FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|01
LITERATURA
E RESISTÊNCIA NO COLETIVO MULHERIO DAS LETRAS
POR ISA CORGOSINHO
O
mundo que se apresenta aos nossos olhos nos dá a impressão que deixamos de ser
contemporâneos de nós mesmos. As fronteiras se revelam indefinidas, a partir de
mudanças estruturais advindas da globalização, principalmente da economia, e do
desenvolvimento da tecnociência, marcos onde muitos teóricos localizam a
modernidade tardia ou a fase pós-moderna. Desde o final do século passado, lembra-nos
Stuart Hall,
abriu-se um intenso debate sobre a crise de identidade do sujeito, mobilizando
diferentes áreas do conhecimento na compreensão dos deslocamentos das
identidades culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e
nacionalidade.
Os
cenários políticos no mundo transformaram-se substancialmente com os novos
movimentos sociais. No Brasil, desde a década de 60, mas principalmente a
partir da década 80, o final da ditadura, as eleições diretas, a Constituição
de 1988 e as lutas dos trabalhadores e estudantes fortaleceram os movimentos já
existentes e abriram caminhos para outros: movimentos feministas, movimentos negros,
movimentos ecológicos, movimento LGBTQIA+, CUT, MST, MTST, CONLUTAS, movimentos
dos povos originários, movimentos estudantis etc.
É
nessa ampla mobilização que os conceitos de mulher e feminismo desdobram-se na
descentralização de identidades, abraçando o pluralismo defendido nas ações
militantes, nos debates, pesquisas e políticas sobre a questão de gênero. O movimento LGBTQIA+ avança sobre as
demarcações biológicas, assumindo uma historicidade móvel, avessa à identidade
unificada do nascimento à morte. A arte
acompanha essa movimentação de ideias como campo fértil para várias expressões
artísticas sobre identidade e gênero.
O
terror causado pela pandemia ainda assombra o planeta desde o início em 2020. As
mulheres confrontam a morte (que toma conta da terra com a voracidade de
milhões de foices insaciáveis, abrindo crateras profundas nos corações dos
brasileiros com a cifra genocida de mais de 590.508 pessoas mortas em menos de
dois anos de pandemia), vítimas ao mesmo tempo da COVID 19 e de um projeto
fascista que estimula o feminicídio e desgoverna o país desde as eleições de
2018.
É
fruto do cruzamento desses desafiantes contextos históricos parte significativa
da criação literária feminina que circula hoje, seja em prosa ou poesia. Assim
como o mito de Perseu, as mulheres voam com suas sandálias aladas sobre um
mundo que se petrificou e que parece não poupar nenhum aspecto da vida. Para
cortar a cabeça da Medusa sem se deixar petrificar, Perseu se sustenta sobre o
que há de mais leve, como as nuvens e o vento; e dirige o olhar para aquilo que
só se pode revelar por uma visão indireta, por uma imagem capturada no espelho
de seu escudo de bronze, só assim ele consegue decepar a cabeça da Górgona. As
mulheres escritoras parecem, à semelhança de Italo Calvino,
encontrar nesse mito a alegoria da relação do poeta com o mundo, uma lição e
forma de resistência para continuar escrevendo. Perseu consegue dominar a
pavorosa figura mantendo-a oculta, da mesma forma que a vencera, contemplando-a
no espelho, mas não na recusa da realidade do mundo de monstros entre os quais
estava destinado a viver uma realidade que ele traz consigo e assume como um encargo
pessoal.
A
luta contra as ações petrificantes da Medusa parte de um propósito da
verdadeira comunicação poética que, segundo o filósofo matemático Charles
Sanders Peirce, é fazer linguagem para generalizar e regenerar sentimentos. Em
fina sintonia com o pai da semiótica, Calvino afirma que entre as várias
possibilidades de a literatura agir na História, talvez a única a não ser
ilusória é compreender para que tipo de homem, a história, com seu labor
múltiplo, contraditório está preparando o campo de batalha, e ditar-lhe a
sensibilidade, o impulso moral, o peso da palavra, a maneira como ele, homem,
deverá olhar à sua volta no mundo, aquelas coisas que somente a poesia – e não a filosofia ou a política pode
ensinar.
