
LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|14
SOBRE A VISIBILIDADE DAS ESCRITORAS NEGRAS + RESENHA DO LIVRO "O QUE É LUGAR DE FALA?" DE DJAMILA RIBEIRO
Por: Carollina Costa
LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|14
SOBRE A VISIBILIDADE DAS ESCRITORAS NEGRAS + RESENHA DO LIVRO "O QUE É LUGAR DE FALA?" DE DJAMILA RIBEIRO
Por: Carollina Costa
POR KRISHNAMURTI GÓES DOS ANJOS
É possível conciliar o espírito da poesia com as formas da prosa? Foi pergunta semelhante, mas bastante esclarecedora, que Charles Baudelaire considerado como o responsável por uma guinada decisiva na poesia moderna, dirigiu em carta a um editor de seus textos, ali por volta de 1861: “Qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?”.
Desde então e, cada vez com mais
frequência, os escritores(as) têm produzido uma escrita algo arbitrária,
despida de formalidades de composição, e com o espírito próximo da anotação
íntima. Parece-nos que um impulso reflexivo serve de meio condutor para
despertar imagens e ideias. E temos afinal, uma abordagem ao mesmo tempo lírica
e incomodada, atenta às subjetividades e ao mundo ao redor sem, no entanto,
deixar de estar relacionada com as qualidades da prosa; por isso mesmo,
apresentando tendências voltadas para acolher textos maiores – narrativos ou
não –, mesmo que procure fixar um olhar lírico sobre a realidade. As frases e
parágrafos acabam por supor uma dinâmica extensiva para o texto e as imagens
evocadas.
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[Foto aquivo pessoal da autora] |
A palavra perde seus contornos unívocos, e torna-se multisignificativa, irradiadora de significados variados. Com o andar da leitura, percebe-se o caráter de prosa desses textos – presente em tênues fios de enredos e nas conjecturas das personagens, interessadas em resgatar fatos e sentimentos que envolvem o fio narrativo. Textos em prosas poéticas que eventualmente, recorrem a figuras típicas da poesia, como a aliteração, a metáfora, a elipse, a sonoridade das frases etc. Contudo, o emprego desses elementos subordina-se ao ritmo mais alongado do discurso.
Destinos desdobrados, da
escritora e artista plástica Tere Tavares segue tal seara de fortes conotações
poéticas embasadas na preocupação com o humano e em refinado trabalho com a
linguagem, que permitem considerar os textos como prosa poética. Poéticos
porque são textos que não se fecham num sentido único, ao contrário, abrem-se
ao final da leitura e apontam para o infinito, para o futuro e para dentro do
“eu”. Faz-nos meditar sobre o penoso e solitário trabalho de aperfeiçoamento da
consciência individual, conseguido graças à contemplação atenta do mundo e à
investigação minuciosa dos submundos que compõem a alma. Trecho do texto “Maria
Pedro”:
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Arte: Tere Tavares, 'Beija-flor com flores vermelhas'- óleo sobre tela- 18 x 24 cm- 2019 [Foto arquivo pessoal da autora] |
“Escrevendo como se falasse, eu lhe permito confiar em dados diferentes, em escalas de conflitos insuperáveis e frases finais. Ensino-lhe a ver a dor maior para que ele sinta a sua dor diminuir. Abasteço-o com arquejos inéditos como um alfabeto infinito, onde cada soluço propõe uma nova música. Ele se entretece nessa leitura como um estudo de concordância às normatividades vibracionais capturadas quando se cola os ouvidos ao chão fechando as pálpebras. Isso supera avaliações de forma ou conteúdo. Eu lhe permito um sinal para outras fronteiras, a interpretação mapeada das catástrofes desconhecidas, das monumentais ideografias que completam a paisagem involuntária da sua própria luz; bastam-me esses voos que evolam de mim por puro deslumbramento”.
Se alguns textos se recolhem ao
silêncio de confissões envolventes, outros guardam, todavia, uma atitude de
provocação libertária, sobretudo naqueles que, de alguma sorte, tocam no sentir
feminino e nas tantas e tamanhas violências que as mulheres ainda hoje padecem,
e que ao final das contas acabam por se constituir nas “lost voices” do mundo.
E isto percebemos já a partir do título da obra que se caracteriza por uma
intenção manifesta. Desdobramentos da alma feminina. Percebe-se nitidamente a
centelha de inquietação de uma prosa levada ao estado da poesia, mas sem abrir
mão do plano narrativo. Verdadeira simbiose entre os gêneros tradicionais.
Alquimia entre prosa e poesia.
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[Foto aquivo pessoal da autora] |
Mas isto também se faz por uma
tendência meditativa que vai se acentuando e constituindo linha de força da
produção da autora. O pendor reflexivo desdobra-se num leque de muitas faces,
afinal. E pode mesmo prescindir da centralidade do sujeito lírico, articulando
um ponto de vista que se entremostra oculto sob um fluxo de frases impessoais,
e de que são exemplos flagrantes, textos como: “A feminina arte de nascer”,
Notas de amor de uma mulher em muitas”, “Hino às obras inversas”, “Deméter”,
“Filhos de papel e tinta”, “A arte não conhece o impossível” e “Sobre o filho
de José”. Já na segunda parte da obra sob o título de “Outros destinos ou
ensaios dos fins” que, dentre outros aspectos, foca no perpassar do tempo em
nossas vidas, merecem destaque textos profundamente reflexivos como o são,
“Nada precisa ser perfeito”, “Ensaio dos fins”, “Amulherquedesejaser” e
“Translúcida”.
