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terça-feira, 7 de março de 2023

#8M# MARIAS - DEUSAS SIDERAIS, POR ISA CORGOSINHO


MARIAS - DEUSAS SIDERAIS[1]

Para as Enluaradas que recriam o mundo com a poesia

POR ISA CORGOSINHO

[Imagem Pinterest]

Nenhum deus precede à noite profunda da deusa Nix. Exausta das solidões do universo, mergulhou ad infinitum numa espiral de si mesma, centrifugando, para seu incomensurável ventre, constelações e outros astros desavisados e curiosos que a rondavam, seduzidos pela voracidade de suas bordas sugadoras de luz. 

Da gestação milenar de Nix, regente da noite, nasceram as três Moiras: Cloto, a primogênita, responsável por fiar partos e nascimentos, com suas mãos trajadas de aurora injetou a luz primordial nos olhos recém nascidos da vida.  

A segunda filha da deusa era Láquesis responsável por puxar e enrolar, com zelo de artesã cósmica, o fio tecido por Cloto, sorteando o quinhão de atribuições que se ganhava em vida. A terceira filha de Nix, Átropos atuava com suas longas e delgadas unhas de foices reluzentes e afiadas, cortando destemida o fio da vida, juntamente com Tânatos e outros comparsas amigos da morte. 

[Imagem Pinterest]

Lá estavam as três Moiras, também conhecidas como Parcas, girando a cíclica harmonia da máquina cósmica, nas irrevogáveis funções de presidir gestação e nascimento, crescimento e desenvolvimento, e o final da vida, quando avistaram as Três Marias e o cenário que se formava na criação de Gaia. 

As Marias, viajantes do deserto sideral, levitando para além desses céus de nossos céus, avistaram Deus – viajante das planícies incomensuráveis do vazio. Apiedaram–se de um Deus assim tão triste, petrificado em eras de solidão. Comoveram-se com um Deus assim tão só, sem destino nas solidões mudas, privado de toda experiência de vida, preso à trama de sua criação infinita.    

[Imagem Pinterest]

Por amor ao Deus tão triste, criaram Gaia:  convocaram os mais de 30 milhões de sóis na Via Láctea, e escolheram apenas um. Desceram numa poeira de pérolas de ouro, levantada pelo sopro da gratidão das Moiras. Criaram as mais exuberantes formas da flora e fauna, mas o coração de Deus permanecia mudo, destoando de toda criação.

Vaticinaram as Deusas siderais: _ Deus, terás pela frente o seu mais longo e árduo trabalho. Seus filhos e filhas terão as mais conscientes e belas formas da matéria animal, mas serão infinitamente mais tristes que o pai; serão irascíveis e amáveis; do pai herdarão a capacidade infinita da criação; serão capazes de habitar outros sóis, outras dimensões: o pensamento, a linguagem, a música, a dança, a pintura, a escultura e a poesia serão suas crias e os ensinarão a conviver com a luz e a sombra que habitam seus corações.

[Imagem Pinterest]

Do berço das Deusas ancestrais, aos terráqueos foi ofertado o Jesus menino. O irmão incansável e solidário dos homens e mulheres, o filho dileto das Deusas e Deus. Com esse homem menino, os seres devem aprender a não declinar da justiça, da paz e dos sonhos.

São elas as mães do planeta, Marias povoam o mundo desde a tenra idade dos pés de Gaia. Lá se vão bilhões de anos que a Terra vem girando: na rotação do amor e na translação de suas saias.

Isa Corgosinho

08/03/2023



[1] A primeira versão desse conto foi publicada na Coletânea Salvante V: Reminiscência do tempo. Organizadora: Vânia Clares; Diversos autores. 1. ed. São Paulo: Sarasvati Editora, 2022.     

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[arquivo pessoal a autora]

Isa Corgosinho é de Brasília/DF, professora universitária aposentada, poeta. Participou de várias Coletâneas, entre elas: Coletânea enluaradas (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Ciranda de Deusas I e II (Enluaradas Selo Editorial, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal 2021); Livro Memórias da pele, Venas Abiertas – III – Mulherio das Letras, 2021.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL/ Isa Corgosinho




LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA|06

COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL

 Por Isa Corgosinho

 

O livro de Nic Cardeal Costurando ventanias me acompanhou na volta de João Pessoa para Brasília, as suas páginas vieram impregnadas da maresia de Jampa e agora experimentam o ar seco e a energia revitalizante do cerrado candango. Tive que interromper a leitura várias vezes em virtude da organização desse retorno. A cada retomada, experimentei novos sentidos em suas particulares costuras, por isso fui tomada pelo desejo de escrever sobre elas.   


Nas costuras da prosa, as ventanias da poesia   

O escritor Julio Cortázar[1], ao refletir sobre as características do conto, afirma que escrever contos e poemas é algo parecido, quase um estado de transe. Esse estado seria provocado pela escolha de um material significativo. O livro Costurando ventanias conjuga-se no hibridismo de gêneros, ao associar acontecimentos da realidade (crônicas) com elementos fictícios (contos), desvelando, assim, uma misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo. Irradia ventanias que informam e conformam um breviário da condição humana, principalmente no que se refere ao embate do ser e o cosmo, o ser e o tempo, a materialidade das coisas dissolvidas pelas ventanias da temporalidade. É ainda o contista argentino que nos diz que a gênese do conto e do poema assemelha-se, porque nasce de um deslocamento provocado pelo estranhamento, um deslocar-se que altera o regime “normal da consciência”.     

