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terça-feira, 22 de março de 2022

A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES, POR ISA CORGOSINHO






FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|04


A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES

 

Isa Corgosinho

 

O livro que desenha os cursos das amazonidades nos indica, logo no título, uma das possíveis chaves interpretativas: seguir as gestas das águas. Seguindo os fluxos dos braços dos rios que deslizam sob a linguagem poética, adentramos um mundo que em nada refrata o modelo como a ciência moderna percebia o homem e seu ecossistema. O relógio, metáfora da forma mecânica de descrição deste mundo, é incapaz de marcar a complexidade da união sistêmica dos afluentes gestados nos capítulos, unidades unas e potentes, que formam um todo. O eu lírico, que se desdobra nas experiências vivenciadas no e pelos rios, não é um mero observador do curso e concurso das águas. Se vê refratado e refrata para o leitor as relações intricadas da objetividade dos rios e a subjetividade do poeta: os elementos constituintes da realidade desse ecossistema vivem nas alteridades complexas do sistema.

Edgar Morin (2006), ao discorrer sobre o paradigma cartesiano, faz uso do termo "simplificador". Assim, a simplicidade põe ordem no universo, expulsa dele a desordem e a ordem se reduz a uma lei, a um princípio. Segundo o filósofo, este paradigma simplificador vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução). Em resposta a esse paradigma, Morin apresenta o Paradigma da Complexidade, cujo postulado está na relação entre a parte e o todo: não é apenas a parte que está no todo, mas o todo que está igualmente na parte.

O conhecimento adquirido com as vivências nos rios, que no livro de Cortezão é o todo, volta-se sobre a parte população ribeirinha, formando um ecossistema múltiplo da floresta e região. As amazonidades nos convidam a uma visão das dimensões holísticas da região pelos rios Negro e Solimões que atravessam as vidas dos ribeirinhos do norte do país.  Os perfis humanos, herdeiros dos povos originários, são seres-em-relação e o EU lírico se define sempre diante de um Tu, esse TU significativo e caudaloso, que é o rio.   

Para girar a chave e abrir a compreensão que nos permite uma melhor interpretação do livro de Cortezão, a afirmação de Luhmann (1987) nos é muito bem-vinda. Para ele, o desenvolvimento do pensamento sistêmico percorreu três distintas fases históricas: na primeira, os sistemas eram arquitetados como totalidades fechadas; na segunda,  aconteceu uma mudança radical em comparação à primeira, e os estudiosos passaram a conceber os sistemas como abertos, em outras palavras como sistemas que realizam trocas com o seu meio; e terceira, também chamada a fase dos sistemas autorreferenciados ou autopoiéticos, é defendida principalmente por Maturana e Varella (1995).       

A fase sistêmica que pulsa nas trovas das Amazonidades forma sistemas autopoiéticos, que se definem como configurações vivas que se constituem e mantêm a si mesmas. Seus componentes interagem num processo circular, produzindo mais componentes necessários para a autopreservação e constituindo-se em uma unidade delimitada que necessariamente é um ser vivo. Esse sistema nos parece apropriado para compreender a arquitetônica dos cinco rios que gestam em suas águas a pluralidade regional, cultural de sua gente.

O Rio I – DOS ACESUMES são trovas que entoam o vasto campo semântico da dupla chama amor e erotismo, sob a cumplicidade do rio, na ribeira do Negro o lamento do amigo que partiu caboclas águas: é o rio da presença e da ausência, nos incertos destinos heracletianos do rio como um devir a ser do homem.  A água e o fogo são as matérias compostas das temperaturas que sobem do rio e penetram o corpo desejante, exaltam a dupla chama: o rio é fálico, é o amante que penetra suas águas no cio sob a saia:

Quando caniçava as águas,

e me remava de rios,

sacava-me o vento a saia

na fértil relva de cios.           

