


Empoderamento é bruxaria


Não há uma mulher que não tenha crescido ouvindo que deveria ser uma "boa menina", seja em casa ou na sociedade ou por todos os lados. Ao crescerem ouvem que devem ser "boas mulheres", e não é possível ser uma "boa mulher" se você não tiver um pouco da "boa menina" dentro de si. Mas o que é ser "boa" e "boa" para quem?

A "boa menina" e "boa mulher" normalmente são boas para todo mundo, menos para elas próprias. Você é "boa" se não discute, se não discorda, se sabe se vestir e se "comportar", você é boa principalmente se se esvaziar das suas necessidades para enxugar o gelo das necessidades infindáveis de todos a sua volta. Reconhecemos aí a imagem clássica das princesas.

Do mesmo modo, é "má" aquela mulher que olha para si mesma, que reconhece suas necessidades, que reage quando ferida e que impõe limites para não ser mais explorada — emocionalmente, psicologicamente, fisicamente, da forma que for. É "má" a mulher que clama pela e com a própria voz, que diz Sim quando quer dizer sim e Não quando quer dizer não, sem rodeios. É "má" a mulher que toma posse de si mesma, de seus encantos e desencantos, de seu corpo, sua mente, sua caminhada. Vemos aí a imagem das bruxas, nem todas as de contos de fadas, mas principalmente as humanas que foram queimadas.

Se você toma um chá e cura uma gripe, é bruxa. Se envelhece, é bruxa. Se tem mais saberes que um homem sobre algo, é bruxa. Se diz não, é bruxa. Quando penso nos contos de fadas antigos, especialmente os da Disney, que embalaram minha infância, lembro das princesas sendo reféns da vontade de alguém o tempo inteiro, trocando apenas de algoz. Quando penso nas bruxas lembro de mulheres que, mesmo com o mundo virando as costas para elas, eram dotadas de poderes sobre-humanos, criavam e "descriavam", tinham o que queriam quando queriam e como queriam sem se render a algoz nenhum.


Hoje em dia os contos de fadas estão mais modernos e desconstruíndo a muralha por séculos erguida entre a bruxa e a princesa, a "moça boa" e a "moça má". Elza vai em busca de si mesma e encontra seu lugar em meio à natureza. Malévola recupera suas asas e, estando inteira, abraça a inteireza da sobrinha Aurora, amando-a mais que o príncipe e salvando-a no final. Merida se disfarça de menino e luta pela própria mão em casamento, superando todos os príncipes e vencendo a disputa. Rapunzel rende um fugitivo e foge com ele da torre para explorar o mundo. Princesas com traços de bruxas. Os contos estão tentando ficar um pouco mais próximos da realidade.


Vibro ao ver essas narrativas mudarem, mas até serem internalizadas no imaginário social com a força dos contos tradicionais vai levar um tempinho e essa divisão simplista vai demorar para se desfazer. Até lá, escolho abraçar a bruxa que há em mim. A bruxa que diz não, que protege seu caminho e seu espaço, que na jornada do empoderamento não será vencida pelo cansaço. 


Como Malévola e Aurora receberam uma a outra, assim as "Carollinas" que me habitam vão se recebendo em amor, respeito e crescimento.





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