Enxergamos, ainda sob o ponto de vista de Cortázar, um perfil de contista, uma mulher que repentinamente cercada pela imensa algaravia do mundo, comprometida em maior ou menor grau com a realidade histórica que a contém, escolhe um determinado tema e faz com ele um livro de contos e crônicas. O tema parece se impor irresistivelmente por cima ou por baixo de sua consciência, e a quebra do silêncio da folha em branco vem pela música, e tudo aquilo que a eleva como linguagem das subjetividades.

Dito isso, é importante ressaltar as afinidades dos contos de Cardeal com a poesia. A poesia é um dos mais importantes destinos da palavra, a palavra poética nesse livro não se limita a exprimir ideias ou sensações apenas, almeja, na tomada de consciência da linguagem, se lançar ao futuro. Com notável precisão, Gaston Bachelard[2] declara que a imagem poética, em sua novidade, abre um povir da linguagem.   

            A prosa de Ventanias é tecida em três redes aéreas que modulam a sua arquitetônica: Eu quero a música que mora dentro da flauta; Então proponho um faz-de-conta que me avizinha: paradoxos dessa dança chamada vida; Mas o tempo passou muito... passou ligeiro. A função poética nos contos e crônicas é marcada pela projeção do ícone sobre o símbolo, pela presença de códigos não verbais como a música, a dança, as imagens visuais sobre a linguagem verbal.  

A poesia presente nos contos de Cardeal chega aos nossos ouvidos energizada pela melopeia, assim como a entende Ezra Pound[3]. Se trouxermos, como aliada, a experiência de sua obra poética, não seria inadequado afirmar que as frases nesses contos e crônicas estão carregadas, acima e além de seus significados comuns, de marcantes qualidades musicais que dirigem o propósito ou tendência desses significados, basta escutar a temática que abre os primeiros contos Eu quero a música que mora dentro da flauta: O som inaudível, o sopro, as batidas do coração que ressoam na caixa torácica, no som que repercute nas vértebras.    

Lista de desejos

Eu não quero só a flauta. Eu quero a música que mora dentro da flauta. Cada nota escondida em sustenidos sentidos. Eu quero os acordes da poesia virando canção – e a voz que a faz palavra entoada. Sim, sou egoísta por querer a flauta e a moradora da flauta.  (CARDEAL, p. 15, 2021)   

            A musicalidade é composta pela exploração das paranomásias, das aliterações, assonâncias, trocadilhos nos títulos e, principalmente, nos versos rimados, ritmados no interior dos contos.

Títulos de contos

Tralhas fora dos trilhos de dentro

Os olhos chuvosos de Deus

Do barro ao berro

Fragmento do conto A linha

Empenho-me, assim, no ofício de pescar palavras no vasto mar que navega, para lá e para cá, dentro do meu peito, feito da mesma água que invade meus olhos fundos, bem distante da superfície do mundo. (CARDEAL, p. 14, 2021).

Sobre a influência da melopeia, a prosa de Nic comparece nas fronteiras da música, e a música aqui talvez seja a ponte entre a consciência e o universo sensível não pensante, ou mesmo não sensível.  Ainda nesse conto, a contista afirma que os poemas a descrevem, que os poemas são a alma, as palavras seu corpo. Sim, pois que seus poemas transmitem uma vertente peculiar de sensibilidade, são mais que ideias transmitidas, são imagens que devem ser sentidas, tocadas na corporeidade das palavras.   

Ao lado da função poética, concorre a função metalinguística que comparece em lances certeiros de autoconsciência do fazer literário, metapoética. Na composição do sensível conto A palavra, todas as características do sentimento são expressadas pelos movimentos dos sentidos e pelos traumas da ausência, da distância, das separações, da perda vivenciadas pela infância e pela vida afora. Todas as metonímias, eufemismos são empregados para dissipar a inalcançável compreensão dos sentimentos gerados pela separação, pelo luto ou pelo amor. Tudo circunda essa coisa, palavra esquisita, multifacetada, adjetivada, jamais nomeada. Apenas ao final, a palavra que, pela dor se vela, enfim se desvela – saudade  a palavra pronunciada em coro pela aldeia tinha o dom de dividir e curar a dor, como uma hóstia em forma de pão, alimento coletivo do amor. 

A gente tinha um nome para essa coisa que apertava o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair. Dizia-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bocadinho a dor.

Porque a saudade precisava ser dita, ainda que fosse na aldeia uma palavra esquisita... (CARDEAL, pp. 55-57, 2021)   

No conto (A)porte de poesia as funções poética e metalinguística andam entrelaçadas, enamoradas, ocupando singular equidade de posição e isonomia de valor. O leitor pode se deliciar com os jogos metalinguísticos, a começar pelo próprio título, que é um verdadeiro slogan pelo desarmamento.  A prosa encena o nascimento da paz no corpo potente da poesia.     