 

Mas a amante deseja a chama do amor perene, e propõe acordo com o amado, encarnado no rio. Oferece os bens necessários terra, fogo, alimento e um interminável sentimento:

Dou uma roça de meia

três latas de querosene

e o que tiver no paneiro

por um rio de amor perene.

 

O Rio II – DAS COMILANÇAS. Aracu, Jaraqui, Pequiá e uma série de alimentos que provêm direta ou indiretamente dos rios: os peixes; a mandioca que produz a farinha; as frutas do café, do açaí, do maracujá são alguns dos ricos e variados alimentos que fazem a festança da cunhatã. A mãe natureza provedora e seu filho rio com sua fauna e flora abastecem, nutrem os povos originários, as famílias ribeirinhas. Os rios são amantes e são também provedores. O modelo sistêmico autopoiético aqui também comparece evidenciando uma de suas características que é produzir por si mesmos o que necessitam para a sua organização, acolhem tudo que é necessário para sua subsistência e autorreprodução.  

 

O Rio III – DAS LESEIRAS. O afluente das leseiras é rico nas caracterizações do rio e do clima quente e úmido, que invocam os fluidos, temperamentos, as malícias, as espertezas dos caboclos. A leseira não é apenas um modo macunaímico de ser, está presente na língua afiada dos abelhudos, pissiqueiros, tagarelas. Tudo cabe na sintaxe metafórica dos ditos populares: o humor afiado estampa a ambivalência do riso, presente nas relações brejeiras dos ribeirinhos.

 

Vai a canoa à deriva

florindo-se em doce brisa

devaneios na peneira...

Eita, mormaço leseira!

  

Amizade de invejoso

e ferrada de mutuca!

Eu num quero é nem com nojo:

Sorve a alma e o sangue suga!

 

Considero o Rio III um dos mais instigantes. No meio das leseiras, uma trova entrava o riso: é o curumim que sobe a ladeira com o bucho pinhado de lombriga. O descaso com a saúde dos povos originários e seus descendentes mostra que o projeto de extinção desses povos segue seu curso, jamais interrompido. A morte lenta, gradual por doenças, fome, matanças.  

Outro aspecto que o torna marcante, talvez nuclear entre os rios, é a deliciosa, sensual e brincante reflexão autoconsciente que Cortezão faz sobre o ritmo da trova, como o mais adequado para musicalizar as amazonidades, gestantes das águas. Reafirma uma poesia que ultrapassa a cor local e se coloca em plena segurança sobre o jogo de enunciações que rementem à comunicação metapoética.

Caniçar verso é custoso:

se o verbo-isca do arrebol

não flertar vivo, viçoso,

os versos fogem do anzol.

 

Pesquei um  verso porrudo,

desses de esticar caniço,

separei-o em pés miúdos

só pra fornicar com isso! 

 

Fornicando com o verso,

descobri pelo cansaço

da vulva, que o ritmo ereto

não desabrocha cabaço.

 

Rio IV – DAS CABOQUICES. Em ritmo que beira o melancólico, as trovas insinuam a dança da despedida, a saudade antecipada das relações profundas como o chão inalcançável dos rios. O lugar do eu lírico é o entre: não partiu ainda, mas já não está mais aqui, onde sua identidade compunha as alteridades complementares. A cabocla vai partir e pressente a falta do todo sistêmico do qual era parte viva e pulsante. A poesia é o lugar do resgate, da memória e das reminiscências do vivido, por isso a trova se faz mais vigorosa, estende sua quadra e forma o novo chão a caminhar.

 

Das barrancas do meu Norte,

trago todas as bonanças.

Quando o peito aperta forte,

abro o pote das lembranças.        

 

Tomar o melhor atalho

é poupar braços e forças

para as difíceis remadas.

De mãos dadas, quilha e proa.

 

Construí canoa alada

que não tem quilha nem popa.

Mas para que águas passadas,

se o destino vai à proa?   

 

Ela costurou palavras,

remendos e poesia;

caiu na rede dos sonhos,

no embalo da nostalgia.

