A
FORÇA DA MULHER INDÍGENA ROMPE ESTEREÓTIPOS A PARTIR DA LITERATURA BRASILEIRA
CONTEMPORÂNEA
A presença feminina na literatura indígena
brasileira contemporânea vem sendo motor de transformações importantes tanto no
imaginário social quanto no contexto das representações dos indígenas na
atualidade. Essa força feminina vem sendo constituída, gradualmente, a partir do
final do século XX, através de obras literárias produzidas por autoras
indígenas, cujo trânsito entre cidade e aldeia, oralidade e educação formal,
línguas ancestrais e idioma oficial é vivenciado diretamente por elas e pelo
conjunto dos povos originários, entre eles, os Tabajara, que reivindicam seu
direito à identidade e à ancestralidade.
Como forma de contribuir com o combate ao
preconceito e à discriminação contra a mulher indígena nordestina, desponta no
Ceará, a literatura de cordel indígena brasileira com a guerreira Auritha
Tabajara, falante da língua Tupi, cujo nome tem o significado de “Pedra de luz”.
Ela nos conta que foi registrada de acordo com a tradição religiosa, com o nome
de Francisca Aurilene, nome de Santa. A primeira cordelista indígena brasileira
aprendeu a ler e a escrever na rima: ouvindo, nas tardes de domingo, seus tios
e padrinho declamarem versos do poeta Patativa do Assaré. A poética popular
ficou gravada na memória da narradora, além da forte influência de sua avó
Francisca Gomes de Matos, que contava histórias em forma de cordel.
A literatura de cordel brasileira tem seus temas focados em histórias encantadas de reis e de rainhas, dramas românticos, reinos distantes e irreais, e também da epopeia do cangaço. Em contrapartida, surge a literatura de cordel indígena, trazendo à tona a realidade da mulher indígena e nordestina: uma princesa destemida, heroína, “filha da mãe natureza”, que superou inúmeros obstáculos e preconceitos e hoje se destaca na literatura de autoria indígena contemporânea do Brasil. Ela traz a voz da mulher indígena, desconstruindo assim, visões estereotipadas dessas mulheres, que foram construídas pela prevalência do olhar europeu e disseminadas de variadas formas, inclusive pela literatura canônica brasileira.
Em seu livro “Coração na aldeia; pés no mundo” (2018), a autora nos apresenta a
escrita de si e resgata elementos de sua memória afetiva. Assim, a protagonista,
como mulher indígena, situa leitores e leitoras, promovendo uma ruptura, a
partir da adaptação das personagens do cordel da literatura tradicional.
A autora se apresenta como indígena, rompendo com o estereótipo de que no Nordeste não pode haver uma princesa encantada. Ressalta os valores indígenas e vai tecendo sua narrativa poética na sequência dos acontecimentos, desde a infância:
Peço
aqui, Mãe Natureza,
Que
me dê inspiração
Pra
versar essa história
Com
tamanha emoção
Da
princesa do Nordeste
Nascida
lá no sertão.
Quando
se fala em princesa
É
de reino encantado,
Nunca,
jamais, do Nordeste
Ou
do Ceará, o estado,
Mas
mudar de opinião
Será
bom aprendizado.
(TABAJARA. p. 6)
A alteração do foco narrativo torna as
cenas mais poéticas “[...] Nasceu uma
indiazinha, chorando bem alto e forte”. Ela relata costumes do povo
Tabajara, como a contação de histórias e vai se autoafirmando, ao se identificar
positivamente como indígena Tabajara, em construção poética bastante criativa e
atraente. O texto tem fluência e ritmo
incomparáveis e não deixa escapar a cultura, os valores, as crenças, os
costumes do povo Tabajara e um pouco da memória afetiva da autora.
Ela nos conta que, desde pequena, não gostava de meninos: “Não gostava de meninos, E não sabia lidar.” O preconceito e os olhares de reprovação representam um alto desafio para a princesa do Nordeste que rompe com estereótipos e assume a sua identidade de gênero, conforme suas preferências afetivas. É a voz da mulher na poesia que abre passagem para as diferentes subjetividades na cena do debate contemporâneo. É essa voz feminina indígena que reafirma poeticamente que toda forma de amar deve ser respeitada e valorizada na sociedade.
Assim, essa poética feminina diversa,
plural e acolhedora de subjetividades díspares leva o leitor a compreender o
potencial de tensão dos enfrentamentos e dos desafios da mulher indígena
nordestina, na sociedade brasileira, na contemporaneidade:
Agora
eu tenho em mente
Um
desafio a enfrentar
Refazer
minha história
Sem
desistir de lutar
Tantas
noites eu chorei
Quanta
tristeza passei ...
Não
dá nem pra imaginar
(TABAJARA, p. 32)
Ela aborda incoerências da sociedade de
classes de base capitalista e dos padrões impostos pelos donos do poder, em um
cenário onde sempre prevalece quem tem mais dinheiro.
A guerreira tabajara expressa também,
por meio de seus versos, o desejo de lutar contra o preconceito no Brasil. Ela
reconhece o poder de luta e de transformação que a arte de poetar lhe confere.