Sou a favor do porte de poesia. Carregá-la desde a semente, até que a palavra infle, insufle, percorra o caminho do ventre, saia do ninho, alce voo em direção ao céu do meu/teu/nosso coração. Ali aportada a poesia, que ela absorva a empatia, a boemia, a leveza ou a entropia, a expressão, a expansão, a exuberância da própria vida. E, quando pronta a atingir o alvo, aponte a poesia na direção da alma!  (CARDEAL, p. 61, 2021)   

Nas ventanias dos devaneios

As camadas sonoras e imagéticas da música e da dança em Costurando ventanias compõem, junto a outras figurações, notável relação com a Poética do devaneio, de Gaston Bachelard[4], mas é precisamente no capítulo V Devaneio e cosmo que encontramos a trilha interpretativa. Nessa obra encontramos verdadeiras constelações de imagens de elevada cosmicidade: fogo, terra, ar e água estão disseminados em outras imagens que fazem da leveza o contraponto da petrificação, do pesadume do mundo (pássaros, ninhos, borboleta, árvores, céu, estrelas, astros, asas, chuva, lágrimas, chapéu, horizontes, barro, sementes etc), revelando extraordinária imaginação criativa.

            É a ênfase no devaneio operante que nos interessa na travessia interpretativa. O devaneio cósmico que experimentamos nos contos de Cardeal é aquele ao longo do qual o universo sensível se transforma em universo de opostos complementares, cuja ambivalência das sombras soma-se à luz irradiada da poesia. Os contos trazem fragmentos do universo: a unidade da beleza se concretiza nos elementos água, ar, fogo e terra. O cosmos em Ventanias é constituído de palavras grávidas. Segundo Bachelard:

Um devaneio falado transforma a solidão do sonhador solitário numa companhia aberta a todos os seres do mundo. O sonhador fala ao mundo, e eis que o mundo lhe fala. Amando as coisas do mundo, aprendemos a louvar o mundo: entramos no cosmos da palavra. (BACHELARD, p. 179, 1996).

            Na esteira de Bachelard, Nic Cardeal reafirma em sua obra o clímax do devaneio cósmico, que é o de constituir um cosmos da palavra. É pela função poética da linguagem que seus leitores são seduzidos, arrebatados da inércia, conduzidos por uma espiral de louvores que transforma o universo sensível em universo de beleza.

A leveza, num mundo cada vez mais empobrecido no falar, no expressar, saturado por imagens que poluem e avassalam nossa visão, parece se sustentar em palavras primeiras, em imagens primeiras. Os poetas dos devaneios cósmicos, para calar o barulho ensurdecedor, recobrem o mundo com a musicalidade das palavras que sonham. É assim que um sonhador de palavras reconhece, numa palavra do homem aplicada a uma coisa do mundo, uma espécie de etimologia onírica, como nas belas frases poéticas:      

Pois, de que será feita a poesia, senão da veia aorta que nos conduz ao peito – do lado esquerdo de dentro – na emoção da palavra gasta, apontada sobre o alvo da flecha? Depois do alvo, da flecha, por certo que estarão felizes os operadores de sonhos a recortar palavras – exaustas – em algodão: poesia qu´inda flutua, aportada ao cais da alma.

Finalmente então, depois desse tempo cinza, haverá um lugar no refazer do amor. N´alguma estrada aberta, onde plantações extensas de esperanças, por ordem dos poetas (esses operadores de sonhos a portar palavras!) - serão colhidas aos montes em novas eras. (CARDEAL, pp.61-62, 2021)    

É extraordinário o encontro das duas poéticas no que se refere o agenciamento de palavras cósmicas, imagens cósmicas que costuram os vínculos do homem com o mundo, mas precisamente da mulher com o mundo. Nas epifanias, a poeta nos arrebata com as duas tonalidades, humana e cósmica, que ao se encontrarem se transfiguram:       

Eu tenho um céu que mora em mim. Ele amanhece e anoitece vez por outra. Gosta de salpicar-se de estrelas, receber algum sol de visita, tem na lua uma amiga confidente pra tristezas escondidas. [...]

No meu céu de estimação os horizontes são fios compridos, feito linhas em novelos, que se estendem desenhando lindos montes, que passeiam sorrateiros, inventando as paisagens dos meus sossegos.

Eu não sei o que dá em mim para ter um céu inteiro inquilino dos meus anseios. Mas eu amo de paixão esse meu céu de estimação. Nele eu penduro estrelas cadentes e sei que um dia elas germinarão desejos inusitados transformados em viventes. Vou seguir acreditando. Porque um céu de estimação é muito mais repleto de infinitos, e os infinitos são maiores, são inteiros.  (CARDEAL, p.28, 2021)  

               O olhar fenomenológico da contista nos convida a vivenciar os paradoxos de uma tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas da natureza e, ao mesmo tempo, a confrontá-las com o mundo em plena crise com um modelo de civilização que nos empurra para a barbárie. 