Para o espírito reflexivo interessam mais as ambiguidades e torções de sentido; são mais adequadas as palavras da ironia, do jogo de contrastes ou da liberdade associativa. Desvios que a linguagem poética produz para se afastar do imaginário comum. Acionado pela força do detalhe ou do objeto, por um ângulo ou por um gesto fortuito, o procedimento reflexivo costuma recorrer aos valores elementares – sensações, sentimentos, percepções –, com o propósito de expressar determinada condição. Qualquer coisa ou ser, têm o poder de estimular os sentidos e produzir entrelace de imagens.
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[Foto arquivo pessoal da autora] |
Saliente-se finalmente, que a atitude meditativa que prevalece em boa parte dos textos não provoca necessariamente uma depreciação do efeito poético. Ao contrário, essa mesma visão crítica recusa os mecanismos sociais que banalizam a linguagem e continua desejosa de uma expressão outra, em que seja possível uma linguagem pessoal e ao mesmo tempo comprometida com a experiência vivida. Sem dúvida uma atitude geral que tende à uma concepção Holística da vida, uma forma de se ver a si mesmo e de ver o mundo e todos os seres de uma forma global, como um todo, onde tudo está interligado, onde nada é isolado, tudo pulsa simultaneamente, onde o todo está presente em cada parte. Não existe nada desligado, isolado. Uma maneira de ver que cada ser humano está diretamente conectado com todos os seres humanos e com todas as demais coisas do universo.
Num mundo que está passando por
tão rápidas mudanças em todos os sentidos, seja nos avanços tecnológicos, seja
nos costumes e crenças, é de suma importância adquirirmos uma visão ampliada e
um entendimento maior da vida. A autora ao caminhar rumo às sombras que existem
no interior do ser e que guardam os mistérios primordiais, aposta no profundo
poder da arte para transformar o indivíduo e incorporar poesia à vida humana,
para que esta se transforme num poema contínuo e numa encantada realidade.
Positivamente soube urdir textos que arrebatam o leitor numa torrente de
símbolos, imagens e significados.
Krishnamurti Góes dos Anjos
Escritor e Crítico Literário
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UMA CARTOGRAFIA DA ESCRITA DE MULHERES |03
ENTREVISTA COM MARGARIDA MONTEJANO
De acordo com a escritora chilena Isabel Allende, “as mulheres foram silenciadas por séculos e só agora, com as conquistas do feminismo e as inevitáveis mudanças na sociedade, elas começam a receber alguma consideração. Custa a uma mulher três vezes mais do que a um homem obter metade do reconhecimento. No meu caso, isso ficou evidente, especialmente no Chile. Ninguém é profeta em sua terra, pior se for mulher”. Diante disso, a literatura manifesta-se como uma importante arma de combate contra as desigualdades de gênero, ao dar voz e poder às mulheres. Na intenção de mapear as margens e abrir espaço para as novas vozes sociais, nossa coluna intitulada Uma Cartografia da Escrita de Mulheres tem como principal objetivo promover a valorização de escritoras contemporâneas, através de entrevistas. Hoje, temos a honra de receber a escritora Margarida Montejano, cujos versos e narrativas são repletos de sensibilidade, reflexão e sororidade.
ENTREVISTA COM MARGARIDA MONTEJANO:
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Arquivo pessoal da autora |
Margarida Montejano é natural de Mogi Guaçu (SP), mas reside em Paulínia (SP). Atualmente a escritora e poeta é Supervisora Educacional na Rede Municipal de Campinas. Cursou a graduação em Pedagogia e o Mestrado em Educação, na PUC Campinas, e, o Doutorado em Educação, na Unicamp. Além disso, é Pesquisadora do Loed/Unicamp, e, Produtora do Canal Literário N’outras Palavras – histórias que inspiram, no Youtube. Em 2021, foi Co-Organizadora do livro Cotidiano, Poesia e Resistência, publicado pela Editora Siano. Em 2022, publicou o seu primeiro livro, intitulado Fio de Prata, pela Scenarium Livros Artesanais (SP), e, em seguida, o livro Pérolas do Caminho, na Amazon.
Como você adentrou no mundo das letras?
Gabriela, querida. Antes de dialogar com você nesta e nas outras provocações deste maravilhoso espaço literário, quero agradecer o convite e desejar a você e ao Feminário Conexões, muitos êxitos! Que sua coluna atinja o objetivo maior que é o de ser lida, ressignificada e compartilhada com inúmeras mulheres do Brasil e do mundo. Sobre como adentrei no mundo das letras, penso que as letras sempre estiveram em mim, desde a infância, pelos olhos de minha mãe, primeira leitora e contadora de histórias. Eu era uma ouvinte atenta e curiosa, e fazia perguntas que a ela, talvez, por não ter as respostas, me pedia para ouvir até o fim porque lá, no final, eu entenderia. Não funcionava bem assim, mas ela tentava e conseguia prender minha atenção. Contudo, posso dizer que, foi na adolescência, período em que, por influência de um professor de literatura, mergulhei literalmente nos livros. Devorava os clássicos da biblioteca da escola municipal e, não satisfeita, na época, me inscrevi num clube do livro e recebia livros de bolso, com grandes títulos, pelo correio. Foi uma época mágica, pois tive contato com obras nacionais e internacionais, dentre elas algumas de Machado de Assis, Jorge Amado, Lygia Fagundes Telles, Cecília Meireles, Agatha Christie, Julio Verne, Gabriel Garcia Marques. Dele, faço questão de citar Cem Anos de Solidão, lido em cinco dias. Um livro que me marcou muito, pois trago comigo os detalhes de Macondo, cidade fictícia e a riqueza do real e do imaginário, retratada pelo autor na existência e especificidades humanas, presentes nas várias gerações da família Buendia.
A sua formação acadêmica, na área de educação, tem alguma influência na sua escrita literária?
