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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

MOSAICO DE IDEIAS: INDIGESTÃO, POR SANDRA SA'NTOS

 MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|04

I N D I G E S T Ã O  (CRÔNICA)

POR SANDRA  SA'NTOS

[Imagem do Pinterest]
Ontem fiz feijoada, um mimo de domingo para agradar a família. Alimentei-os ciente que agradaria mais ao espírito que ao estômago. Carinho de mãe, eles gostam, então caprichei. Hoje, aqui sozinha à mesa, não consigo comer. A comida embola, não desce nem na marra, e mesmo sem vontade, empurro mais uma garfada goela abaixo. Por opção não ligo a TV, evitando as imagens terríveis despejadas em minha casa. Só em imaginar o que passa nos jornais agora, minha fome foge esgueirando-se pelo quintal. Deixo que a culpa me inunde por evitar saber sobre a guerra.

Sim, em 2023 acontece mais uma guerra absurda, se é que algum dia, houve de fato, uma razão lógica para qualquer que tenha sido o conflito. Do outro lado do mundo, tantas pessoas separadas de mim pelo conceito abstrato dos fusos horários, nem sabem se terão o que comer.  Não termino de colocar a comida na boca, pois em meus ouvidos ecoa o som de mais um míssil, ou de incontáveis projéteis em um novo confronto. Só de imaginar a cena, emudeço e o estômago trava.

Cada grão de feijão ganha o nome de uma pessoa abatida em nome de uma causa, e isso me enoja. O choro das crianças inunda minhas noites. Mesmo assim durmo... Ainda bem que meus pais não estão aqui para ver isso. Mais culpa.

[Imagem do Pinterest]

Não sou suficientemente sábia para explanar sobre “motivos”. Sou uma ignorante movida por um pensamento simplista em que a vida é um presente, e assim, precisa ser sorvida com delicadeza e gratidão. Para mim, nada justifica a barbárie e eu, no auge dos meus sessenta e um anos, não consigo entender, muito menos aceitar o que os move. Nem de um lado, nem do outro. Como posso engolir meu feijão se pais, mães, avôs, avós e crianças, provavelmente vão engolir terra? Mastigo a derradeira garfada.

Minha despensa está cheia, enquanto pessoas em bunkers, não possuem perspectiva alguma. Mais cedo fui ao mercado e vasculhei as prateleiras, em busca de cupom de desconto para quem tem um cadastro. Já me pequei comprando coisas das quais não precisava, só pra aproveitar a oferta. Novamente esbarro na culpa, e encaro no espelho a impotência por não ser nada além de mim mesma. Espero que a guerra acabe antes do natal.

[Imagem do Pinterest]

Procuro um motivo que faça algum sentido para dar início a uma guerra e não encontro. As empresas armamentistas as financiam, e a mídia se alimenta delas... Talvez seja isso. Cresci, em meio a conflitos de toda natureza: Vietnã, Afeganistão, Golfo, guerra fria. Uma vez vi uma foto de uma criança nua, correndo em prantos. Me falaram que era vietnamita. Nunca me esqueci o choque ao perceber que crianças podiam passar por algo semelhante. O ano era 1972, eu e ela tínhamos idades próximas, então, o que a fazia tão diferente de mim? Apavorada, fechei a revista.

Do alto da minha ingenuidade, pensei: bom que no Brasil não temos guerra. - Doce ilusão, temos sim, uma silenciosa. Atualmente, nem tanto. Naquele tempo se ouvia à boca miúda, sobre pessoas que sumiam sem deixar qualquer rastro, ouvia-se sobre a tortura e sobre a censura. Essa última, forte e onipresente com poderes para fazer uma palavra morrer na garganta, antes de ser proferida. Só a ela era dado o direito de decidir sobre a pertinência ou a periculosidade das palavras, das músicas, e das reportagens. Mas, artistas e jornalistas, (nem todos), constituíram a resistência, e espalharam por meio de metáforas a ideia de que calar-se, não era uma opção. Eu os amo por isso.

