sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

GRÁVIDA DE MÚSICAS E CANÇÕES, OFERTO-LHES OS DEVANEIOS POÉTICOS DE JANETE MANACÁ

Montagem de Elizabete Nascimento
 

GRÁVIDA DE MÚSICAS E CANÇÕES, OFERTO-LHES OS DEVANEIOS POÉTICOS DE JANETE MANACÁ

 Por Maria Elizabete N. de Oliveira


A importância vocal de uma palavra deve, por si só, prender a atenção de um fenomenólogo da poesia. A palavra alma pode ser dita poeticamente com tal convicção que anima todo um poema. O registro poético que corresponde à alma deve, pois, ficar em aberto para as nossas indagações fenomenológicas.

 

Gaston Bachelard, 2005

 

 Oferto-lhes para brinde natalino, nesse ano de 2025, o poema Aborto, de Janete Manacá:                       

ABORTOS 

é imprescindível expulsar as tristezas internas

e esvaziar-se para receber as dádivas do amanhä

 

abortei tudo que ouvi

durante toda a minha vida

e que intoxicou o meu corpo

abortei as cicatrizes internas

cada pedra que me atiraram

e as palavras que me dilaceraram

abortei as culpas que me impuseram

mágoas dos abraços negados

e o pavor de ser rejeitada

abortei o incômodo da ingratidão

as vezes que fingiram não me ver

o rosto virado para não me cumprimentar

abortei as críticas ácidas e cruéis

as mentiras que disseram a meu respeito

e o meu pânico diante do espelho

abortei o sentimento de impotência

as lágrimas cristalizadas na alma

e tudo que neguei por não me aceitar

hoje em êxtase e grávida de músicas

eu quero apenas parir canções de amor

que possam inspirar outras gerações.

Antonio Candido (2011), em sua teoria sobre a função humanizadora da literatura, endossa que a arte literária é essencial para que o ser humano se reconheça, se sensibilize e transcenda sua própria existência. O poema de Janete Manacá dialoga diretamente com essa perspectiva, pois o "abortar" simbólico descrito no texto não é apenas um ato de negação, mas um processo de libertação e reconstrução do eu, vejamos: Abortei tudo que ouvi/ durante toda a minha vida.

O poema atribui voz à subjetividade de um eu que busca se purificar das amarras sociais, das narrativas que o aprisionam. Nesse ínterim, Candido sugere que a literatura é um espaço de reconstrução da dignidade humana, e nesse poema, o eu lírico busca essa redenção ao expulsar as "intoxicações" advindas do sistema capitalista no qual nos inserimos. Nessa vertente, literatura é catártica e humanizadora, pois apresenta como culminância desse processo: [...] quero apenas parir canções de amor / que possam inspirar outras gerações. Assim, a literatura e a arte apresentam o movimento entre a morte e o renascimento como dádivas criativas que ultrapassam o sofrimento individual, transformando-se em bens coletivos, reflexos dos processos humanizadores defendidos pelo autor.

Ainda na vertente do diálogo, Beth Brait (2010) discute as vozes discursivas ao convidar para o debate o dialogismo baktiniano e enfatizar que a literatura é um espaço de diálogo entre múltiplas vozes e discursos. Assim, o poema "Abortos" pode ser lido como uma resposta direta a vozes sociais opressoras e internalizadas, em um processo de confronto e apagamento dessas vozes, em  [...] as palavras que me dilaceraram e [...] as críticas ácidas e cruéis; Janete Manacá dá destaque às vozes que marcam negativamente à identidade do sujeito. Essas falas sociais tornam-se tóxicas e devem ser "abortadas". O poema, portanto, insere-se em um jogo dialógico: primeiro, escuta-se a voz opressora, depois, ela é rejeitada e transformada.   O "eu lírico" constrói uma nova voz ao dizer: [..] hoje em êxtase e grávida de músicas. Um enunciado marcado por positividade, amor e criação que sugere uma ruptura com o discurso anterior. Ao considerar a voz de Beth Brait, trata-se de um deslocamento do sentido: o discurso opressor é esvaziado para dar lugar a uma nova enunciação.

Essa nova enunciação alia-se as imagens propostas por Gaston Bachelard e a poética do espaço interior, em sua obra A Poética do Espaço (2005), pois estas surgem da interioridade do ser humano, ao analisar a casa como metáfora do eu, com seus espaços íntimos e ocultos. No poema "Abortos", o corpo e a alma do eu lírico tornam-se esse espaço simbólico, no qual dores e experiências negativas foram "guardadas" e precisam ser expulsas e o ato de "abortar" pode ser interpretado como uma [...] limpeza do espaço interno: /[...] é imprescindível expulsar as tristezas internas e esvaziar-se. A imagem do esvaziamento apresenta-se como um ato essencial para a renovação do ser. Segundo Bachelard, o espaço precisa ser "preparado" para o novo, assim como a alma do eu lírico se prepara para "parir canções de amor". O autor valoriza a imagem do sonho e da criação poética. Assim, o "êxtase" e a gravidez de músicas simbolizam um espaço imaginário onde a criação poética surge como forma de ressignificação da vida.