Não sei dizer se essa rota será promissora... é o meu delírio do verbo resistir no mundo. Como a lira que delira nas cordas até encontrar o sentido de ser instrumento. Do verbo ‘ser delírio’ (‘de-lira´): a palavra primeira da lira ao dizer o som do mundo.

Sem o GPS das minhas preces a ninguém, serei tão somente um arado ressoando o chão - suprema ausência de sentido nesse imenso mundo cão. (CARDEAL, p. 27, 2021) 

            O confronto acontece no interior da linguagem, por meio de uma consciência crítica criativa. Dentro das imagens poéticas pode estar o germe de um mundo, ou como diz Cortázar, essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana. Todo conto que se lança no tempo grande da literatura, é como uma semente onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em nossa memória.

Árvore sementeira

Às vezes me lembro de um tempo em que fui árvore. O momento em que a semente tocou o chão, adormeceu na terra quente, germinou tão de repente, esticou raízes em seu ventre. O tronco subindo em direção aos céus, galhos seguindo livres para todos os lados, folhas verdes abrindo-se em leques sem receios. (CARDEAL, p. 29, 2021)

No conto In-finitudes, o eu que narra contém infinitos particulares que se comunicam entre si e com o mundo:  

Mesmo assim, seguirei descosturando a linha. Desfazendo os nós. Até que todos nós sejamos sonhadores de novos gestos – e uma luz se acenda na cabeceira de uma outra história que se avizinha.

Sonhar é o que importa – ainda que seja um bom retrato em branco e preto pendurado na parede da imaginação. Porque comporta um infinito inteiro. Abaixo. Acima. Dentro. Além das beiras. Bem profundo. Ao abrir as portas de um novo mundo. (CARDEAL, p. 20, 2021)

Bachelard assevera que uma imagem poética nova pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante de um devaneio de um poeta. Mas Nic Cardeal não se molda totalmente ao perfil do sonhador de Bachelard, que se entrega de corpo e alma à imagem que acaba de encantá-lo. A personagem que narra em primeira pessoa nos contos é parte encarnada das imagens cósmicas, com as quais opera suas metáforas, seus dialogismos da parte no todo e do toda na parte. O embelezamento se faz nessa relação sistêmica da gênese primordial do planeta, do sistema solar, da Via Láctea:    

De passagem

Estou à procura da melhor parte, em que em mim se acende a palavra propícia para os sentidos da vida. Estreita correnteza de vida própria que me enquadra criatura terrena – do barro, da pedra que veio do alto, do pó respingado do universo, da teia do milagre moído que sobrou dos ossos daqueles tantos vindos ao mundo antes de mim. Sou aos pedaços. Quebra-cabeças em estilhaços. Sou de pedra também sou aço. Sou rio seco sem fundo, mar salgado, ardido, abismo profundo. Sou folha verde, folha seca, grão germinado, semente. Do pó das estrelas dizem que vim. Daqui a pouco vou além, para bem adiante do fim. (CARDEAL, pp. 18-19, 2021)

A cosmicidade das imagens nos convida para experiências simbióticas com o mundo, para além de sua materialidade palpável. Não exatamente um lugar onde o sonhador possa descansar tranquilo, mas onde certamente se sentirá largo, expandido em todos os elementos terra, fogo, ar e água.  Fica patente o devaneio dos ares em todos os seus redemoinhos, bem como as peripécias de uma dialética que vai do universo líquido ao universo aéreo.

Chuvas guardadas

Já não sei se amo mais as chuvas externas ou internas. Ambas solicitam rios. Águas que correm em direção aos mares.

As águas do mundo querem seguir.

Minhas aguas internas pedem passagem.

Se chorei mares outrora, por ora só rio rios. Entre um e outro, meu barco vazio transborda de mim. (CARDEAL, p. 31, 2022)

 

Os olhos chuvosos de Deus

Eu imaginava que as águas caíssem dos céus porque Deus também sentia dores intensas e precisava chorar algumas vezes. Às vezes, muitas vezes.

[...]

Naquele dia aprendi a lição, não por Deus, mas por minha própria solidão a fazer desaguar o coração – foi meu primeiro sintoma de amor. A lição? Em chuvas internas de amor nem Deus se atreve a querer entender a linguagem inútil das lágrimas.

Hoje chove muito. O dia inteiro. Sempre que chove, lembro dessa minha imaginação de outrora – quase criança – e posso ver aquele meu Deus imaginário todo encharcado, espiando d´alguma janela do céu, para ver se estendo meus olhos molhados de tanto enxugar sua dor.  (CARDEAL, pp. 32-33, 2021).

Ao alçar as asas imaginárias, o devaneio do voo nos abre um mundo, portal de desmesurada abertura, o céu é a janela do mundo, e a poeta nos ensina e nos convida a mantê-la aberta de par em par:

Há dias em que me sinto exausta. Pudesse deixar, por um dia apenas, ‘a roupa de viver’ pendurada no varal, tomando um ar, um vento, ao sol, sairia apenas com a alma (e suas asas), a passear entre as árvores, as folhas, as flores e as águas!  Ah, seria tão delicioso esse dia! Um dia de leveza, sutileza, calmaria, em que ela – eu – a alma, compreenderia, enfim, a amplitude, o sentido, o motivo da vida, para muito além dessa concepção limitada e tão paradoxal que nos foi imposta nesse tão raso objetivo de existir...

