FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|05
PERMANÊNCIAS OUTONAIS SOB O SIGNO DA LEVEZA
Ao
final da leitura do livro de Vania Clares, veio-me a vontade de sistematizar questões
que fui anotando durante a leitura. Assim, deixo aqui registrados os meus
devaneios interpretativos de suas Permanências
Outonais.
A
prosa poética de Clares deixa entrever em suas fontes a ambivalência das
personagens femininas de Clarice Lipector.
Com essa chave genealógica, ousamos mergulhar no processo de
estranhamento intencionalmente construído numa temporalidade, cuja noite tem a
mesma duração do dia. O resultado é o mergulho conjunto no equinócio intensamente
vivenciado pela constante alteração do estado de consciência da personagem
outonal. A gangorra do tempo malbaratado situa esse romance entre aqueles
dinâmicos e interativos, também adepto à viagem pelo fluxo de consciência. Após
um esboço quase perfeito para um desfecho trágico, seguem-se cenários que
entrecruzam vida adulta, infância, juventude e proximidade da velhice.
Permanência
da estação outonal pode parecer, mas não é um paradoxo: a personagem narradora
imprime seus rastros no entre lugar do verão e o inverno. A estação outonal é
aquela da transição, sacudida por fortes ventanias existenciais que marcam os
capítulos Alternativas para um adeus
e Passos de um esboço quase perfeito. Tomada por uma consciência profunda da inexistência
de sentido em tudo que pulsa, a mulher despe-se para a queda ou voo final. Anestesiada
pela dor construída no vazio congelante, debruça-se no parapeito e pinta seu
último quadro outonal, entretanto, seu corpo recebe o sopro da possibilidade e
se recolhe na dualidade e desordem,
viver é quase uma ordem, mesmo no limbo. As
folhas que rolam ao vento, as cores delineadas, um tênue fio, o vento frio, as
geadas alternam-se com a estação das frutas, dos tapetes de folhas, que caem e
se renovam. Essa ausência de sentido da
existência é confrontada por uma marcada oposição entre leveza x peso. O
exercício de autodeterminação é realizado cotidianamente pela personagem em
oposição ao irremediável, inelutável peso de viver; a mulher confronta o acaso,
a imprevisibilidade dos acontecimentos dramáticos que cercam a sua existência
pintando os quadros reflexivos da leveza em matizes da travessia.
Italo
Calvino, no livro Seis propostas para o
próximo milênio, lançado no Brasil em 1990, nos apresenta alguns valores
literários que deveriam ser preservados como lições imprescindíveis, no curso
do próximo milênio. As conferências foram escritas para serem apresentadas nas Charles Eliot Norton Poetry Lectures na
Universidade de Harvard, em Cambridge, mas infelizmente Calvino nos deixou no
ano de 1985. As palavras de Calvino, no entanto, continuam reverberando
eloquentes:
Minha
confiança no futuro da literatura consiste em saber que há coisas que só a
literatura com seus meios específicos nos pode dar. Quero pois dedicar estas
conferências a alguns valores ou qualidades ou especificidades da literatura
que me são particularmente caros, buscando situá-los na perspectiva do novo
milênio. (CALVINO, 1990, p. 11)
Entre
essas lições, que falam para a posteridade, A Leveza parece-me aquela inerente
à prosa poética de Clares. Vários aspectos desse romance nos leva ao encontro
da Leveza, tal qual a entende o
escritor italiano. A própria escolha da estação outonal está repleta dos
sentidos da leveza em oposição ao pesadume dos dramas vivenciados pela
narradora. Mesmo nos momentos em que o
peso da existência parece enredar o destino da personagem, como no capítulo Alternativas para um adeus, um esboço
perfeito para o suicídio, o leitor se depara com um quadro pintado pela
imaginação da personagem, em que as imagens da leveza sustentam a narrativa:
Fico
a imaginar a tela que pintaria numa noite como esta, em que as folhas rolam ao
vento, e em que me domina o impasse da decisão. Hoje as cores no desenho
estariam bem delineadas e definidas, divididas por um tênue fio, unindo os dois
lados. (CLARES, 2010, p. 19)
A
leveza aqui comparece nas imagens das folhas que rolam ao vento, pela divisão
de tênue fio, numa relação de equilíbrio e desequilíbrio, o que ficou no filtro
das permanências sutis. Essas imagens se contrapõem à mágoa e ao amargo da
boca. A visão sincrônica de imagens sutis atua como um filtro do fel que pesa
no paladar, mas não é o fel da fealdade.
