sexta-feira, 27 de junho de 2025

ROSÁRIO MARIA, POEMA DE ELIZABETE NASCIMENTO

 CAVAR A ALMA E TECER PRIMAVERA: UMA LEITURA SIMBÓLICA DO POEMA ROSÁRIO MARIA, DE ELIZABETE NASCIMENTO

POR JOCINEIDE CATARINA MACIEL DE SOUZA

Imagem Pinterest
Esta abordagem propõe uma leitura simbólica do poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento. Toma como eixo central a construção de um sujeito poético feminino que se insurge por meio da palavra, da memória coletiva e da força do cotidiano. Ancorada em vozes críticas como Hélène Cixous, Conceição Evaristo e Gaston Bachelard, a análise mostra como o poema desloca o silêncio histórico das mulheres para uma textualidade insurgente, sensível e potente.

O poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento, inscreve-se numa linhagem poética que combina linguagem, gênero e território. Ao mobilizar o nome “Maria” como signo coletivo e ancestral, o texto articula o íntimo e o político, o místico e o cotidiano. Trata-se de uma poética da escavação: da alma, da terra e da história.

A repetição de “Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria” é um mantra que impõe ritmo e urgência à leitura. Como sugere Gaston Bachelard (1993), a imagem da escavação remete ao inconsciente profundo, às “cavernas da alma” onde habita a memória arquetípica. Neste caso, o gesto de cavar é também um gesto de resistência, de retorno ao próprio corpo como território de força.

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A presença do “magma”, da “lareira” e do “incendiar o mundo” evoca o elemento fogo como transformação. Cixous (2013), em O riso da Medusa, argumenta que a escrita feminina precisa incendiar as estruturas do discurso patriarcal. O fogo em Rosário Maria é reativo e criador. Não destrói: liberta.

A passagem de “Maria” para “Marias” marca uma virada importante. O eu lírico singular se dissolve no plural coletivo, numa construção identitária que ecoa o conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo (2005): a escrita que emerge da vida, das vivências encarnadas de mulheres silenciadas. Maria é toda mulher que cava, fia, lavra e canta.

As Marias de Elizabete “tecem outras rotas”, “acordam”, “desfiam os rosários”, num movimento de agenciamento coletivo. Aqui, o rosário não é símbolo de submissão religiosa, mas de insurgência simbólica. Desfiar os rosários é desfazer as tramas da resignação.

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A poesia de Elizabete emerge como um espaço de escuta e mobilização. A expressão final do poema — “a primavera precisa chegar” — funciona como síntese do desejo de transformação. Não é uma primavera natural, mas histórica: exige que a palavra rompa o silêncio-túmulo e inaugure um novo ciclo. Rosário Maria é mais do que um poema. É um manifesto. Com ritmo de ladainha e corpo de reza profana o poema devolve à linguagem sua função primeva: a de criar mundos. E como lembra Paul Ricoeur (1997), “o que nos define não é o que lembramos, mas a história que somos capazes de contar”. As Marias de Elizabete contam, tecem e fazem florir a primavera.


ROSÁRIO MARIA

 

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Deixa que escorra na pele o magma, Maria!

Labuta rainha, debulha o rosário, Maria!

Suba a ladeira, acenda a lareira, saia da fileira, Maria!

Desagua a mar, Maria.

Lava-se no lar, Maria.

Senta-se no bar, Maria.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Há magma em sua terra, Maria.

Incendeia o mundo, Maria!

Saia da fila, Maria!

Balança a saia, Maria!

Lavra a terra com os fios da vida, Maria.

Espalha sementes, Maria.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Tu és uma Maria.

Nós, somos muitas, Marias!

Vençam as crostas da pele, Marias!

Teçam outras rotas, Marias!

Acorda! Chegou a hora de desfiar os rosários, Marias.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Marias.

A conta está paga, Marias.

Unam-se! Há fios prateados na madrugada, Marias.

Teçam atônitas as teias da vida, Marias.

Com pérolas que adornam a garganta, Marias!

Com fé e esperança que ilustram a vida, Marias!

Corações alados espalham amor, Marias!

 

Vai!  Deixa que as palavras abram sua boca de túmulo,

a primavera precisa chegar.

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Referências

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa e outros ensaios feministas. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

EVARISTO, Conceição. "Escrevivências: a escrita de nós-mulheres". Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, 2005.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

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Arquivo da autora

Jocineide Catarina Maciel de Souza - Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/Unemat) (2021). Mestra em Estudos Literários também pela Unemat (2014). Graduada em Letras (2009). Quilombola do complexo territorial de Pita Canudo em Cáceres/MT. Produziu o documentário: “Quintais Quilombolas: Memória e identidade Cultural do Quilombo Pita Canudos Cáceres/MT”, com o apoio da Secel, por meio da Lei Aldir Blanc, em 2020. É, também, produtora cultural e diretora da Escola Estadual Demétrio Pereira, em Reserva do Cabaçal/MT-BRASIL.




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Arquivo da autora

Elizabete Nascimento (Cáceres/MT) -  é poeta, professora e avó. O silêncio e o tempo são seus mestres e, por isso, tenta guardar as dores com dignidade e as ressignifica em páginas, na ânsia de apontar que o verbo pode ser abrigo, cura e voo. Cada palavra que rabisca é na tentativa de ofertar um sopro de esperança ao mundo. Aprendeu que escrever e amar são, voos de pássaros, os únicos caminhos, verdadeiramente, eternos.

4 comentários:

  1. Viva as Marias que reinventam as formas de viver.

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  2. Maria, Maria ... uma poesia encantada, o que a análise mostra:: a alma que insurge.
    Maria!

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  3. Parabéns à professora Elizabete Nascimento pela contribuição à literatura mato-grossense e à professora Jocineide pela sábia apreciação.

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  4. Poema belíssimo e belíssimo, também, esse artigo sobre ele. As reflexões sobre os "Rosários" de todas as "Marias" são sempre necessárias e fundamentais. Parabéns à poeta Elizabete e à professora Jocineide pela contribuição com esse artigo.

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