Sim, com toda certeza. Minha formação acadêmica sempre esteve vinculada à educação pública. Tive o privilégio de receber uma bolsa de estudos no Mestrado e realizar meu doutorado numa universidade pública. Penso que a base político-educacional, que recebi em minha formação, possibilitou-me estar mais atenta à leitura crítica da realidade e, por conta disso, escrever com os pés fincados nos contextos político e social. E, ao mesmo tempo, considerando a licença poética e criativa que a literatura me permite, criar, sonhar e esperançar por tempos melhores, como nos ensinou Paulo Freire. Não consigo escrever descolada da realidade sócio-político-econômica que produz e se alimenta das desigualdades, miséria, violência e opressão. Neste sentido, acredito que, pela educação, com bases numa formação humana que promova o gosto pela leitura e, com isso, a leitura crítica da realidade, será possível construirmos um mundo mais fraterno, mais humanizado e sensível no enfrentamento dos problemas sociais.
Por que você escreve?
Eu diria que escrevo para me libertar de todas as amarras culturais que carrego comigo. A escrita feminina e a esperança são temas que permeiam minhas produções, sejam na poesia ou nos contos. Penso que minha escrita retrata as violências praticadas contra os oprimidos, de um modo geral. Contudo, mais especificamente, contra as centenas de milhares de mulheres que sofreram e sofrem com a violência e o preconceito causados pelo machismo estrutural, presente nas sociedades e que precisam ser enfrentados e combatidos. A escrita é uma ferramenta extremamente necessária e importante para melhorar a elaboração das ideias, da capacidade argumentativa, oralidade e autonomia da pessoa e deve ser estimulada a todos, desde a infância.
Quais escritoras(es) te motivam a continuar sua carreira literária?
São muitas escritoras maravilhosas, que me motivaram e motivam, quando as leio e as releio, vejo o quanto eu tenho a aprender com elas! Interessante que suas escritas me marcaram como tatuagem. Fazem parte de meus poros, de minha pele, de minha essência. De Clarice Lispector, A Hora da estrela, quanta sabedoria na reflexão sobre a vida e a morte! De Lygia Fagundes Telles, a Ciranda de Pedra. Eu era adolescente ainda, quando me encantei com a menina Virgínia, na luta por ser reconhecida! De Adélia Prado, me vem à mente o poema Casamento e a lembrança de que "Coisas prateadas espocam..." Muita riqueza em suas construções poéticas! De Cecília Meireles, o Retrato, muito forte e questionador, me toca lá no fundo: "Em que espelho ficou perdida a minha face?". De Cora Coralina, o poema Das Pedras, quanta aprendizagem em seus versos duros e realísticos. Dói e ensina que viver é lutar. Elisa Lucinda, Djamila Ribeiro e Conceição Evaristo, em luta pela defesa da vida das mulheres e de tantos outros irmãos do caminho. Vidas Negras me importam muito! E, como não poderia deixar de citar, as obras de Isabel Allende me estimulam a crer que é possível outro mundo diferente para nós mulheres, destacando, de sua obra, Mulheres de Minha Alma. De Clarissa Pinkola Estés, Mulheres que correm com os lobos e Angela Davis, é claro, com Mulheres, Cultura e Política. Penso que as escritoras citadas e tantas outras escritoras contemporâneas me convocam à escrita pela história de luta feminina e me lembram, nos lembram, em suas produções, de não esquecermos de nosso valor roubado, sonegado, negado e que a luta deve ser constante pelo lugar social reconhecido a que temos direito. Valiosas contribuições que me ajudaram e me ajudam a pensar e a sonhar com um mundo mais humano, fraterno e solidário para conosco e com todos os outros.
Conte-nos sobre o seu primeiro livro, Fio de Prata (2022). Como foi o processo de escrita? Quais temáticas você aborda? Onde podemos adquiri-lo?
Fio de Prata é, como costumo dizer, um livro-presente, pois tem o encanto das ilustrações confeccionadas pelo amigo e artista plástico, Ruy Assumpção Filho exclusivamente para os contos, iluminado pelos prefácios e posfácios e pelo feitio artesanal da Scenarium livros artesanais, sendo em sua forma costurado com uma fita prateada que se prolonga como um marcador de páginas. Dá para imaginar? É lindo, não deixe de conhecê-lo! Fio de Prata traz, no bojo dos 07 contos, memórias reais e ficcionais projetadas pela literatura em retratos da realidade e da existência, apresentando a mulher como protagonista em sua luta cotidiana pela integridade sócio-econômica e política de sua presença no mundo. Posso dizer que o processo da escrita nasceu sem pretensão literária, contudo fluiu com o desejo de se fazer registro para não se perder as histórias, transformando-se em contos. Neste sentido, bebeu conteúdos em vivências próprias e em histórias/causos colhidos em encontros com outras mulheres que se entregaram à contação de memórias, considerando não perdê-las no tempo. Como já sinalizado, Fio de Prata é permeado pela presença do feminino no protagonismo da menina, da moça, da mulher madura e idosa, todas apresentando seu aporte às lutas na denúncia e no anúncio de novas formas de enfrentamento do machismo estrutural na atualidade. E, se alguém se interessar em adquirir o livro Fio de Prata, na versão física, poderá fazer os pedidos diretamente com a editora Scenarium Livros Artesanais, ou, na versão digital, no site da Amazon.
Além de escritora de contos, você também é poeta. Na sua opinião, existe alguma diferença entre a escrita de prosa e poesia?
Sim, pois ambas as categorias têm forma própria. Na poesia, há ritmos, rimas, métricas... Na prosa não há versos e nem quebra de linhas, contudo em alguns de meus contos subverto a regra, pois, se na estrutura textual meu narrador pensar alto, não hesitarei em inserir um verso em meio à narrativa.