Confesso. Não sei dizer por que às vezes cansa. Quero minhas asas. E um agosto diáfano, com gosto de brisa. ‘Porque eu continuo a acreditar em anjos, sei que eles existem. ‘ (CARDEAL, p.43, 2021)

No inspiradíssimo conto intitulado Lista de desejos, observamos uma importante declaração de poética, ao mesmo tempo sentimos sopro alusivo dos versos da Flauta-vértebra, do altissonante Vladímir Maiakóvski[5].

Sim, sou egoísta por querer o órgão febril do coração da flauta. Eu quero o outro lado da lua. Esse lado da rua. O meio da rua. A avenida. Estrada de terra batida. A ponta da estrela iluminando o caminho. Os passos tão gastos em perfurados sapatos.

Essa é a minha pauta – a música da (tua) vida. No toque sutil (ou áspero) da flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021)

Quando leio essas frases poéticas (ou versos?), lembro-me de passagens do filme Easy Rider[6], ou reminiscências da geração beat, e sua vertente na contracultura dos anos 50.  Mas os parágrafos seguintes nos rementem ao repouso projetado pelas imagens cósmicas que correspondem, seguindo o alegre paladar Bachelardiano, a uma necessidade, a um apetite. Ao invés do mundo como vontade de representação, o mundo como apetite. É o que demonstra o eu narrativo: uma relação antropofágica com o mundo, sem outra preocupação a não ser o desejo de mordê-lo, devorá-lo:

Eu não quero apenas a roupa da carne. Eu quero o corpo, o osso, a veia repleta de vivo vermelho, a seiva que alimenta o peito e lateja o doce e o amargo. Eu quero conhecer tua ferida. O corte da pele, o sangue jorrando em gotas, o choro do ventre, a semente parindo o futuro do indicativo. Eu quero a ruga, a curva, o passo apressado, o olhar tão cansado, a ira impulsiva, a angústia desmedida, a saudade guardada na vértebra esquerda de desesperos entorpecidos. Eu quero o riso, a gargalhada, a alegria, o sonho louco na medida exata. Ou perdida.  

Eu não quero a solidão da palavra. Nem somente a flauta. Eu quero a curva do rio escorrendo enchentes em desejos tão urgentes. E a paciência do tempo favorecendo o despertar da semente. Eu quero o amor que mora na semente – da flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021).

O paladar se mostra em potência: cada apetite, um mundo. O sonhador bacherladiano participa então do mundo alimentando-se de uma das substâncias do mundo, substância densa ou rara, quente ou doce, clara ou cheia de penumbra segundo o temperamento da sua imaginação. E a poeta Nic Cardeal certamente vem na pele do sonhador, vem transfigurar em belas imagens o mundo exaurido de realidade, só assim pode compartilhar a saúde cósmica com seus leitores, porque nas imagens cósmicas parece que as palavras do homem infundem energia humana no ser das coisas:   

Ao corpo que me leva de um lado ao outro eu sou deveras grata. Não fosse ele, que seria de mim – solta no ar. Diáfana, fora da gravidade, rarefeita, quem sabe líquida – a olhar por olhos inexistentes a vida a vagar desde a terra removível até a semente? 

Este corpo que me carrega – a minha casa de viver a vida – porção considerável de resistir no mundo até a última gota do sopro de vento que há de virar chuva fininha: garoa miúda lavando a calçada, por onde outrora pisou um dia, feliz, este corpo que me carregou de um lado a outro das minhas esperanças tão ávidas de existência... (CARDEAL, p. 17, 2021).      

De mãos dadas com a tese de Bachelard, enfatizamos que, no grande como no pequeno, o devaneio é uma consciência de bem-estar. Numa imagem cósmica, assim como numa imagem da casa ou da casa almejada pela nossa alma, estamos no bem-estar de um repouso, é o que a narradora de ventanias propõe a si e aos seus leitores.  

As fadas? Ficaram do lado de lá. Os duendes continuam no jardim. Quando chegar minha hora de voltar para casa, eles sabem muito bem que serão outra vez visíveis as minhas asas. Afinal, de que são feitos os sonhos? Eles são feitos de medidas de eternidade, costurando ventanias em asas de borboletas.  (CARDEAL, p.44, 2021)

Podemos assegurar que as imagens extremamente significativas dos contos e crônicas atuaram como uma espécie de abertura, projetando nossas inteligência e sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento literário. Ao ecoar Shakespeare nos seus versos, Nic Cardeal costura suas ventanias em nossa memória. Como assegura Cortázar, os contos que perduram em nossa memória são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta que a do seu mero argumento. Ainda é o contista argentino que nos assevera que um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revela sua existência.  E é assim que me sinto: girando maravilhada nos devaneios das ventanias cósmicas.

