POESILHA: UMA VIAGEM POÉTICA DE REDENÇÃO
Por Marta Cortezão
quero
encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não
o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és
(José
Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida)
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Capa livro Poesilha / Arquivo da autora |
A leitura de Poesilha: dos pequenos tratados do
cotidiano, de Dalva Lobo, conectou-me com a “ilha desconhecida” de Saramago.
Na citação acima, temos um diálogo do homem que solicita um barco ao rei e a
mulher da limpeza que toma a decisão de seguir seu destino, em busca da ilha
desconhecida. A mulher que limpava o palácio, abria as portas, fez a sua
escolha:
Pensou ela que já bastava de uma
vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício,
que lavar a limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos,
a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer
começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada
das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma
comportar-se conosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para
tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar (...)
Essa busca necessária e humana pela sabedoria que está
nas pequenas coisas da vida, no cotidiano, é o que de fato nos faz abrir os
olhos para o que a vida nos ensina. Para Sócrates, “só é útil o conhecimento
que nos torna melhores”. Eis a essência da busca pela “ilha desconhecida” que
também verseja na poética de Dalva Lobo.
No prefácio, Vanderlei Barbosa, afirma que a
literatura de Dalva Lobo “aguça os cinco sentidos: amplia a visão, dilata as
pupilas, provoca aromas, oferece sabores, toca corpo-alma” (p.11). É um tratado
de celebração da vida onde se pode escutar a melodia de fundo que inspira a
alma a seguir a viagem, porque “é necessário sair da ilha para ver a ilha, que
não nos vemos se não nos saímos de nós, se não saímos de nós próprios”. Assim
que o poema-convite convoca:
ESTÁ ABERTA A SESSÃO! (p.15)
Que entrem os loucos, os poetas e os errantes.
E se algum bêbado quiser, que entrem também e se
embriague,
de
vinho, de poesia e de tudo o que for bom para
a
alma.
E os “cansados do ócio amargo” de Mallarmé,
sentem-se
à mesa com Rimbaud, Pessoa, Rosa,
Leminski e outros.
A quem tem sede, sejam servidas taças de vinho,
A quem tem fome, uma lauta refeição ao gosto poético,
Neste banquete há lugar para todos,
Desde que loucos, poetas e errantes,
Porque neles reside a sabedoria de quem
ama a vida,
a beleza e a virtude!
Um brinde!
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Contracapa Poesilha Arquivo da autora |
Há lugar para todos, mas é preciso estar faminto e
sedento pelo novo, pelo diferente, pela pluralidade e, especialmente,
desvencilhar-se das amarras do egoísmo para ter olhos fidedignos e enxergar,
com coerência e ética, “a beleza e a virtude”. A poética de Poesilha é
uma viagem de redenção. Há uma Ítaca perdida dentro de cada um de nós.
Enfrentamos diariamente toda espécie de obstáculos para encontrar nossa Ítaca,
somos o fiel arquétipo do errante Ulisses nos enfrentando aos próprios monstros
marinhos, criados pelo próprio medo que nos impede de enxergar o desconhecido.
E quantas vezes nos perdemos da rota? E quantas vezes a ilusão da falsa
felicidade nos desvia do que, de fato, nos é essencial para a vida? Por que
desviamos o olhar dos olhos que refletem a nossa própria existência?
Poesilha (p.19)
Na poesilha encontrei um espasmo de luz e uma conta
feita
das pérolas dos olhares sem fim.
Foi suficiente para desfilar na passarela da vida.
Um brinde à vida, ao amor, à amizade, aos desafios.
Um eterno brinde ao brilho que reluz de cada olhar.
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2ª orelha de Poesilha Arquivo da autora |
Tudo o que precisamos para enfrentar os obstáculos da
viagem está dentro de cada um de nós. E não adianta fugir às tempestades, aos maremotos,
se são eles que ensinam como lidar com a noite que “chega para todos”, mas “a
tela, / plácida, espera o toque que virá / quando a noite findar // Serão os
dedos, os pincéis. / E a paleta de cores, / a vida mesma”. E há sempre uma aurora trazendo a celebração
de um novo dia! Há que aceitar as fraquezas e vestir-se com a força que vem
delas, pois a “vastidão que nos cobre como um deserto, / faz-nos inocentes de
nossos crimes não cometidos (...) // Fugimos, então às nossas regras, tentando
não perceber / que nos tornamos cúmplices de nós mesmas no momento em / que nos
deixamos envolver pela doce sensação da liberdade que, / num átimo de segundo,
/ transforma-se em vastidão!”.
