terça-feira, 24 de junho de 2025

COM QUANTAS ESTAÇÕES SE FAZ UMA MULHER, CONTO DE ISA CORGOSINHO

 C O M   Q U A N T A S   E S T A Ç Õ E S   S E   F A Z   U M A   M U L H E R

POR Isa Corgosinho

Imagem Pinterest
Depois do estupro, fui expulsa de casa após a denúncia que fiz contra meu pai. Morei por algum tempo na casa de uma prima, que veio do norte com minha mãe, ainda solteira. Depois que atingi a maioridade, aluguei um quarto de pensão com uma amiga. Abandonei a escola antes de concluir o 3º ano do Ensino Médio e dela só guardei um livro porque amava o título A hora da estrela. Faria da minha o inverso da vida da protagonista.

PRIMAVERA

Na primavera da minha vida, qualquer noitada regada à cerveja no bar, presentes como bijuterias, roupas, maquiagem, caixas de chocolate eram suficientes para que eu fizesse as vontades dos homens, meu corpo jovem e as mentiras sussurradas no escuro aumentavam a macheza deles. Eu os fazia supor a minha entrega e submissão, enquanto na verdade só estava manipulando a vaidade masculina, toda concentrada no pau e no poder: sim, senhor! Na verdade, pra mim, eram corpos anônimos, sem faces. Páginas viradas do meu folhetim.

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No início, aquele ganho me bastava para o aluguel, a comida, as drogas baratas como o álcool, a maconha e o cigarro. A escola ficou cada vez mais distante, trouxe comigo de casa um book de fotografias, que a minha mãe pagou em cinco vezes, quando cismei que poderia ser modelo. Agora ele serve para atrair meus clientes. Além da escola, deixei minha mãe, meus cinco irmãos pequenos e o alcoólatra carioca desalmado, que me violentou.

Não era difícil encontrar homens que pagassem por um programa com uma jovem de 18 anos, os aplicativos serviam principalmente pra isso. A maioria das mulheres que usa esses aplicativos busca encontrar um par perfeito, mas boa parte delas já sofreu golpes e desenganos. No meu caso, logo no primeiro encontro, apresento minha tabela de preços e as opções de prazer.

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VERÃO

Marco o longo verão da minha vida quando fiz programas com homens de vários estados, afinal moro na cidade maravilhosa, reduto do turismo sexual. Os conterrâneos são metidos a espertos, botam banca, descolados, bronzeados, narcisistas e vivem pedindo desconto pelas transas, só gostam deles mesmos. Na zona sul, ainda é possível encontrar uns caras que querem imitar o Vinicius de Moraes e por isso são galanteadores, falam pelos cotovelos, contam vantagens, são ligeiros e dançantes, superficiais, curiosos e, principalmente, mentirosos, gostam de me comer tomando uísque e ouvindo bossa nova.

Já os paulistanos são desbotados, discretos à primeira vista, ansiosos e pragmáticos, agem com  disciplina calculada, gostam de shopp gelado nos quiosques à beira mar, tomar café em livrarias e de ler tudo que lhes apetece, inclusive meu olhar, meus gestos, emitem gemidos prolongados na hora do sexo oral, pagam o valor da tabela sem reclamar. Não sei qual a motivação, mas gosto de transar com os mineiros, chegam de mansinho, suaves e com uma timidez calculada, são astutos, desconfiam até do próprio reflexo no espelho. Sinto neles o cheiro das montanhas, têm gosto de minério na boca, a pele cheira a café coado, os pelos fazem cócegas na gente. Falam pouco, mas gostam muito de transar, trepam muito bem! Me tratam como se estivessem com a garota de Ipanema, mas são avarentos, não pagam um centavo a mais pelo serviço prestado. Alargando os adjetivos são conservadores, mesmo os que se acham descolados, e, não raramente, hipócritas, masculinidade frágil.

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Os gaúchos merecem um parágrafo à parte. Conheci alguns de diferentes idades, mas todos eles gostam de transar de botas, não olham para meu rosto, gostam de cavalgar sobre o meu corpo, o hálito é impregnado de chimarrão, os suores escorrem e têm cheiro de carne crua. Das conversas rápidas, só me recordo da frase: fique de quatro, guria! Acho que nunca me casaria com um gaúcho, pra mim eles representam o suprassumo da masculinidade frágil.        

Poderia ficar aqui falando da subjetividade geográfica masculina, mas não mudaria em nada a moldura patriarcal e a masculinidade frágil que, invariavelmente, a quase todos configura,  (além disso, a autora não aprecia textos muito longos). Por isso sempre penso nessa profissão como temporária, é um investimento que faço, enquanto vou curando meus traumas e desencantos. Para cada corpo de homem que dou prazer, deixo um lastro do meu desprezo, um rastro de bílis misturado à porra gosmenta do gozo. Se eu já me apaixonei, amei? Sim, com muita intensidade, mas daria um novo conto. 

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OUTONO

No ciclo outonal da minha vida, quando minha mãe ficou viúva, (paguei com meu corpo para um homem fazer o serviço na prisão onde estava meu pai) voltei pra casa pra ajudá-la a cuidar dos meus irmãos, não tem dinheiro que chegue pra pagar as despesas, meu pai só deixou dívidas, cicatrizes e traumas. O homem foi um predador na vida da família. Juntei o que restou das minhas economias, coragem, consciência e saudade e me juntei a eles. Agora dividia a responsabilidade de dar afeto, pão e uma pitada de esperança para os jovens homens que eu sempre amei.

Hoje não frequento apenas os sites de encontros, faço programas fast-food nas paradas de ônibus da cidade. Me considero menos infeliz que antes, tenho pra quem e onde voltar. Pra aumentar a renda e diversificar meu trabalho, agora também faço programas com mulheres, mas essa novidade certamente daria um conto à parte. Já tenho em vista uma cliente que, me parece, será assídua: todas as manhãs ela passa devagarinho com o seu carro, observando as minhas formas, já trocamos olhares comprometedores. Da próxima vez, vou fazer sinal para parar o carro, oremos.   

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INVERNO

Toda manhã, por volta das 7h, no caminho para a Universidade, os meus olhos têm encontro marcado com aquela mulher. Faz ponto naquela parada de ônibus durante o ano inteiro: primavera, verão, outono e inverno, lá está ela. Às 7h15, eu já estou dando aula, e ela antes disso já estava trabalhando.

É uma mulher com cerca de 40 anos, estatura média, cabelos longos, pretos, pernas torneadas, cintura marcada, olhos castanhos, tristes e cansados. Entramos num inverno chuvoso e lá está ela, vestida com um casaco de lã vermelha, um short de couro preto, uma meia desfiada na coxa, calçada com uma sandália de salto alto e os pés encharcados pela chuva, mais uma invisível proletária do asfalto, sob um frágil guarda-chuva estampado por estrelas.

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Arquivo da autora
ISA CORGOSINHO  é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e  Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

Um comentário:

  1. Isabel, minha querida! Que conto incrível e doloroso! Que história fascinante que retrata a vida invisível de tantas mulheres na luta pela sobrevivência neste mundo marcado pelo machismo! Gostei de ler e acompanhar as mudanças de estação e a forma com que ela enfrenta a efemeridade do corpo, do gozo, das vaidades do sexo e das fragilidades masculinas! Todos tolos ao pensarem que possuem um mulher!
    A protagonista, de forma brilhante, não se perde de si mesma e, no olhar da outra, se vê, se encontra. Amei! Parabéns!

    Ps.

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