 

As caboquices estão misturadas nas lembranças, formando um sentimento ambivalente onde as alegrias da vida, gestadas nas águas, são assaltadas pelo sentimento de perda, distanciamento, despertencimento. O ritmo das trovas faz a cabocla chorar, sentimento de exílio. As águas doces dos rios estão temperadas com o sal da saudade. Os temas mais ligados a “Peneirar horas escuras” impedem que As amazonidades tropecem na visão ufanista, radiosa da cor local, alheia às adversidades, às sombras, às dores que também movem os cursos dos rios.      

 

RIO V – DOS ENCANTADOS. Para expulsar a melancolia, tomemos o curso do Rio V, parte constituinte da cultura da região norte, os ricos e dialógicos personagens lendários não poderiam ficar de fora das gestas das amazonidades. Dialógicos porque se encontram com os mitos e figuras lendárias de outras culturas, inclusive, a clássica. Os mitos e lendas perpassam todas as culturas humanas, por isso são universais, são lendas, histórias fundantes da origem dos tempos, da vida cíclica da natureza e dos homens, da qual fazem parte. As trovas que encerram as gestas dos rios ratificam a relação sistêmica dos encantados com a natureza. Representam os elementos fundamentais e estão em relação simbiótica com o fogo, o ar, a terra e a água.               

                   

Iara, se ouvisse Orfeu

doce e ledo canto teu,

a lira te brindaria;

de ti vassalo seria.

 

 

Oh, Pandora Macuxi,

por que abriste tal cumbuca?

Agora o meu quiriri

carrega o peso do mundo.

 

As relações entre mitos e personagens lendários da região norte não são absolutamente castas, são versos revestidos de carnalidade sensual, erótica. Há uma declarada antropofagia das figuras do folclore brasileiro em carnavalizada devoração dos mitos clássicos e modernos.

 

Olhos de fogo rasgando

carnosa pele do verso;

boitatá me devorando

entranhas e estro (po)ético.

 

Japu, gatuno do fogo!

Ave, Prometeu Tapuio

fez-se pássaro e seu logro

grande façanha do mundo!     

 

Um sexo seco e mirrado

devorou Macunaíma,

fruto mulher excitado

cuspiu o herói rindo, rindo...

 

Fechando a gestas das águas, resta-nos afirmar aqui um último princípio do pensamento complexo de Morin: a poesia opera a reintrodução do sujeito cognoscente. Ao poetizar o seu chão de águas da infância, da adolescência e da vida adulta, a poeta é resgatada no processo de conhecimento como autora de sua história e, consequentemente, como coautora de construções coletivas junto aos ribeirinhos de sua terra. Reafirma-se: o sujeito e o meio onde ele está inserido tornam-se codependentes, ressaltando que este meio não é entendido como algo predeterminado, mas sempre uma construção em dialógica interação com o sujeito. O caminhar sobre As amazonidades só acontece quando existe a interação entre os passos deslizantes da poeta e as gestas das águas. Privilegiados somos nós, seus leitores, que bebemos nos igarapés, nos braços e fontes dos rios que não cessam de nos maravilhar, ensinar sobre o potencial criativo de suas águas.

 

 

Bibliografia

GRZYBOWSKI, Carlos Tadeu. Por uma teoria integradora para a compreensão da realidade. In.: Revista Psicologia em Estudo. Maringá, v. 15, n. 2, p. 373-379, abr./jun. 2010.

LUHMANN, N. Soziale systeme, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1987.

MATURANA, H. & Varela, F. A árvore do conhecimento. Campinas: Editorial Psy, 1995.

MORIN, E. Epistemologia da complexidade. In.: D. E. Schnitman (Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artmed, 1996.

MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Trad. E. Lisboa. Porto Alegre: Meridional/Sulina, 2006.

MORIN, E. Complexidade e a ética da solidariedade. Trad. E. Lisboa. In.:  Ensaios de Complexidade.  Porto Alegre: Meridional Sulina, 2006

 


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