Você pretende lançar também um livro de poesia?
Sim. Já está sendo preparada, para o ano de 2023, uma coletânea de poemas, reunindo temáticas variadas, contudo todas em defesa da vida e da esperança.
Comente sobre os seus projetos na área da literatura e cultura, como, por exemplo, o Canal N'outras Palavras: histórias que inspiram.
Gabriela, além da leitura e da escrita que têm tomado conta de mim nos últimos tempos, outra ação que me é muito cara é a produção de conteúdo significativo à atualidade para o Canal do Youtube, N'outras Palavras - histórias que inspiram. Trata-se de um espaço cultural, sociopolítico e educativo, que nasceu no início de 2020, na época do início da Pandemia da Covid-19. O objetivo primeiro do canal era produzir leituras de contos, fábulas, poesias às pessoas que se encontravam em isolamento social, em especial às que estavam internadas em clínicas de recuperação, asilos e, mesmo em casa, longe dos familiares. Em 2021, o Canal intensificou sua produção e foram criados novos quadros, dentre eles o "Fala Poeta", voltado para a apresentação de poemas enviados ao Canal, com a leitura pelo próprio autor; o quadro "Janela Cultural", onde o autor apresenta seu trabalho destacando a sua atuação no universos literário e artístico; Lives com convidados que tratam temáticas da atualidade e como um espaço de lançamento de livros. No ano de 2022, mantivemos os quadros e criamos mais uma possibilidade de produção de conteúdo, o quadro "Na lata", no qual os convidados são entrevistados com questões atuais e que transitam pelas várias áreas do conhecimento, em especial, as de cunho filosófico-político e culturais. É importante realçar que os conteúdos apresentados no canal dialogam com a música e a arte de modo geral e o objetivo deste espaço de comunicação é apresentar pessoas que produzem educação e cultura na perspectiva da formação humana.
Qual é a importância da literatura?
Quando penso na importância da literatura me vem à mente o poema de Mário Quintana, "Quem faz um poema, salva um afogado". Assim vejo e sinto a literatura. Sua prática representa possibilidades de ampliação do olhar e de perspectiva do sujeito sobre a realidade. De enriquecimento do vocabulário, de elaboração de ideias e de produção escrita, assim como para o desenvolvimento da autonomia e da criatividade. Neste sentido, a presença da leitura desde a infância, ao meu ver, possibilita formar gerações de adultos mais sensíveis e humanizados no desenvolvimento das relações sociais, da ciência, da arte e nos cuidados consigo, com o outro e com o meio ambiente.
Como convidada da nossa coluna Uma Cartografia da Escrita de Mulheres, qual mensagem você deixa para a nova geração de escritoras?
Minha mensagem e desejo para as novas gerações de meninas, moças e mulheres: escrevam. Leiam muito e, em especial, literatura escrita por mulheres. Deixem registradas as experiências de vocês e participem de coletivos femininos. Não desanimem quando tudo parecer aterrador. Lembrem-se das mulheres que as antecederam e se fortaleçam nas experiências de suas vidas, pois somos o que somos por conta delas e das lutas que elas travaram.
Contatos da escritora:
Instagram: @montejanomargarida
Facebook: //www.facebook.com/margarida.montejano
Youtube: //youtube.com/c/NoutrasPalavras
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MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS
O D I A D E C Ã O
POR SANDRA A. SANTOS
As
viagens no metrô paulistano geralmente são longas e cansativas, principalmente
para quem mora na periferia. Um período de tempo em que passamos às voltas com
nossos pensamentos, dando espaço às reflexões que surgem de forma intrusa, e por
vezes deslocadas. Gente demais, com espaço de menos, e cada um isolado no seu
mundo.
O
silêncio, a alma do trem, instala-se como uma trilha sonora invisível a inundar
um cenário, onde pessoas estranhas se encontram, amontoam-se, e são forçadas a um
desconfortável grau de proximidade.
Quando
o vagão lota completamente, desequilibrar-se é impossível para quem segue viagem
em pé, pois mesmo sem segurar o corrimão, basta apoiar-se na parede hermética de
carne e ossos que involuntariamente balança na mesma onda.
Fiz
essa viagem por muitos anos e tinha dificuldades com um certo tipo de passageiro:
aquele que, estranhamente, presume que o outro queira prosear durante o
trajeto, e qualquer um serve, desde que tenha ouvidos. Concluo que talvez a
solidão incentive esse tipo de comportamento, e mesmo sem nenhum empenho de
minha parte, muitas pessoas dividiram suas vidas comigo, querendo eu ou não. Por
mim, viajaria calada na companhia dos meus pensamentos nada silenciosos, e mesmo
à contragosto, nunca neguei atenção a quem me puxasse conversa.
Antes
da febre dos smartfones, as viagens eram mais interessantes e mesmo que
praticamente ninguém se olhasse nos olhos, as pessoas ainda estavam lá. Com o
passar do tempo e com o avanço da tecnologia celular, elas migraram para um
universo paralelo onde os olhos ficam na tela, e alma sai do corpo. Entretanto,
há quem resista a essa escravidão virtual e abra um livro; eu me identifico quando
encontro outro herói da resistência.
Em
São Paulo as distâncias são imensas, e o trajeto de casa para o trabalho e do
trabalho para casa, de forma cruel nos rouba a individualidade. Mesmo assim,
insisto em amar essa cidade engolidora de gente, emprestando-lhe uma aura de
poesia que só os loucos e os poetas conseguem ver.