 

 Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 165-205.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp. 154-157   

POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39.



 


[1] CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp. 154-157    

[2] BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 165-205.

[3] POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39. 

[4] Para girar com segurança as chaves interpretativas do livro de Nic Cardeal, valemo-nos da imprescindível intertextualidade parafrásica de fragmentos do Capítulo V Devaneio e cosmo, do livro A poética do devaneio, de Gaston Bachelard.  

[5] Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
(Trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman).

[6] Filme de Dennis Hopper, EUA - 1969. Elenco: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson.

quarta-feira, 1 de junho de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA - PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|05


PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA

 

Isa Corgosinho


            Ao final da leitura do livro de Vania Clares, veio-me a vontade de sistematizar questões que fui anotando durante a leitura. Assim, deixo aqui registrados os meus devaneios interpretativos de suas Permanências Outonais.   

A prosa poética de Clares deixa entrever em suas fontes a ambivalência das personagens femininas de Clarice Lipector.  Com essa chave genealógica, ousamos mergulhar no processo de estranhamento intencionalmente construído numa temporalidade, cuja noite tem a mesma duração do dia. O resultado é o mergulho conjunto no equinócio intensamente vivenciado pela constante alteração do estado de consciência da personagem outonal. A gangorra do tempo malbaratado situa esse romance entre aqueles dinâmicos e interativos, também adepto à viagem pelo fluxo de consciência. Após um esboço quase perfeito para um desfecho trágico, seguem-se cenários que entrecruzam vida adulta, infância, juventude e proximidade da velhice.




Permanência da estação outonal pode parecer, mas não é um paradoxo: a personagem narradora imprime seus rastros no entre lugar do verão e o inverno. A estação outonal é aquela da transição, sacudida por fortes ventanias existenciais que marcam os capítulos Alternativas para um adeus e Passos de um esboço quase perfeito.  Tomada por uma consciência profunda da inexistência de sentido em tudo que pulsa, a mulher despe-se para a queda ou voo final. Anestesiada pela dor construída no vazio congelante, debruça-se no parapeito e pinta seu último quadro outonal, entretanto, seu corpo recebe o sopro da possibilidade e se recolhe na dualidade e desordem, viver é quase uma ordem, mesmo no limbo. As folhas que rolam ao vento, as cores delineadas, um tênue fio, o vento frio, as geadas alternam-se com a estação das frutas, dos tapetes de folhas, que caem e se renovam.  Essa ausência de sentido da existência é confrontada por uma marcada oposição entre leveza x peso. O exercício de autodeterminação é realizado cotidianamente pela personagem em oposição ao irremediável, inelutável peso de viver; a mulher confronta o acaso, a imprevisibilidade dos acontecimentos dramáticos que cercam a sua existência pintando os quadros reflexivos da leveza em matizes da travessia.

Italo Calvino, no livro Seis propostas para o próximo milênio, lançado no Brasil em 1990, nos apresenta alguns valores literários que deveriam ser preservados como lições imprescindíveis, no curso do próximo milênio. As conferências foram escritas para serem apresentadas nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures na Universidade de Harvard, em Cambridge, mas infelizmente Calvino nos deixou no ano de 1985. As palavras de Calvino, no entanto, continuam reverberando eloquentes:

Minha confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo milênio.  (CALVINO, 1990, p. 11)

Entre essas lições, que falam para a posteridade, A Leveza parece-me aquela inerente à prosa poética de Clares. Vários aspectos desse romance nos leva ao encontro da Leveza, tal qual a entende o escritor italiano. A própria escolha da estação outonal está repleta dos sentidos da leveza em oposição ao pesadume dos dramas vivenciados pela narradora. Mesmo nos momentos em que o peso da existência parece enredar o destino da personagem, como no capítulo Alternativas para um adeus, um esboço perfeito para o suicídio, o leitor se depara com um quadro pintado pela imaginação da personagem, em que as imagens da leveza sustentam a narrativa:

Fico a imaginar a tela que pintaria numa noite como esta, em que as folhas rolam ao vento, e em que me domina o impasse da decisão. Hoje as cores no desenho estariam bem delineadas e definidas, divididas por um tênue fio, unindo os dois lados. (CLARES, 2010, p. 19)  

A leveza aqui comparece nas imagens das folhas que rolam ao vento, pela divisão de tênue fio, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio, o que ficou no filtro das permanências sutis. Essas imagens se contrapõem à mágoa e ao amargo da boca. A visão sincrônica de imagens sutis atua como um filtro do fel que pesa no paladar, mas não é o fel da fealdade.

A imagem do fio nos remete ao ofício das Moiras de fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida; as três irmãs determinam tanto o destino dos deuses quanto o dos homens. A narradora encena o ofício de Átropos, a que corta o fio, mas é detida por Cloto que segura o fuso e tece o fio da vida, ora é Laquesis, que puxa e enrola o fio tecido, e é a figura da leveza, impressa em sua narrativa, que mantém Átropos distante, mas não ausente. Há uma inversão e reversão do ciclo vital: tudo que vive morre, tudo que morre vive. A personagem é o próprio fio nas mãos do destino, mas depois assenhora-se dele.    