Às
funções cognitiva e ética da literatura, junta-se aquela do processo criativo, em
que o poeta deve entender o poema como um ser de linguagem. Ao fazer poema, o
poeta está fazendo linguagem. Refratar o mundo na poesia é criar e recriar
outro mundo. A posição de radicalidade do poeta (radix, radicis= raiz) é porque
ele trabalha as raízes da linguagem. O resultado desse trabalho é que o mundo
da linguagem e a linguagem do mundo ganham troncos, ramos, flores e frutos, é com essa bela imagem que
Décio Pignatari
nos apresenta o ser vivo da linguagem, ao discorrer sobre o que é comunicação
poética. É necessário enfatizar que um bom poema nunca termina de dizer aquilo
que tinha para dizer, vai ao longo do tempo criando modelos de sensibilidades.
O que vale também para todos os gêneros da literatura, é claro.
Os
parágrafos acima situam, ainda que de forma incipiente e sem o aprofundamento
que o tema merece, uma reflexão inicial sobre o processo criativo observado no Grupo
Virtual Mulherio das Letras Nacional (Facebook). Os temas
mais ligados ao fazer poético desse grupo compõem uma teia com engenhosas tramas
semânticas, bordadas por metáforas, metonímias, hipérboles, elipses,
catacreses, sinestesias, antíteses, ironias, paradoxos, eufemismos, neologismos
e tantas outras figuras pulsantes, que se irmanam na escrevivência, na esteira
solidária de Conceição Evaristo. As poetas, escritoras criam um repertório
substancial para expressão de suas imagens.
Constroem novas formas que interajam com o conteúdo e retomam outras clássicas e
populares.
Na poesia
feminina, os espaços público e privado não são dicotomizados, promovem uma
dialogização humanizada; os temas agregam o passado e o presente numa movente travessia
do devir a ser. No exercício da
escrita literária, as mulheres almejam muito mais que uma identidade, perseguem
algo maior – alteridades. Confrontam o infinito particular com um mundo
dominado pelos discursos do poder fálico e racional do patriarcado.
O empoderamento vem da militância sistemática, mas também de um lugar de fala
que envolve competência, compromisso, inteligência, sabedoria, aliados ao
intenso e verdadeiro desejo de revolucionar o mundo. Acreditam no que fazem, e
fazem arte como forma de expressão, revolução e criação de horizontes.
O poema a
seguir refrata e confronta o contexto petrificante do Brasil sob o julgo de
dois vírus letais (COVID 19 e o fascismo), na luta pela regeneração dos
sentimentos, pela denúncia, necessidade de forjar novas sensibilidades e o
imprescindível impulso moral para revolucionar a rota tortuosa do nosso povo e
país.
Para ouvir o podcast do poema, clique AQUI.
Ai de ti, PANDÊMIA
(Isa Corgosinho)
Os habitantes de Pandêmia são céticos
materialistas
leem Freud Nietzsche Marx
mas legaram de Stalin
os obscuros desejos da burguesia
fazem orgia com os neoliberais
despertam grávidos de suas crias
Dos templos da inofensiva cidade
evangélicos
bélicos
e tais
destroem altares
incendeiam quintais
Ruminando fake news
vestida com a bandeira
a classe média, geleia geral brasileira:
Jesus, salve a propriedade
privada de nossos pais!
Comemoram, incitam o extermínio
quilombolas povos originários mulheres negros florestas rios animais
a terra cultivada
sangue suor ancestrais
Assustam-se a cada virada de século
com a chegada do Fim do mundo
desprezam a vida do planeta
são escudos do seu medo ignorância covardia
os senhores
da guerra
do boi
a Vossa excrescência e sua quadrilha!
Os excluídos de Pandêmia
vagam na Nau dos Loucos
vivem na terceira margem
no isolamento profundo
miram na clara noite
as crateras da lua
esconderijo dos morcegos
que avançam sobre a pólis
em desordenada rebeldia
Ai de ti, Pandêmia, não verás a luz do dia!