Trata-se de uma guerreira, cujo baluarte são as letras, com elas compõe seus versos.
Uma heroína que empunha a palavra poética como o seu aparato de luta para auferir
conquistas:
Esta
é minha história,
Tenho
muito pra contar.
Feliz
eu serei um dia
Se
o preconceito acabar.
Letras
são meu baluarte,
Relevo
com minha arte
Um
Brasil a conquistar.
(TABAJARA, p. 40)
A autora segue revisitando a
adolescência, seu bom relacionamento e aprendizado com a avó, que a criou e relata
sobre o preconceito e o bullying sofridos na escola, onde, com apenas sete anos
de idade, aprendeu a ler. A moça revela que, aos treze anos, saiu da aldeia e
foi conhecer a experiência de viver a cidade, sua família ficou muito
preocupada. Ela viu a onça pintada, ao atravessar a mata, mas saiu-se ilesa da
situação, pois Tupã a preservou.
Moça esperta e de beleza exuberante, a
narradora começou a ser percebida e assediada pelos rapazes da cidade. Então decidiu
partir para a capital. Fortaleza a recebeu e ela encontrou trabalho na casa de
um deputado. Entretanto, mais uma vez, percebeu que seria explorada. Logo decidiu
retornar para a aldeia e esquecer o passado sofrido longe de sua casa. Auritha então
se casou e teve quatro filhos, mas perdeu dois: ficaram duas meninas. Depois
disso, separou-se do marido.
Estudou magistério indígena e compôs o livro “Magistério Indígena em verso e poesia” (2007) com a experiência adquirida no curso. Auritha relatou, em versos, as histórias de seu povo na aldeia, em seu livro, que ganhou contornos didáticos, tornando-se leitura obrigatória em escolas geridas pela Secretaria do Estado do Ceará. Depois disso, nossa guerreira viajou para São Paulo e lá enfrentou a escassez e ficou sem dinheiro. Então, o ex-marido tomou-lhe a guarda das filhas. Ela chorava muito de saudade:
Vivo na cidade grande
Mas não esqueço o que
sei
Difícil é viver aqui
Por tudo que já passei
Coração bom permanece
A essência fortalece
Ante o pranto que chorei.
(TABAJARA,
p.36)
Ao final da trama narrativa, a autora agradece ao Deus Tupã e ao povo Tabajara.
Agradeço a Tupã
Por me guardar e
inspirar.
Ao meu povo Tabajara,
Pela vida me ensinar.
Se você é como eu,
Sofre ou antes sofreu,
Não desista de lutar.
(TABAJARA, p.40)
Os espaços são referenciais e contribuem
para a composição da magia presente na narrativa. Essa magia é balizada pela
ancestralidade e reforçada pela presença da avó como mestra inspiradora, contadora
de histórias e educadora. Essa forte influência na constituição do projeto de
escrita da cordelista Tabajara dá relevo à questão da oralidade que é constitutiva
da poética dessa autora e manifestada pelos versos de cordel.
A literatura indígena brasileira de
cordel carrega esse tom de poesia social e denuncia o preconceito e as
violências contra as mulheres. A escrita dessa guerreira do povo Tabajara marca
a presença e a força da mulher indígena brasileira na literatura, ocupando
espaços e rompendo com o silenciamento secular das vozes femininas indígenas imposto
a partir da dominação europeia.
Sua voz feminina resgata as vozes
ancestrais que foram caladas por força dos estupros e dos assassinatos ocorridos
a partir das violentas invasões aos territórios ancestrais indígenas, como
efeito nefasto da colonização e da neocolonização em terras brasileiras. Seus
textos dão visibilidade aos povos indígenas, sobretudo ao povo Tabajara em suas
manifestações mais genuínas, pois é uma mulher indígena Tabajara que enuncia
poeticamente a partir de suas memórias e de sua subjetividade.
A literatura abre espaço para essa
autoexpressão que empodera a mulher indígena e faz com que sua voz ecoe e seja ouvida,
de forma a romper com o silenciamento secular de vozes exiladas, no contexto da
sociedade brasileira. Esse fato aponta para grandes transformações, possíveis a
partir do reconhecimento do valor das epistemologias ancestrais desses povos, na
simbiose com a natureza e no respeito à sacralidade da Terra.
Desse modo, anuncia-se a possibilidade da construção
de novas visões e de novas formas de estar no mundo, considerando-se o
desenvolvimento de posturas mais sustentáveis por parte das pessoas. Trata-se de
engendrar, a partir da literatura, uma consciência holística que possa
contribuir para a melhoria da qualidade de vida das populações, de forma geral,
a partir de uma relação menos predatória e, portanto, mais equilibrada com a
nossa Mãe Terra.
Bravíssimo, querida! Um artigo maravilhoso. Obrigada.
ResponderExcluirParabéns pelo seu trabalho incrível de divulgar e valorizar as escritas femininas! Gratidão pela oportunidade de partilhar um pouco das nossas pesquisas sobre as inteletuais indígenas! Sigamos juntas!
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