A
imagem do fio nos remete ao ofício das Moiras de fabricar, tecer e cortar
aquilo que seria o fio da vida; as três irmãs determinam tanto o destino dos
deuses quanto o dos homens. A narradora encena o ofício de Átropos, a que corta
o fio, mas é detida por Cloto que segura o fuso e tece o fio da vida, ora é
Laquesis, que puxa e enrola o fio tecido, e é a figura da leveza, impressa em
sua narrativa, que mantém Átropos distante, mas não ausente. Há uma inversão e
reversão do ciclo vital: tudo que vive morre, tudo que morre vive. A personagem
é o próprio fio nas mãos do destino, mas depois assenhora-se dele.
Estou
entre romper o tênue fio e nunca mais conseguir me reaver. Estou entre romper
em duas eternamente. E não seria nada verdadeiro. Ser uma das partes ou as duas
separadamente. Porque sou o próprio fio. (CLARES, 2010, p. 20)
Hoje
eu sou o adubo do meu fio. O que escolherá entre sucumbir na lama ou fundir-se
à semente, reiniciando o ciclo constante. (CLARES, 2010, p. 24)
É no seio da própria literatura, com
epígrafes da escritura sagrada e versos de autoria da própria Clares, que a
narradora personagem lança possibilidades dialógicas para a complexidade da
vida da linguagem: sobretudo ao recorrer à ironia com as citações bíblicas e ao
retirar peso à estrutura da narrativa, investindo na precisão das imagens
poéticas, evitando tudo que é vago ou aleatório.
A
sabedoria ao buscar o pincel mais fino, a tela mais suave e clara. A resistência à sufocação das tintas. A
moldura mais perfeita. A adequação ao
expor a consistência de um fio retocado. Pelas sábias mãos da vida. (CLARES,
2010, p. 24)
A
narrativa é concisa e confronta as dualidades com as ambivalências do entre
lugar, a travessia. A personagem narradora oferece ao leitor um processo
psicológico no qual interferem elementos sutis, situados em momentos marcantes
em sua vida: os traumas da infância, os primeiros desejos, o amor, os sonhos e
os acontecimentos dramáticos, a vontade de viver e o desejo da morte, a
intensidade e a resiliência.
Esses dias têm subvida, tique-taque de relógios.
Sirenes de fábricas, embargo de crepúsculos.
Querência de amanhecer
e distante sensação de sonho e brisa. (CLARES, 2010,
p. 65)
Nas
reflexões existencialistas, a personagem nos remete aos diferentes recortes
históricos, marcados por experiências que acompanham a sua formação e as
transformações culturais e políticas que marcaram as gerações do final da
década de 60 até o final da década 80, aproximadamente. As citações de
fragmentos musicais, nomes de bandas, astros do cinema nos remetem aos anos de
intensas lutas pelas liberdades coletivas e individuais. Como um imperativo
categórico, a narradora personagem constrói como medula de sua narrativa o desdobramento
do evento amoroso, que marcará como uma nódoa indelével o inacabamento da
travessia.