Essa concepção emaranha-se também à poética do tempo e do renascimento de Octavio Paz (1982), em que o autor apresenta a ideia de morte e renascimento como centrais ao fazer poético. Para Paz, a poesia é capaz de quebrar o tempo linear, transformando o passado em presente e criando um novo futuro. Neste viés, o poema "Abortos" encarna esse ciclo de morte simbólica e renascimento criativo, pois o ato de abortar simboliza o fim de um ciclo marcado pela dor e pela rejeição: [...] abortei as culpas que me impuseram / mágoas dos abraços negados. A palavra "abortar" é impactante porque carrega uma conotação de interrupção, mas no contexto do poema, ela é ressignificada como libertação, redimensiona o sentido inicial. Octavio Paz diria que o tempo é refeito aqui: as culpas passadas são "abortadas" para que o eu lírico possa se recriar no presente. Deste modo, o poema culmina em um futuro criativo e inspirador: [...] quero apenas parir canções de amor. Esse verso dialoga com a ideia de Octavio Paz de que a poesia é um ato de criação que transcende a destruição, sendo o amor e a música símbolos do renascimento do eu e a sua capacidade de oferecer algo ao mundo ao romper com o ciclo de dor.

Podemos inferir que o poema "Abortos" de Janete Manacá é uma poderosa expressão do renascimento do sujeito feminino, que, ao "abortar" tudo o que o oprime, reconstrói-se de forma criativa e amorosa. Por intermédios das lentes teóricas de Antonio Candido, Beth Brait, Gaston Bachelard e Octavio Paz, percebe-se que o texto dialoga com a literatura como espaço humanizador, com a ruptura dos discursos opressores, com a poética da interioridade e com o tempo cíclico de morte e de criação, tão caro à literatura de autoria feminina porque é a própria pele. Assim, o ato de "parir canções de amor" simboliza não apenas a superação pessoal, mas também o compromisso do eu lírico feminino [por que parir é uma ação exclusivamente feminina] com um futuro inspirador que se conecta a função essencial da arte e da poesia: transformar dores em dádivas.

Que possamos, minhas companheiras, parir muitas canções de amor em 2025 e continuar com a po-ética do abraço.

Um brinde à vida!

 Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010.

CANDIDO. Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

CORTEZÃO, Marta. II Tomo das bruxas: corpo & memória. Curitiba: Eu-i, 2024.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

** Imagens do texto - fonte: Pinterest.

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Janete Manacá (Cuiabá/MT) - é devota de Gaia, apaixonada pela vida, rios, florestas, animais... Tem a poesia como uma grande aliada e a música uma dádiva, ambas se complementam no seu bailado cotidiano para se autoconhecer, ser melhor e superviver.



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Elizabete Nascimento (Cáceres/MT) -  é poeta, professora e avó. O silêncio e o tempo são seus mestres e, por isso, tenta guardar as dores com dignidade e as ressignifica em páginas, na ânsia de apontar que o verbo pode ser abrigo, cura e voo. Cada palavra que rabisca é na tentativa de ofertar um sopro de esperança ao mundo. Aprendeu que escrever e amar são, voos de pássaros, os únicos caminhos, verdadeiramente, eternos.

2 comentários:

  1. Primorosa como uma alquimista! Teceu com letras de diamantes, formou palavras oceânicas e alcançou a essência que repousa no corpo da poesia. Com seu olhar de Águia dialogou com cada detalhe e me surpreendeu, como quem desvenda o indesvendável! Mostrou que uma poesia, tão simples, pode guarda em si uma imensidão. Elizabete, querida. Grata por seu olhar afetivo e necessário! Deixou minha alma alimentada! Abraços de bruxa para bruxa, com cheirinho de alecrim.

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  2. Maria Elizabete, o seu olhar crítico e sensível de quem faz das letras o seu voar e nos presenteia nessa semana Natalina com o poema convidativo e necessário de Janete Manacá que é uma verdadeira guerreira da produção artística com mais de 10 livros publicados e com uma escrita que acolhe e sacode as nossas dores, nos ofertando o direito ao aborto de tudo que faz mal ao nosso corpo físico e a nossa alma. O encontro dessas duas mulheres escritoras, poetas e amantes da arte é um verdadeiro presente de Natal.

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