ACORDEM JÁ ESSAS MULHERES!
Vou andando com o teu livro
entre as construções do poema
e eis que as ruas de repente
Transbordam de humanidade
sob o coral das abelhas
E o mel que a tarde destila.
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Arquivo da autora
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Apesar da intensa atividade de Rita Alencar Clark na
escrita, especialmente nas produções coletivas do Mulherio das Letras Nacional,
as quais veio acompanhando desde o início do movimento (2017) e, mais
recentemente, as do Coletivo Enluradas, é somente em 2024 que a poeta
amazonense nos concede a graça poética da publicação de seu primeiro livro solo
de poesias, In(-)versos do meu verso, cujo percurso já nos revela um misterioso
enredo: o antigo manuscrito – depois de ser entregue ao seu pai, o poeta
Alencar e Silva (1930-2011) – permaneceu desaparecido por vários anos entre o
labirinto dos velhos objetos guardados como se soubesse o momento oportuno de surgir
na cena literária da escrita brasileira contemporânea de autoria feminina do
século XXI.
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Evento UFAM-05/MAIO/2025 Arquivo da autora |
In(-)versos do meu verso estreia
no mundo físico inflamado de imagens que excitam a fantasia poética da
linguagem, características tão necessárias à poesia. A versatilidade da escrita
poética de Rita, ao expandir os limites do signo linguístico, mantém os olhos
leitores em estado de vigília diante da luz de um novo alaranjado crepuscular
que erradia de seus versos para tingir a realidade, já tantas vezes vista, com o
inesperado de suas engenhosas metáforas temperadas de discreto delírio,
enquanto uma prosopopeia abre o caminho do poema: “Flanco de paz adormecida / Pousa
no torpor da tarde alaranjada [...] Nos olhos de teu passado / Amarelo,
laranja, amarelado / Buscando a tua paz… alaranjada” (“Paz alaranjada”, p.20).
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Lançamento (Manaus-23/SET/2024) |
A “poesia é sonho” que mantém a consciência humana
desperta e a bordo de uma epopeia de sentimentos cujo nauta é o próprio
coração que parte em busca de si mesmo, enfrentando as violentas tempestades do
mundo. A voz lírica e sonhadora, cochichada numa canção ribeirinha naquele
longínquo tempo das palavras, funde fragmentos da memória vivida à fantasia
poética de In(-)versos do meu verso sob a aquiescência dos furiosos olhos
da Medusa – a mortal górgona e suas serpentes – que não dormem, pois conhecem “as
faces da esfinge” e a dor ancestral de ser mulher no mundo. E convocam, em
enérgica poética, o canto das sereias, o canto da liberdade a ser entoado:
“Acordem o silêncio dos palácios / Toquem os sinos e as trombetas [...] Acordem
já essas mulheres! / Digam que há milhares de sonhos / Lá embaixo esperando por
elas!” (“Acordem o silêncio”, p.29).
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Imagem Pinterest
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A poética de Rita revela uma voz em consonância com o
seu tempo, atenta às transformações sociais e consciente de seu papel político
na sociedade. Esta voz que se materializa no livro, possui um corpo político
feminino que se descobre livre durante todo um doloroso processo de
autodescoberta e que é gestada – pela posse da ‘palavra de mulher’ tão ausente
na história dos homens – na sombria alcova dos difíceis silêncios. Não basta
existir é preciso mergulhar fundo no denso amálgama da vida, desgarrar-se, liberar-se
da culpa e do medo, parir a ‘palavra primordial’ que liberta a consciência e ilumina
os caminhos: “Estou grávida de mim mesma / Sinto que minh’alma não / Habita
mais meu corpo cansado, / Ela habita na essência. / Crisálida antes da
liberdade / Parto difícil esse de parir a si mesma! [...] Para, em voo solo,
decolar!” (“Parir-se”, p.75).
E neste sentido, há sempre muito a ser dito: “feridas
tantas de tempos / Passados, somam distâncias no peito oco / Entre o que somos
hoje e um dia fomos. [...] Não, não foi a saia, não foi o corpo, foi a
violência! [...] Há tanto o que ser (re)visto sob o sol dos dias / Há tanto o
que ser falado dessas dores e noites / Que, quando nos levantarmos todas, isso
é certo, / Nossa voz explodirá numa aurora nuclear irrefreável. // Indomável.”
(“Há tanto o que se falar”, p.88).
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Imagem Pinterest |
O erotismo também atravessa o movimento reflexivo de In(-)versos
do meu verso, e se apresenta numa cuidadosa e sutil linguagem marcadamente
lúdica, que se mostra e se esconde nas entrelinhas e que se impõe através de
uma voz lírica insubmissa, irônica, decidida e conhecedora dos próprios desejos:
O corpo todo ondulando / E, se abrindo
como leque [...] Doce, escorregando pelo túnel, / Buscando, serena e plena / O
ponto mais alto de seu / Próprio prazer. / Ele nem desconfia…” (“Na calada da
noite”, p.21).
Nos jogos de sedução quem dá as cartas é esta mulher
que sabe o que quer, inclusive ainda adverte este imprudente homem do perigo de
suas “coxas e olhos reluzentes”, de sua beleza “tão livre e solar”, pois sabe
que quando a veja tão radiante assim, “Um gosto amargo te subirá a boca, eu
sei, / Mas os braços já estarão ao teu pescoço… / E será o teu fim, ou pior, do
homem que pensas ser. // Então, cuidado!” (“Sedução”, p.26).
A escrita erótica de Rita Alencar Clark, para além de
sua incontestável qualidade poética, é uma escrita de resistência contra os
velhos tabus e os inúmeros preconceitos que nos têm silenciado ao longo dos
séculos, e que, portanto, empunha a bandeira pela liberdade dos corpos de
mulher, porque queremos “nossos corpos livres e belos / Por serem nossos, de
mais ninguém, só isso!” (“Universos de nós mesmos”, p.83).
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Alencar e Silva Arquivo da autora
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E por último, e não menos importante, a presença da
intertextualidade que se plasma na poética do livro, estabelecendo uma relação
de dialogicidade ambivalente, quando Rita toma a palavra poética de outros(as)
autores/as para vesti-la em seu poema, dando-lhe sentidos outros. Como pequena
amostra, destaco o fragmento do soneto do poeta Alencar e Silva: “Por entre
as faces de um poliedro / como entre as fases de um pesadelo / pânico apelo
nas multidões / vou decifrando
meu próprio rosto / no amargo gosto das decepções”; além da poeta conservar
o sentido que a palavra “poliedro” já possui, ela explora e ressignifica outros
sentidos ao dialogar com o próprio pai poeta,
Alencar e Silva: “Encontro em mim teu coração, / Este poliedro de mil
faces, / Lapidado pelo mestre em sua forma / Mais perfeita, mais exata!” (“Tens
os olhos guardados em mim”, p.48).
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Rita Alencar e Silva e Marta Cortezão Palácio da Justiça (Manaus-23/SET/2024) |
Assim, a poeta segue lapidando, ainda no mesmo poema, mas agora em diálogo com Fernando Pessoa, sem romper-lhe
a ideia primária: “Pulsante às dores do mundo, / Este comboio de cordas
em / Sonatas de outono”.
Por aqui me despeço, e não me levem a mal, mas é que “Já
nem sinto os meus pés no chão…”. Ó Santa Rita dos versos encantados, escrevei para
nós… Amém! Boa leitura.
Marta Cortezão
Poeta
amazonense.
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Arquivo da autora |