Estou entre romper o tênue fio e nunca mais conseguir me reaver. Estou entre romper em duas eternamente. E não seria nada verdadeiro. Ser uma das partes ou as duas separadamente. Porque sou o próprio fio. (CLARES, 2010, p. 20)

Hoje eu sou o adubo do meu fio. O que escolherá entre sucumbir na lama ou fundir-se à semente, reiniciando o ciclo constante. (CLARES, 2010, p. 24)

            É no seio da própria literatura, com epígrafes da escritura sagrada e versos de autoria da própria Clares, que a narradora personagem lança possibilidades dialógicas para a complexidade da vida da linguagem: sobretudo ao recorrer à ironia com as citações bíblicas e ao retirar peso à estrutura da narrativa, investindo na precisão das imagens poéticas, evitando tudo que é vago ou aleatório.

A sabedoria ao buscar o pincel mais fino, a tela mais suave e clara.  A resistência à sufocação das tintas. A moldura mais perfeita.  A adequação ao expor a consistência de um fio retocado. Pelas sábias mãos da vida. (CLARES, 2010, p. 24)

A narrativa é concisa e confronta as dualidades com as ambivalências do entre lugar, a travessia. A personagem narradora oferece ao leitor um processo psicológico no qual interferem elementos sutis, situados em momentos marcantes em sua vida: os traumas da infância, os primeiros desejos, o amor, os sonhos e os acontecimentos dramáticos, a vontade de viver e o desejo da morte, a intensidade e a resiliência.

Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios.

Sirenes de fábricas, embargo de crepúsculos.

Querência de amanhecer

e distante sensação de sonho e brisa. (CLARES, 2010, p. 65)

 

Nas reflexões existencialistas, a personagem nos remete aos diferentes recortes históricos, marcados por experiências que acompanham a sua formação e as transformações culturais e políticas que marcaram as gerações do final da década de 60 até o final da década 80, aproximadamente. As citações de fragmentos musicais, nomes de bandas, astros do cinema nos remetem aos anos de intensas lutas pelas liberdades coletivas e individuais. Como um imperativo categórico, a narradora personagem constrói como medula de sua narrativa o desdobramento do evento amoroso, que marcará como uma nódoa indelével o inacabamento da travessia. 

O feedback narrativo figurativiza, apresenta citações e alusões sobre as utopias coletivas que estão subjacentes a igualmente utópica história de amor. Na dialética das liberdades amorosas, a mulher das permanências outonais deseja o mais profundo e desafiador que é o viver juntinhos como nossos pais:      

[...] e vamos sair pela Augusta de madrugada comer churrasco no Eduardo´s às cinco da manhã e vamos ver o dia nascer com as luzes rosa-azuis enquanto as pessoas correm para o trabalho porque algumas pessoas não são artistas e não se dão o direito de ver o dia nascer assim sem dormir como nós que somos poetas seresteiros e poderemos ser agora tão namorados e apaixonados que você sentirá que não poderá deixar de me ensinar a ser mulher a sua mulher para a vida inteira porque nós podemos ficar velhinhos.juntos numa casa com uma varanda cheia de plantas com um cachorro vira-lata dormindo aos nossos pés [...].  (CLARES, 2010, pp.43-44)

Do grande caldeirão das utopias, ao qual São Paulo forneceu e temperou com os seus melhores ingredientes, restou também o caldo amargo das orgias libertárias, principalmente no tocante ao uso das drogas. O romance refrata, sobretudo, a distopia marcada pelo vírus da AIDS: da década de 80 até 2012, as fontes de pesquisa apontam 656.701 casos de AIDS, atingindo principalmente uma geração que se dispôs de corpo e armas a mudar o mundo. O vírus ataca justamente os centros do gozo do amor e do prazer. 

porque nós aproveitaremos as noites filosofando muito relembrando a Augusta e a guitarra de Jimmy Hendrix junto com a voz rouca da Janis Joplin e quem sabe faz a hora não espera acontecer junto com nossos porres de amor e nossos abraços de verdade quando e porque não precisávamos nem falar nada e pela vida inteira esse abraço sempre dirá tudo que queria mesmo dizer porque o amor é tão inadiável e urgente em meio às brigas que não serão nossas mas consequências do mal de uma geração inteira que ficou tão doente e inconsciente da sua própria doença maldita disfarçada em sonhos que vêm em saquinhos branquinhos comprimidos brancos destilados envelopinhos marrons sequinhos cheirosos tal esterco enfumaçando entorpecendo o sonho que não acabará nunca assim como um sonho nas acabará sim a condição da conveniência diante da realidade das limitações fazendo assim tão encantado o sonho das varandas entupidas de samambaias e fores de maracujá de balanço com almofadas coloridas e os cabelos brancos voando ao vento num por de sol alaranjado...)   (CLARES, 2010, pp. 44-45)     

Jean Baudrillard[1] interpreta o final desse período como uma pós-orgia. A orgia está inscrita na modernidade: o da liberação em todos os domínios – liberação política, sexual, da mulher, da arte, das forças produtivas e de destruição, das pulsações do inconsciente etc. Assim como em Baudrillard, o romance de Clares figurativiza o percurso da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de mensagens, de ideologias, de prazeres. A pergunta que nos espreita ao final é: o que fazer após a orgia?