O
dia começara como outro qualquer, e estando eu entregue voluntariamente aos
labirintos da minha mente, fui puxada para a realidade pela figura de um homem
que, apesar de extraordinariamente comum, despertara minha atenção, fazendo com
que um arrepio gélido percorresse todo o meu corpo. Havia nele algo que estava além
de seu rosto magro e do seu aspecto sofrido: um sorriso cruel, os olhos frios e
desprovidos de brilho. Ao invés de sentar-se, parou de frente para a porta com
as pernas abertas e os braços cruzados, fitando-a como se pudesse movê-la com a
força de seu pensamento.
Passei
a observá-lo de forma mais atenta, e pressenti que viria confusão, pois ele parecia
pronto para enfrentar a turba ensandecida que entraria na estação seguinte. Aquilo
não daria certo, e ouso dizer que nada me preparou para o que aconteceu quando
a porta 28-A se abriu.
Com
um enorme salto e de braços abertos, o homem lançou-se para frente com uma fúria
terrível. Seus olhos estavam em brasa, e ele latia, rosnava e babava-se como um
cão raivoso. Eu, que nunca vira alguém
imitar um cachorro com tamanha precisão, duvidei que fosse apenas uma simulação,
pois parecia que ele havia se transformado em um animal. Para mim, aquele homem
acreditava ser um cachorro.
A
porta se fechou e ninguém entrou. Afinal, quem se atreveria a ser atacado por
um monstro feroz? Foi tudo muito rápido, surreal. A movimentação automática na
plataforma havia sido quebrada com louvor, e de forma inusitada, qualquer protocolo
de convivência social comum aos transportes coletivos, diluíra-se ao som de
latidos.
Um
silêncio mortal circulou pelo vagão, e as pessoas se entreolhavam
contorcendo-se nos acentos, e creio, que como eu, os outros passageiros foram tomados
pela surpresa e pelo medo. Olhares confusos buscavam algum tipo razoável de
explicação para o que acabávamos de testemunhar. Antecipei seus movimentos
tentando traçar uma rota de fuga, afinal talvez fosse necessário. Mantive os
olhos nele até que o infeliz me fitou diretamente, e eu por instinto, baixei
rapidamente a cabeça considerando que não se olha um predador nos olhos, a
menos que se queira enfrentá-lo.
Ele
então, calmamente descruzou os braços e passou a nos analisar, observando-nos
de forma acintosa, saboreando orgulhoso o impacto que causara. Divertindo-se às
nossas custas ele sabia que tinha o controle da situação.
-
Ceis gostaram do Toinho? - Indagou certificando-se que era ouvido.
-
Esse cão “dos inferno” é meu companheiro, e é só nele que eu confio. Não confio
em ninguém nessa cidade de loucos. Cidade de loucos sim. Eu odeio essa cidade. –
Frisou aos berros tentando ofender-nos.
-
Já passei muita fome, e até hoje não sei o que tô fazendo aqui..., nessa cidade
de merda! Cidade fedida. Eu vim pra melhorar de vida e não consegui nada. – Sua
expressão ensandecida, paulatinamente, assumia os ares de um solene discurso.
-
Cheguei novo e cheio de esperança. A cabeça cheia de sonho. Cheio de vontade de
trabalhar... E o que eu ganhei? O que eu ganhei? – Seu olhar nos atravessava e eu
imaginei que talvez fosse melhor se o ignorássemos, mas olhar para ele era
irresistível, e acho mesmo que, àquela altura, queríamos e merecíamos saber o
motivo daquilo tudo.
Quando
a voz robótica anunciou a chegada da próxima estação, o homem-cão posicionou-se
novamente em frente à porta, pronto para o momento do bote.
-
Vem Toinho, a porta vai abrir..., pega tsss tss Pega! Au uau au auuuuuuuu. –
Ele berrava, e o Toinho latia como um cão obediente, pronto a proteger seu
tutor. Dessa vez foi mais feroz e as pessoas na plataforma recuaram estonteadas.
Ninguém se arriscou a entrar, nem na porta onde ele estava, nem nas outras mais
distantes.
Impotentes,
assistimos o trem ganhar novamente os trilhos enquanto ele continuava sua
história. Sua expressão, paulatinamente se modificava, e eu notei que o ódio dava
lugar a algo mais leve que eu ainda não conseguia identificar.
-
Ceis gostam do Toinho né que eu sei? Eu também... só tenho ele! Ô cachorro
danado. Esse é fiel. Au! Auau! Cala a boca Toinho, fica quieto e me deixa falar
cachorro danado. - Ralhou com Toinho até conseguir seu silêncio canino.
-
Não vi pai nem mãe e se meus irmãos são vivos, só Deus é quem sabe. Aqui
carreguei muita areia e cimento no lombo. Nunca estudei, mas arranjei “uns rabo
de saia” e trepei e trepei gostoso... Até que sosseguei e casei. Casei não..., caguei.
Tive “uns menino” que nunca consegui sustentar direito. Nunca roubei, nunca
matei e..., o que eu ganhei? – Suas perguntas só receberam nosso profundo, e
agora, consternado silêncio.
-
O que eu ganhei? Fala caralho..., eu tô perguntando... – Silêncio mais profundo.
- Tô sem emprego, tomei uns “belo par de
chifre” e agora tô aqui com meu amigo Toinho. Agora só eu e ele... “Ceis” tão
com medo dele ou de mim? Fala com eles Toinho! – Fala pra eles que hoje a gente
saiu com vontade de morrer ou de matar... Fala pra eles que nóis num tá
brincando... Au au auauau – Lembro-me de sentir um certo alivio ao observar que
ele não parecia estar armado.
De
estação em estação, o desconhecido desabafou, o cachorro latiu e o trem seguiu
vazio.
Aquele
homem, em seu dia de fúria compartilhou sua triste história, deixando que do ódio
explodisse o choro, em um lamento doído e barulhento. Pouco a pouco, o medo deu
lugar a solidariedade e o homem-cão agora, era apenas um homem simples pedindo
socorro.