O
feedback narrativo figurativiza, apresenta citações e alusões sobre as utopias
coletivas que estão subjacentes a igualmente utópica história de amor. Na
dialética das liberdades amorosas, a mulher das permanências outonais deseja o
mais profundo e desafiador que é o viver juntinhos como nossos pais:
[...]
e vamos sair pela Augusta de madrugada comer churrasco no Eduardo´s às cinco da
manhã e vamos ver o dia nascer com as luzes rosa-azuis enquanto as pessoas
correm para o trabalho porque algumas pessoas não são artistas e não se dão o
direito de ver o dia nascer assim sem dormir como nós que somos poetas
seresteiros e poderemos ser agora tão namorados e apaixonados que você sentirá
que não poderá deixar de me ensinar a ser mulher a sua mulher para a vida
inteira porque nós podemos ficar velhinhos.juntos numa casa com uma varanda cheia de plantas com um cachorro vira-lata dormindo aos nossos pés [...]. (CLARES, 2010, pp.43-44)
Do
grande caldeirão das utopias, ao qual São Paulo forneceu e temperou com os seus
melhores ingredientes, restou também o caldo amargo das orgias libertárias,
principalmente no tocante ao uso das drogas. O romance refrata, sobretudo, a
distopia marcada pelo vírus da AIDS: da década de 80 até 2012, as fontes de
pesquisa apontam 656.701 casos de AIDS, atingindo principalmente uma geração
que se dispôs de corpo e armas a mudar o mundo. O vírus ataca justamente os
centros do gozo do amor e do prazer.
porque nós aproveitaremos as noites filosofando muito relembrando a Augusta e a guitarra de Jimmy Hendrix junto com a voz rouca da Janis Joplin e quem sabe faz a hora não espera acontecer junto com nossos porres de amor e nossos abraços de verdade quando e porque não precisávamos nem falar nada e pela vida inteira esse abraço sempre dirá tudo que queria mesmo dizer porque o amor é tão inadiável e urgente em meio às brigas que não serão nossas mas consequências do mal de uma geração inteira que ficou tão doente e inconsciente da sua própria doença maldita disfarçada em sonhos que vêm em saquinhos branquinhos comprimidos brancos destilados envelopinhos marrons sequinhos cheirosos tal esterco enfumaçando entorpecendo o sonho que não acabará nunca assim como um sonho nas acabará sim a condição da conveniência diante da realidade das limitações fazendo assim tão encantado o sonho das varandas entupidas de samambaias e fores de maracujá de balanço com almofadas coloridas e os cabelos brancos voando ao vento num por de sol alaranjado...) (CLARES, 2010, pp. 44-45)
Jean
Baudrillard[1]
interpreta o final desse período como uma pós-orgia. A orgia está inscrita na
modernidade: o da liberação em todos os domínios – liberação política, sexual,
da mulher, da arte, das forças produtivas e de destruição, das pulsações do
inconsciente etc. Assim como em Baudrillard, o romance de Clares figurativiza o
percurso da produção e da superprodução virtual de objetos, de signos, de
mensagens, de ideologias, de prazeres. A pergunta que nos espreita ao final é:
o que fazer após a orgia?
Não
sei quando aconteceu, nem como, mas aconteceu. [...] Fiz uma loucura. Lá em
casa, sabe, peguei uma seringa do lixo e a usei. Tinha muita gente lá. Depois
veio aquela febre alta, os tremores. Pode ter sido nessa loucura. Ou naquelas
compulsões de vários dias em que não tinha noção nenhuma do que fazia. Em que
eu acordava dormindo ao lado de gente que eu não conhecia, ou às vezes, no chão
de qualquer rua, tendo de perguntar aos outros onde estava, ou todo machucado
com as roupas sujas, assaltado, ou dentro do carro batido em um muro qualquer.
Pode ter sido qualquer um desses dias. Mas o fato é esse. Estou com o vírus,
sou um portador. (CLARES, 2010, p. 55).
O
filósofo francês busca respostas ao constatar a contaminação respectiva de
todos as categorias, substituição de uma esfera por outra, confusão dos
gêneros. O sexo circula em toda parte, menos na sexualidade. O político já não
está mais no político, mas infecta todos os domínios: a economia, a ciência, a
arte, o esporte. Baudrillard enfatiza: o esporte já não está no esporte _ está
nos negócios, no sexo, na política, no estilo geral da performance.