Não sei quando aconteceu, nem como, mas aconteceu. [...] Fiz uma loucura. Lá em casa, sabe, peguei uma seringa do lixo e a usei. Tinha muita gente lá. Depois veio aquela febre alta, os tremores. Pode ter sido nessa loucura. Ou naquelas compulsões de vários dias em que não tinha noção nenhuma do que fazia. Em que eu acordava dormindo ao lado de gente que eu não conhecia, ou às vezes, no chão de qualquer rua, tendo de perguntar aos outros onde estava, ou todo machucado com as roupas sujas, assaltado, ou dentro do carro batido em um muro qualquer. Pode ter sido qualquer um desses dias. Mas o fato é esse. Estou com o vírus, sou um portador. (CLARES, 2010, p. 55).

O filósofo francês busca respostas ao constatar a contaminação respectiva de todos as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão dos gêneros. O sexo circula em toda parte, menos na sexualidade. O político já não está mais no político, mas infecta todos os domínios: a economia, a ciência, a arte, o esporte. Baudrillard enfatiza: o esporte já não está no esporte _ está nos negócios, no sexo, na política, no estilo geral da performance.

Aqui parece que encontramos rastros do percurso do corpo do homem amado, contaminado pelo vírus: a AIDS corresponde menos a um excesso de sexo e gozo do que uma descompensação sexual por infiltração geral em todos os domínios da vida. No entendimento de Baudrillard, é em todo o sexual que a imunidade se perde, que se perde a diferença sexual e, portanto, a própria sexualidade. É na difração do princípio da realidade sexual, no nível fractal, micrológico e desumano, que se instala a confusão elementar da epidemia, conclui o filósofo.




Como conseguir falar de nossa época, de acontecimentos tão recentes, representando-os com a ideia de leveza? Clares encena a busca da leveza como um objeto inalcançável, como uma busca sem fim. Assim como Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, em Permanência Outonais é possível constatar dramaticamente o inelutável peso do viver: também no romance da escritora paulista, o peso de viver está em toda forma de opressão; na obscura rede de constrições públicas e privadas que acaba por aprisionar cada ser em suas tramas cada vez mais cerradas.  Os episódios entrecruzados dos períodos da descoberta do amor adolescente, do amor na juventude; dos projetos de profissão, da criação dos filhos, do sonho de envelhecer juntos, ou seja, todo um conjunto de coisas que apreciamos e escolhemos na vida por tudo que representa de beleza e leveza, resulta, revela-se bem cedo de um peso insustentável. 

A superação acontece gradualmente pela vivacidade e inteligência, a personagem descobre o incessante ciclo da vida nas estações e isso a impede à queda final. A mudança do ponto de observação da vida pela ótica da poesia, muda sua imagem do mundo, recriando-o pela observação indireta da palavra poética. É na relação amorosa com as metáforas que o amor profundo pelo amado atinge o estado de leveza.

Sim, é só um passo para o universo, deixarei que partas, sempre foi teu sonho: uma nave de portas abertas, do tamanho da praia iluminada de luar. Vai, minha vida, que está terra é pequena demais para tua ansiedade, é densa demais para tuas asas, é frouxa demais para o teu grito, é abafada demais para sua liberdade. (CLARES, 2010, p. 65)

O leitor não encontrará nesse romance nenhuma forma de julgamento, condenação, mas atos de coragem na sustentação dos caminhos e descaminhos da relação amorosa, também ausente está o discurso reivindicatório de vítima de relações abusivas. Há uma espécie de renascimento na morte do amado. É o que nos declara uma voz intrusa, que substitui a narração em primeira pessoa. Ocorre uma transferência mais forte da pulsão de vida, herdada do amado: o gosto pela vida, a sua alegria ostensiva, escancarada, indiscriminada, inconsequente, que se derramava em noites, olhos e gargalhadas. A personagem abraça seu processo de autodeterminação, extrai coragem da potência lírica, do amor materno, da aceitação da vida como permanências outonais: as folhas que se renovam ao vento, os dentes ficados na fruta madura e o gozo insustentável da leveza do ser, o ser da poesia. O romance de Vania Clares é um presente edificante para nossas almas femininas, por isso meu coração atento escuta essa voz.  

Na aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da noite. É nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a desordem não é senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no êxtase. (CLARES, 2010, p. 73).  

Hoje, num voo leve, me vejo.

Dispo-me sem medo dos disfarces tolos.

Sinto a centelha divina. Memória de luz.

Reconheço-me. (CLARES, 2010, p. 93)

                

 

BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal _ ensaios sobre fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1996.

CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CLARES, Vania. Permanências Outonais. São Paulo: Sarasvati Editora, 2010.





[1] BAUDRILLARD problematiza a AIDS no contexto dos fenômenos extremos no livro A transparência do mal.

 

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