Desistir da viagem nunca será a solução. A solução é
atender o chamado de olhar para dentro de si e seguir em busca da “ilha
desconhecida”, porque “entre mim, meu corpo e a Via Láctea / [todo caminho é
possível]”. Faça chuva ou faça sol, “entre as pedras existem vários caminhos /
e nós escolhemos, sempre”, porque viver é tomar decisões, é sair do palácio,
como a “mulher da limpeza”, que escolheu o seu barco para ir em busca da ilha
desconhecida e não titubeou em revelar-se ao desconhecido:
A mulher da limpeza não se conteve,
Para mim não quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim,
Não tenho ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A
que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no
palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente
queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então
estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela
porta das decisões,
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Dalva Lobo Arquivo da autora |
A mudança é um processo invasivo, mas necessário para
nossa própria evolução. Entender nossos processos sem ter todas as respostas é
o mais normal do mundo, porque ninguém tem todas as respostas: “Não responda,
não tenha pressa, / O tempo é um caos e o caos é o silêncio que grita sufocado”
dentro de nós para nos fazer seguir adiante, mesmo com o medo por fiel companheiro.
A poeta convoca os acomodados à ação:
Os acomodados que se mudem (p.36)
Mudem de alma,
Mudem de pele.
Mudem de casa,
Mudem de planeta.
Apenas mudem.
E se não for possível mudar
de alma
de pele
de casa
de planeta
Mudem apenas o desejo de mudar,
Sabendo do risco perene das mudanças sem fim a que
estamos,
graciosamente, condenados.
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Arquivo da autora |
E com o passar do tempo, aquelas mudanças tão temidas
se tornam nossos melhores acertos, são elas que florescem no desértico barco
que cruza o infinito em busca da ilha desconhecida, a que habita em nós, os
próprios sonhos, os próprios desejos, o próprio humano ser em processo de
conhecimento contínuo. Somos o barco vagando no infinito, enfrentando as
tempestades, mas também disfrutando da paleta de cores da vida, porque durante
o percurso da viagem, o próprio barco se fez ilha conhecida, floresceu, deu
frutos, se fez terra vistosa e à vista dos que nos acompanham na viagem, como
no conto da “Ilha Desconhecida”, onde a caravela transformou-se numa “floresta
que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como,
começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente
decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é
preciso ceifá-la.”. Tudo o que precisamos está dentro de nós, pois somos
uma imensidão divina, ainda quando tudo for deserto, haverá o cacto e haverá a
beleza da flor para colorir a imensidão nos tons de rosa:
Despedida de Poesilha (p.50)
Às vezes povoamos o deserto
Outras vezes, ele nos povoa.
Não sei exatamente porque essa imagem está em minha
mente
Suspeito que há um deserto sondando
a existência e imprimindo sua marca.
Mas o rastro não se apagará quando dançar ao sabor do
vento,
porque o vento também, meu amigo,
habita o deserto e passa por ele, assim
como a chuva e o sol.
Só tenho certeza de uma coisa:
O sol, a chuva e o vento que passam por este deserto
Têm a certeza secular de que marcas impressas,
ainda que estejam sob a força da
natureza, permanecem.
Por isso, não nos esquecemos jamais de quem amamos
Nenhuma distância é suficiente para apagá-la de nossa
vida.
O tempo é testemunha,
Mais do que remédio, ele nos lapida a alma.
Poucas pessoas deixam marcas tão enraizadas.
Pouquíssimas deixam rastros indeléveis.
A natureza que cumpre seu ciclo.
O rastro,
O raso,
O profundo.
Tudo é deserto agora,
Mas no deserto também floresce o cacto
E entre seus espinhos
a flor delicada colore a imensidão de rosa.
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LOBO, Dalva. Poesilha: dos pequenos tratados do cotidiano. Juiz de Fora (MG): Editora Siano, 2022.
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Arquivo da autora |
Dalva Lobo, doutora em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e Pós-Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem poemas publicados na Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas; na Revista Literária "Travessias Literárias, no Facebook; no blog 'Feminário Conexões' e no 'Banzeiro Conexões'. Participou do canal N'outras Palavras (Youtube) com seus poemas e prosas poéticas e do I FLENLUA- Festival literário. Autora da obra "Catatau: dos labirintos da linguagem à criação de ambiências sonoras", é membro da Academia Lavrense de Letras (Lavras-MG). A paulistana, que reside atualmente em Lavras-MG, leciona na Universidade Federal de Lavras (UFLA) onde coordena o Grupo de Pesquisa Intersignos (Literatura, Linguagem, Tradução Intersemiótica e Formação Docente). É membro do GEP Teoria Crítica e Educação (UFSCar/UFLA), e sua pesquisa visa ao diálogo entre a literatura, as poéticas da linguagem e as performances de leitura.