C O M Q U A N T A S E S T A Ç Õ E S S E F A Z U M A M U L H E R
POR Isa Corgosinho
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Depois do estupro, fui expulsa de casa após a denúncia que fiz contra meu pai. Morei por algum tempo na casa de uma prima, que veio do norte com minha mãe, ainda solteira. Depois que atingi a maioridade, aluguei um quarto de pensão com uma amiga. Abandonei a escola antes de concluir o 3º ano do Ensino Médio e dela só guardei um livro porque amava o título A hora da estrela. Faria da minha o inverso da vida da protagonista.
PRIMAVERA
Na primavera da minha
vida, qualquer noitada regada à cerveja no bar, presentes como bijuterias,
roupas, maquiagem, caixas de chocolate eram suficientes para que eu fizesse as
vontades dos homens, meu corpo jovem e as mentiras sussurradas no escuro
aumentavam a macheza deles. Eu os fazia supor a minha entrega e submissão,
enquanto na verdade só estava manipulando a vaidade masculina, toda concentrada
no pau e no poder: sim, senhor! Na verdade, pra mim, eram corpos
anônimos, sem faces. Páginas viradas do meu folhetim.
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Não era difícil
encontrar homens que pagassem por um programa com uma jovem de 18 anos, os
aplicativos serviam principalmente pra isso. A maioria das mulheres que usa
esses aplicativos busca encontrar um par perfeito, mas boa parte delas já
sofreu golpes e desenganos. No meu caso, logo no primeiro encontro, apresento
minha tabela de preços e as opções de prazer.
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Marco o longo verão da minha vida quando fiz programas com homens de vários estados, afinal moro na cidade maravilhosa, reduto do turismo sexual. Os conterrâneos são metidos a espertos, botam banca, descolados, bronzeados, narcisistas e vivem pedindo desconto pelas transas, só gostam deles mesmos. Na zona sul, ainda é possível encontrar uns caras que querem imitar o Vinicius de Moraes e por isso são galanteadores, falam pelos cotovelos, contam vantagens, são ligeiros e dançantes, superficiais, curiosos e, principalmente, mentirosos, gostam de me comer tomando uísque e ouvindo bossa nova.
Já os paulistanos são desbotados, discretos à primeira vista, ansiosos e pragmáticos, agem com disciplina calculada, gostam de shopp gelado nos quiosques à beira mar, tomar café em livrarias e de ler tudo que lhes apetece, inclusive meu olhar, meus gestos, emitem gemidos prolongados na hora do sexo oral, pagam o valor da tabela sem reclamar. Não sei qual a motivação, mas gosto de transar com os mineiros, chegam de mansinho, suaves e com uma timidez calculada, são astutos, desconfiam até do próprio reflexo no espelho. Sinto neles o cheiro das montanhas, têm gosto de minério na boca, a pele cheira a café coado, os pelos fazem cócegas na gente. Falam pouco, mas gostam muito de transar, trepam muito bem! Me tratam como se estivessem com a garota de Ipanema, mas são avarentos, não pagam um centavo a mais pelo serviço prestado. Alargando os adjetivos são conservadores, mesmo os que se acham descolados, e, não raramente, hipócritas, masculinidade frágil.
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Poderia ficar aqui falando da subjetividade geográfica masculina, mas não mudaria em nada a moldura patriarcal e a masculinidade frágil que, invariavelmente, a quase todos configura, (além disso, a autora não aprecia textos muito longos). Por isso sempre penso nessa profissão como temporária, é um investimento que faço, enquanto vou curando meus traumas e desencantos. Para cada corpo de homem que dou prazer, deixo um lastro do meu desprezo, um rastro de bílis misturado à porra gosmenta do gozo. Se eu já me apaixonei, amei? Sim, com muita intensidade, mas daria um novo conto.
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No ciclo outonal da
minha vida, quando minha mãe ficou viúva, (paguei com meu corpo para um homem fazer o serviço na prisão onde estava meu pai) voltei pra casa pra
ajudá-la a cuidar dos meus irmãos, não tem dinheiro que chegue pra pagar as
despesas, meu pai só deixou dívidas, cicatrizes e traumas. O homem foi um predador na
vida da família. Juntei o que restou das minhas economias, coragem, consciência e saudade e me juntei a eles. Agora dividia a responsabilidade de
dar afeto, pão e uma pitada de esperança para os jovens homens que eu sempre
amei.
Hoje não frequento apenas os sites de encontros, faço programas fast-food nas paradas de ônibus da cidade. Me considero menos infeliz que antes, tenho pra quem e onde voltar. Pra aumentar a renda e diversificar meu trabalho, agora também faço programas com mulheres, mas essa novidade certamente daria um conto à parte. Já tenho em vista uma cliente que, me parece, será assídua: todas as manhãs ela passa devagarinho com o seu carro, observando as minhas formas, já trocamos olhares comprometedores. Da próxima vez, vou fazer sinal para parar o carro, oremos.
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Toda manhã, por volta
das 7h, no caminho para a Universidade, os meus olhos têm encontro marcado com
aquela mulher. Faz ponto naquela parada de ônibus durante o ano inteiro:
primavera, verão, outono e inverno, lá está ela. Às 7h15, eu já estou dando aula,
e ela antes disso já estava trabalhando.
É uma mulher com cerca
de 40 anos, estatura média, cabelos longos, pretos, pernas torneadas,
cintura marcada, olhos castanhos, tristes e cansados. Entramos num inverno
chuvoso e lá está ela, vestida com um casaco de lã vermelha, um short de couro
preto, uma meia desfiada na coxa, calçada com uma sandália de salto alto e os
pés encharcados pela chuva, mais uma invisível proletária do asfalto, sob um frágil guarda-chuva estampado por estrelas.
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Arquivo da autora |
Isabel, minha querida! Que conto incrível e doloroso! Que história fascinante que retrata a vida invisível de tantas mulheres na luta pela sobrevivência neste mundo marcado pelo machismo! Gostei de ler e acompanhar as mudanças de estação e a forma com que ela enfrenta a efemeridade do corpo, do gozo, das vaidades do sexo e das fragilidades masculinas! Todos tolos ao pensarem que possuem um mulher!
ResponderExcluirA protagonista, de forma brilhante, não se perde de si mesma e, no olhar da outra, se vê, se encontra. Amei! Parabéns!
Ps.