TERRA ÚMIDA, DE MYRIAM SCOTTI
Por Rita Alencar Clark
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O romance de Myriam Scotti, “Terra
úmida”, ganhador do Prêmio Literário Cidade de Manaus 2020, na Categoria
Regional, tem como tema central a diáspora Judaico-Marroquina no começo do
século 20, quando muitos imigrantes vindos do Oriente atracavam no Porto de
Manaus, o “Manaus Harbour”. Vinham em busca de refúgio mediante as ameaças de
guerra iminente ou perseguições religiosas, em busca de trabalho e prosperidade,
mas, principalmente, de liberdade. Sonhos que só no chamado “Eldorado
Amazônico” poderiam ser realizados, uma vez que outros parentes já haviam se
aventurado e prosperado, o que servia de incentivo a muitos imigrantes, de
todas as partes do Oriente e da Europa. Uma longa viagem, sem volta, para
muitos deles, que foram seduzidos pela corrida em busca do “ouro negro”. O látex,
a borracha, que jorrava em abundância nos seringais da Amazônia longínqua.
A personagem principal dessa narrativa é Syme,
matriarca da família, detentora da missão de unir a família em torno dos
rituais da religião e da tradição Judaica, enquanto se esforça para
compreender, assim como o novo idioma, os mistérios da nova terra prometida,
uma terra úmida, capaz de inebriar os desavisados com seu torpor vespertino ou
tragá-los para as profundezas de suas águas escuras e
insondáveis.
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Abner, o filho mais velho, conduz a primeira parte da
narrativa, quando, ao voltar de uma longa viagem pelos rios da Amazônia,
reencontra a mãe debilitada em luta com os últimos momentos de vida. Uma vida
que ela não escolheu e que só descobriremos os motivos depois de sua partida,
através dos Diários deixados na última gaveta da penteadeira…como derradeira
oportunidade de mostrar-se como verdadeiramente foi. Sem, contudo, permitir a
chance de ser contestada ou condenada pelas escolhas que fez em vida. A descoberta
desses diários, na segunda parte da narrativa, e a leitura deles pelos filhos,
já criados e adultos, desnudam uma mulher desconhecida, aquela que chamaram de
mãe, ou Ima, suas aventuras e tragédias pessoais, a imensa solidão, a
luta diária com os sonhos irrealizados, que saqueiam sua alma levando embora,
para sempre, o brilho, poucas vezes vislumbrado naqueles olhos, deixando no
lugar um amargor insondável, que a acompanhou até o fim. Syme, derrama-se
através da escrita, revela-se a si mesma, fazendo-lhe companhia durante as
viagens intermináveis do marido e filhos, a escrita dos diários preenche seus
dias e noites de espera infinita. Os grandes rivais da vida de Syme: os rios,
as longas estradas fluviais, a imensa desolação e saudade do Marrocos, daquela
que um dia foi.
O romance nos traz, ainda, uma experiência
sensorial/gustativa, uma vez que a narrativa sobre os aromas dos mercados
marroquinos se apresenta com suas cores e especiarias, as comidas para os
rituais Judaicos e os costumes ancestrais. As festas, as iguarias, as roupas,
as tradições, que sobrevivem, plenamente, até os dias atuais. Um legado deixado
aos descendentes, mas que todo o povo Amazônico usufruiu, uma “mistura”
respeitosa de povos e tradições só possível numa época de grandes navegações e
abertura dos Portos.
Abner encerra a narrativa com a terceira parte do
romance trazendo um “plot twist” inesperado e magistral, levando o leitor a
repensar sua própria aventura, o seu próprio tempo de existência nesta
terra.
“(…). É como tenho levado os anos da minha vida,
sempre querendo regressar, que nem uma criança à espera de um dia retornar ao
útero da mãe. Aprendi quando aqui cheguei que isso se chama saudade, a memória
do que não queremos esquecer.” (MYRIAM SCOTTI, 2021:16)
Manaus, 08 de março de 2024.
Rita Alencar Clark
Poeta, contista, cronista e ensaísta Amazonense. Colunista do Blog Feminário Conexões.
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Arquivo da autora |
MYRIAM SCOTTI nasceu em Manaus, é formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; é mestre em literatura e crítica literária também pela PUC-SP; com curso de extensão em práticas de leitura e formação do leitor, pela PUC-SP. A partir de 2014, baseada nas experiências com seu primogênito Daniel, estreou como escritora de histórias infantis: O menino que só sabia dizer não (publicação independente); O menino que só queria comer tomate e Quando meu irmão foi embora? (editora Chiado); além do e-book “O menino que não queria dormir sozinho”. Em 2018, estreou na poesia com o título A língua que enlaça também fere (Editora Patuá). Em 2020, lançou um segundo livro de poesia sob o título Mulheres chovem (Editora Penalux), ano em que também venceu o prêmio literário da cidade de Manaus com o romance regional Terra Úmida, publicado em 2021 pela Editora Penalux. Em 2021 lançou o primeiro romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf), o qual foi admitido pelo PNLD 2021 e foi escolhido como paradidático de várias escolas do Brasil, além de ter sido selecionado no edital “Minha biblioteca” de São Paulo 2022, onde constam mais de onze mil exemplares espalhados pelas bibliotecas da capital. Em 2024, lançou o livro de crônicas Tudo um pouco mal (Editora Patuá) durante a Festa Literária de Paraty (FLIP), o título é semifinalista do prêmio nacional Sabiá de crônicas. Também em 2024 foi convidada para os Festivais Literários de Araxá e Paracatu, ambas comandadas pelo produtor cultural Afonso Borges, onde explanou sobre literatura produzida por mulheres no Amazonas. Há três anos é curadora do Festival Literário do centro de Manaus (FLIC), promovido pelo produtor cultural João Fernandes, CEO do Centro Cultural Casarão de Ideias.
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