Uma
espécie de conversa de boteco mesclada a uma sessão de terapia de grupo se instalou
aos poucos, e não faltaram os mais variados conselhos para que ele seguisse sua
vida: um partilhou sua história de chifre garantindo que com o tempo, a dor passaria;
outro pregou um discurso religioso; alguém, da outra ponta do vagão, ensinou
uma simpatia para tirar o encosto; a senhorinha sentada ao meu lado, ensinou um
chá milagroso para acalmar a alma. Houve até quem brincasse com o cachorro..., se
o Toinho fosse de verdade, provavelmente ganharia um cafuné.
Fato
é que em um certo momento, alguém do outro lado do vagão gritou:
-
Eita que a porta vai abrir e o vagão vai encher! Pelo amor de Deus homem, solta
o Toinho!
Todos
riram, e arrisco a dizer que o cachorro Toinho, agora abanava a cauda alegremente.
FIM.
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V E R B O M U L H E R|05
P I N T O U U M C L I M A
POR HELENA TERRA
Em março de dois mil e doze, escrevi na última página do livro O Remorso de Baltazar Serapião, do Valter Hugo Mãe, a seguinte frase: o livro mais violento que já li, violência contra a mulher, desumanização. Na época, ele me lembrou, apesar do contexto diferente, do filme Boxing Helena, aquele em que um homem vai amputando partes de sua companheira até ela ser só cabeça e tronco. Os dois, livro e filme, ilustram o que o patriarcado, apesar da ordem, humanidade e justiça que prega, acaba por criar e permitir: desigualdade e violência. E é sobre violência que quero falar, da física à psicológica, das linguagens da violência e sobre os seus efeitos, por vezes, devastadores sobre as mulheres.
Eu
já fui vítima de ambas. Meus agressores, todos homens vestidos de bons ou de
bem, não importa se de esquerda ou de direita, se eleitores do Lula ou do
Bolsonaro, sabem os abusos a que me submeteram e o que me fizeram. A maior
parte nunca se desculpou. Nem irá. Tampouco espero que tente. São covardes até
para se reconhecer como agressores. E a covardia não costuma dialogar com o
arrependimento e com a decência. A covardia se entende com o orgulho, com as
mentiras e as perversidades e com o mau em si. A covardia gosta de errar e, aí,
acontece, como escreveu Imre Kertész em seu livro Um outro crónica de uma
metamorfose, que: “Os inúmeros pequenos erros individuais criam o grande
erro comum. E este erro é a nossa única verdade”,
Ou seja, a partir de certo momento, a covardia
é legitimada por quem a exerce, metabolizada como se fosse um alimento, se não
do corpo, da alma. Alma, pois é, que tipo de alma os homens violentos carregam?
Eis, uma pergunta que a minha racionalidade encontra dificuldade para
responder. Talvez, não exista uma explicação. Talvez, citando, outra vez, o
Imre Kertész: “o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal,
ao contrário: é o Bem”. Essa frase ele escreveu no Kadish por uma criança
não nascida, um livro sobre a recusa de um homem a possibilidade de um dia
vir a ser pai depois de ter sobrevivido a um campo de concentração nazista,
experiência cruel que ele, Imre Kertész, viveu aos quatorze anos de idade.
Aqui no Brasil, não sei se em outros países também, sair dos quatorze
anos, passar para os quinze, para as meninas, costuma ser uma data carregada de
simbolismo e de cobranças, uma espécie de marcador de crescimento físico e
emocional. Bailes de debutantes e festas, apesar dos custos aviltantes que
geram, ainda acontecem. Orienta o patriarcado, principalmente na classe média,
que as jovens sejam vistas então como mulheres. Portanto, nada mais natural que
elas desfilem e se exibam para os rapazes e mesmo para os homens com as idades
de seus pais ou avôs. Alguém há de, um dia, escolher uma para casar ou ter ao
lado se, digamos, “pintar um clima”. E lado, é bom que fique claro, trata-se de
um eufemismo, porque estamos todas cansadas de saber em que lugar, de que jeito
e sob que condições nos querem.
Condição,
aliás, é uma palavra usada por abusadores e opressores. “Minha condição de
homem, sua condição de mulher, você não tem condições disso e daquilo, você
está sem condições”, fazem parte do repertório da violência verbal masculina. Violência
verbal não é só palavrão como alguns pensam. É também aquela que se constitui
por meio de palavras mais sutis ou de seus silenciamentos e que ocorre, em geral, nos
espaços domésticos, entre quatro paredes. Aquela, por exemplo, que, depois de
você ter faxinado, no sábado de manhã, a casa de seu namorado porque ele pouco
se importa com a urina derramada sobre o assento do vaso sanitário ou do piso
do banheiro, explode sobre o que ele entende como excesso ou falta de peso em
seu corpo, sobre uma ideia que você tem e por aí vai. E vai longe. Depois da
ofensa verbal, não é improvável que surja a física. O patriarcado promove a
educação pela força e pelo medo. Como os torturadores da ditadura militar,
gosta de enfraquecer a autoestima da vítima antes de dar o bote.
Exemplos e estatísticas de bote contra as mulheres na primeira metade do ano de dois mil e vinte e dois depois de Cristo neste nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza:
1. Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 31 mil casos de violência doméstica foram registrados. Você que me lê, sabe dizer, assim de cabeça, o número do canal de denúncia? E se sabe, de fato, liga para ele quando sofre um ato violento ou percebe que uma mulher está sendo agredida?
2. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os casos de estupro ultrapassam os 66 mil, sendo que 61,3% das vítimas têm menos de treze anos de idade e em 79,6% foram estupradas por um conhecido.