Aqui
parece que encontramos rastros do percurso do corpo do homem amado, contaminado
pelo vírus: a AIDS corresponde menos a um excesso de sexo e gozo do que uma
descompensação sexual por infiltração geral em todos os domínios da vida. No
entendimento de Baudrillard, é em todo o sexual que a imunidade se perde, que
se perde a diferença sexual e, portanto, a própria sexualidade. É na difração
do princípio da realidade sexual, no nível fractal, micrológico e desumano, que
se instala a confusão elementar da epidemia, conclui o filósofo.
Como
conseguir falar de nossa época, de acontecimentos tão recentes,
representando-os com a ideia de leveza? Clares encena a busca da leveza como um
objeto inalcançável, como uma busca sem fim. Assim como Milan Kundera em A insustentável leveza do ser, em Permanência Outonais é possível constatar
dramaticamente o inelutável peso do viver: também no romance da escritora
paulista, o peso de viver está em toda forma de opressão; na obscura rede de
constrições públicas e privadas que acaba por aprisionar cada ser em suas
tramas cada vez mais cerradas. Os
episódios entrecruzados dos períodos da descoberta do amor adolescente, do amor
na juventude; dos projetos de profissão, da criação dos filhos, do sonho de
envelhecer juntos, ou seja, todo um conjunto de coisas que apreciamos e
escolhemos na vida por tudo que representa de beleza e leveza, resulta,
revela-se bem cedo de um peso insustentável.
A
superação acontece gradualmente pela vivacidade e inteligência, a personagem
descobre o incessante ciclo da vida nas estações e isso a impede à queda final.
A mudança do ponto de observação da vida pela ótica da poesia, muda sua imagem
do mundo, recriando-o pela observação indireta da palavra poética. É na relação
amorosa com as metáforas que o amor profundo pelo amado atinge o estado
de leveza.
Sim,
é só um passo para o universo, deixarei que partas, sempre foi teu sonho: uma
nave de portas abertas, do tamanho da praia iluminada de luar. Vai, minha vida,
que está terra é pequena demais para tua ansiedade, é densa demais para tuas
asas, é frouxa demais para o teu grito, é abafada demais para sua liberdade.
(CLARES, 2010, p. 65)
O
leitor não encontrará nesse romance nenhuma forma de julgamento, condenação,
mas atos de coragem na sustentação dos caminhos e descaminhos da relação
amorosa, também ausente está o discurso reivindicatório de vítima de relações
abusivas. Há uma espécie de renascimento na morte do amado. É o que nos declara
uma voz intrusa, que substitui a narração em primeira pessoa. Ocorre uma transferência
mais forte da pulsão de vida, herdada do amado: o gosto pela vida, a sua
alegria ostensiva, escancarada, indiscriminada, inconsequente, que se derramava
em noites, olhos e gargalhadas. A personagem abraça seu processo de
autodeterminação, extrai coragem da potência lírica, do amor materno, da
aceitação da vida como permanências outonais: as folhas que se renovam ao
vento, os dentes ficados na fruta madura e o gozo insustentável da leveza do
ser, o ser da poesia. O romance de Vania Clares é um presente edificante para
nossas almas femininas, por isso meu coração atento escuta essa voz.
Na
aparente desordem do movimento dos corpos, extasiado contemplo o absoluto da
noite. É nesse absoluto imutável, onde meu corpo se move em constante noite, a
desordem não é senão a simetria perfeita para o milagre que surge, assim, no
êxtase. (CLARES, 2010, p. 73).
Hoje, num voo leve, me vejo.
Dispo-me sem medo dos disfarces tolos.
Sinto a centelha divina. Memória de luz.
Reconheço-me. (CLARES, 2010, p. 93)
BAUDRILLARD, Jean.
A transparência do mal _ ensaios sobre
fenômenos extremos. Campinas: Papirus, 1996.
CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CLARES, Vania. Permanências Outonais. São Paulo:
Sarasvati Editora, 2010.
[1]
BAUDRILLARD
problematiza a AIDS no contexto dos fenômenos extremos no livro A transparência do mal.
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