E daqui, diante da violência contra meninas, não tenho como não lembrar do romance Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca, do Vladimir Nabokov, em que o padrasto de Dolores Haze, Lolita, Lô para os ainda mais íntimos, tenta se inocentar da violência psicológica e sexual para com a enteada, fazendo de conta de que não há dominação e verticalidade de experiência e de tudo entre eles. Um homem perverso. Pedófilo. Sendo que, sob sua ótica, o problema não está nele. Lolita é que é irresistível e Lolita o quer: "Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”, ele declara, como se o suposto afeto por alguém da idade de seu primeiro amor tivesse congelado o seu envelhecimento e o liberasse para manipular e abusar. “Liberdade para escravizar melhor os outros”, como Octávio Paz diz, se referindo às exaltações do Marquês de Sade no livro Um mais além erótico, e como alguns homens fazem, transformando meninas e mulheres em seus brinquedos.
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C L A R I C E E E U
POR TAINÁ VIEIRA
Clarice e eu é o nome desta crônica porque se trata de um texto bem intimista, na verdade, nem era para ser compartilhado, mas preciso mostrar o quanto tempo eu perdi, menosprezando uma autora que mudaria a minha medíocre existência. Sei, estou agindo como uma colegial, porém, eu não me importo. Clarice Lispector exerce um poder intenso sobre mim, a forma complexa e sutil de narrar, me motiva, influencia e inspira muito. Definitivamente, Clarice é a minha autora favorita para sempre!
Quando eu estava no curso de Letras – Língua Portuguesa, e mesmo antes do curso, eu lia muito, sempre digo que a minha jornada na literatura se deu primeiro com a leitura, isso é óbvio, não poderia ter sido diferente. Todavia, jamais me interessei pela literatura de Clarice, por dois motivos: o primeiro era porque sempre ouvira falar que a sua escrita era difícil de se entender, muito complexa e cansativa, e o segundo motivo; era por pura preguiça de me esforçar para entender.
Eu queria algo mais leve e fácil, eu queria mesmo era sombra e água fresca, nada de olhar para as profundezas das emoções das personagens, como no romance de estreia de Clarice, Perto do Coração Selvagem. Esse romance mudou a minha vida de verdade, e isso não é um clichê. Vira e mexe, estou pensando em Joana, ó minha triste e doce Joana, quão feliz eu fui adentrando a tua infeliz história. Por várias vezes, vi-me ali, por muitos instantes tu, Joana, eras eu, vivi contigo muitas agruras e tive também quase os mesmos pensamentos teus.
Formei-me, especializei-me, o tempo passou e Clarice sempre ficou para trás na minha vida. Sentia uma raiva tão intensa quando alguém perguntava sobre algum livro de Clarice, e eu respondia que não conhecia e a pessoa se assustava, como assim não conhece nada de Clarice? Eu, retrucava, quem é Clarice na fila do pão? É mesmo essencial ler Clarice?
Comecei lendo as suas crônicas, uma coletânea, Todas as crônicas, são mais de 600. O destino armou direitinho essa cilada boa, me pegou com as crônicas, e eu conheci uma autora totalmente oposta daquela que ouvia falar, e senti um ódio tão grande de mim por me deixar levar “no ouvir dizer.” As crônicas de Clarice são inspiradoras, nota-se a paixão pela escrita, pela Língua Portuguesa, e pelo país que ela tanto amou. Em seguida fui para os romances, me esforcei muito para gostar da Macabéa (já havia lido na época da faculdade, mas foi por obrigação) prefiro a Joana, contudo, a minha favorita é a G.H. G.H fala aos meus ouvidos, na verdade, estou ali naquele quartinho acompanhando cada cena que sua mente produz. Vivo àquela condição humana tão banal e tão necessária, e deixo-me levar por aquele turbilhão de emoção que percorre a narrativa.
Quando estou com tempo sobrando, assisto a entrevista de Clarice concedida quase um ano antes de ela morrer. Já fiz isso várias vezes e mais vezes farei. Tenho um álbum na minha galeria de fotos só dela. Quando penso em Clarice, lembro também de uma professora da época da faculdade que faleceu há um ano, ela amava e nos falava com paixão da obra de Clarice e dizia-me que eu precisava ler Clarice, que Clarice era fundamental. A minha professora estava coberta de razão.
Passei pelas crônicas e por alguns romances e estou finalizando os contos, os contos que quanto mais complexos, melhores são. E eu tenho certeza, jamais encerrarei as leituras, Clarice sempre estará ao meu alcance, tanto que A paixão Segundo G.H, me chama, nunca vi isso, um livro chamar por mim.
Antes de ler integralmente a Paixão segundo G.H, eu já havia iniciado umas duas vezes, e parava, não porque não entendia, mas sempre acontecia algo que fazia com que eu deixasse a leitura de lado, só que um belo dia, eu decidi, vou terminar esse livro, recomecei e em dois dias, eu estava triste porque tinha terminado, eu queria mais, queria que a leitura durasse mil e uma noites. Algo estranhamente tem acontecido, sinto uma necessidade de relê-lo. Estou quieta, e subitamente vem uma vontade de começar a ler tudo de novo, é como se esse livro chamasse por mim.
Essa é a literatura de Clarice, poderosa, inspirável, avassaladora e dominante, quem a conhece, a compreende, não escapa mais e fica literalmente à mercê, como se dela, um leitor, necessitasse para sobreviver. A obra de Clarice é o melhor enigma para que se possa desvendar (ou tentar) antes de começar a escrever. Clarice é essencial sim.
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'TRAVESSIA', DE ANA LIA ALMEIDA
POR CRIS LIRA
Hoje é dia de falar do Volume III
da Coleção III do Mulherio das Letras, a novela Travessia, da autora Ana Lia Almeida. Começo dizendo que este livro me fez rir muitas vezes, também me fez
chorar, e eu o li devagar, apesar de ser um livro de bolsa, porque cada um dos
textos que juntos contam essa viagem, para pensar na ideia primeira do termo
travessia, pressionou meus botõezinhos – para não confessar que estou pensando
em inglês – em diferentes lugares.
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[foto arquivo pessoal Cris Lira] |
Desde menina, diante de uma certa
profecia, eu decidi que não seria mãe. Há alguns meses, quando um pai de santo
me disse, na Bahia, que minha orixá era Yemanjá, a primeira coisa que saiu da
minha boca foi “mas eu nem sou mãe”. Ao que ele respondeu, “há muitas formas de
se maternar”. Eu simpatizo com essa fala dele, mas, sei, também, que a
travessia tão astutamente contada por Ana Lia Almeida é uma que eu nunca fiz e
nunca farei, portanto, como eu a agradeço por ter me dado a mão, por meio do
seu texto, para que eu me aproximasse um pouco do segredo.
Dividido em três partes Quedas,
Tropeços e Passagem, o livro nos atravessa, como o próprio trem de ferro,
mencionado por Adélia Prado, que aparece como a epígrafe motriz do livro. Nos
primeiros textos vamos acompanhando os acontecimentos à medida que a própria
personagem vai vivenciando as experiências ao mesmo tempo que temos acesso à
mente ansiosa, os cenários díspares que vão se formando, cada um mais caótico,
tosco ou engraçado, e isso traz uma leveza ao texto ao mesmo tempo que não
deixa de emprestar um pouco de ironia. Num deles, a personagem cai e pensa logo
nas pessoas que podem vê-la ali, “toda suja nessa beira de calçada” (21).
Dentre tantas, a maior ansiedade é que seja a sua médica, “[p]ois a médica mãe
de dois filhos vai parar o carro bem aqui ao meu lado e vai me ordenar:
“Levante já daí! Todas nós ficamos grávidas, não tem nada de mais” (21). Eu ri.
A protagonista queria que eu risse. O jeito como conta me leva a pensar isso.
Mas as perguntas que se seguem, o medo de não encontrar “o meio do caminho
entre a mãe total e a desnaturada” (23) vão me chamando a escuta. Há uma mãe em
construção aqui. Há um serzinho se formando e com ele há mil dúvidas e medos.
Há também uma pessoa que se sente perdida de si, desencontrando-se de si mesma,
“seria possível terminar o mestrado?” e que vai encontrando nos outros –
especialmente nas outras mulheres – apoio e também julgamento. Apoiada neste
livro, eu poderia falar muito sobre socialização feminina (a vizinha, a amiga
Isadora, a mãe), o mito da beleza, solidão materna, entre outros tópicos. Nada
do que eu pudesse fazer, porém, chegaria perto do trabalho feito por Ana Lia
Almeida ao nos entregar essa sua travessia, ao criar as pontes para nos
aproximarmos um pouco dessa experiência que, de certa forma, une as mães e, ao
mesmo tempo, é sempre única e, tantas vezes, pouco revelada.
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[foto arquivo pessoal Ana Lia Almeida] |
Como diz uma amiga que estou sempre
a citar pelas leituras que faço quando me deparo com sua voz a partir do que me
traz os livros, a vida é uma contradição. Não há situações ideais, tudo está
sempre em constante mudança. Permanecer enquanto se faz a travessia desses
espaços turbulentos e contraditórios é o que tonaliza a vida. Por isso, deixo
com vocês uma das partes do livro de que gostei mais:
Leite
“Meu peito esquerdo estava quase sangrando quando resolvi
dar uma mamadeira de leite em pó a Nina. Não bastasse eu me sentir uma
fracassada por isso, ainda tive de lidar com o julgamento dos outros. Minha
mãe, quando descobriu, só faltou me xingar. Isadora (*amiga – grifo meu) também
não gostou. A pediatra, muito menos. Por ironia do destino, só quem me apoiou
naquele momento foi D. Edna (* a vizinha).
(...)
Enquanto D. Edna preparava o crime na cozinha, eu
sofria por ser tão horrível a ponto de dar leite em pó para a minha filha.
Estava certa de jamais me perdoar por aquilo. Que tipo de mãe eu era, com
aqueles peitos sangrando, cheios um leite que minha filha não conseguia mamar?
(...)
Tive de aguentar o julgamento da minha mãe, de Isadora
e da pediatra, o que me fez voltar atrás e insistir novamente na luta de
amamentar.
(...)
Quanto mais Nina mamava, mais eu doava leite.
(...)
Quanto mais se dá, mais se tem: amor, vida, leite. Uma
lição a cada mamada. Toda vez que me sentia alegre, meu peito começava a vazar.
O amor jorrando em líquido, uma explosão de vida no meu corpo” (63-66)
Aprendamos a escutar as mães. Uma
escuta verdadeiramente empática e tranquila, sem julgamentos. Deixo aqui o
convite para que conheçam essa mãe se construindo na e pela palavra de Ana Lia
Almeida. Espero que riam junto comigo.
Até o próximo volume!
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Ana Lia Almeida é natural de Recife/PE e mora em João
Pessoa/PB, onde leciona para o curso de Direito da Universidade Federal da
Paraíba. Ainda nas primeiras incursões pelo mundo literário, é autora de “Curtinhas
da Quarentena”, livro de mini-crônicas publicado também pela Ed. Venas
Abiertas, e da série de contos “Rita na Luta”, publicada quinzenalmente em seu
blog Salto de Palavras. analiavalmeida@gmail.com @ana.lia.almeida
A DROGA DA VIOLÊNCIA E O MACHISMO Por Margarida Montejano Imagem Pinterest Quando eu e minha irmã éramos crianças, morávamos com nossos p...