O tempo passou e a censura mostrou-se sábia. Parou de proibir palavras, e soube esperar pacientemente. - Deixe que falem bobagens, incentivem a baderna. Não há a menor necessidade de calá-los. - Infelizmente, deu certo. Surgiu um arsenal de ideias caóticas revestidas de contemporaneidade. Um sem número de subcelebridades que perdeu o nariz, a barriga e a vergonha em alguma cirurgia plástica. Um mar de futilidade se instalou de tal forma que o pensamento crítico se escondeu em alguma toca.  Hoje palavras fúteis jorram de bocas cada dia mais desfiguradas, (quanto mais grossas e carnudas melhor). E eu, culpada por não aguentar assistir TV?  

[Imagem do Pinterest]
Nesse mundo raso, (há exceções Graças a Deus), nossas guerras diárias passam pela desinformação sistemática, pelos Fake News, por um sem número de novidades estéticas, pela inflação, pelo desemprego, e outras mazelas. Vivemos um período em que não há mais defesa de opinião, há embates extremos. Por qualquer bobagem, em nome do entretenimento, pessoas se digladiam defendendo até a morte seu participante preferido, em algum reality inútil.

Para além dessa burrice crônica, facções crescem e se organizam, a Cracolândia povoa a cidade e prolifera seus zumbis, (pobres coitados que já perderam sua guerra pessoal). Acredito que em cada guerra, seja ela solitária ou não, existem dois lados, e de cada lado uma versão. A verdade, talvez, não more em nenhum deles.

Para a minha criança interior, digo: sim, a menina vietnamita poderia ter sido sua amiguinha. Por ela, até hoje perco o sono, e a fome. Como permitimos que crianças passem por tanto medo e por tanta dor?

Sem resposta, afago a criança que fui.  

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Sandra Sa'ntos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, pela faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo- FMS/USP. Ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Escritora, dedica-se a poesia e aos contos. Publicou "Jardim dos Silêncios" - Editora Viseu e organiza seu primeiro livros de contos. Além de um romance a caminho. Sua temática gira em torno do universo feminino, com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina. 

quarta-feira, 22 de março de 2023

MOSAICO DE IDEIAS: UM TANGO PARA EULÁLIA, POR SANDRA SA'NTOS

 

[Imagem Pinterest]

MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|03

U M  T A N G O   P A R A   E U L Á L I A 

POR SANDRA  SA'NTOS


Pela música que invade nossas almas, por um sonho, pela dança, pela poesia, e principalmente pela nossa liberdade. Dancemos com Eulália.


O hotel em que estavam hospedados era antigo, chique e pretensamente “Cult”. Tão refinado quanto ultrapassado, lindo mesmo assim. Eulália estava com Jairo em Buenos Ayres para algo que ela considerava uma espécie de lua de mel.

Para ela que crescera em uma família humilde, tudo era novo e deslumbrante. A cidade era especial, as pessoas que passavam pelas ruas combinavam tanto com o cenário que pareciam colocadas ali, apenas para enriquecê-lo. Figurantes escolhidos cautelosamente em um set de filmagem. Mas, apesar da beleza do ambiente, e de toda a preparação para essa viagem, ela tinha uma terrível sensação de estar no lugar errado. 

Apaixonara-se loucamente por Jairo, um argentino bonito e alguns anos mais velho, responsável pela reviravolta em sua vida. Uma paixão incontrolável os envolvera, e há pouco haviam se assumido como casal pois, até então, eram amantes acostumados com a clandestinidade. Talvez, por isso a incômoda sensação de não merecer estar bem a inundava. Tentava bravamente afastar os pensamentos conflitantes que lhe povoavam a mente, acreditando que a aura de criminalidade, ficaria para trás. Depois de tudo o que enfrentaram para ficar juntos, seria natural sentir-se em paz na companhia dele, porém, pelo contrário a sensação de alegria insistia em se afastar.

- Talvez seja apenas uma questão de tempo. É tudo muito recente. – Pensava consigo mesma.

Jairo de todas as formas possíveis, fazia com que ela se sentisse amada. Mas, agora ali longe de casa, a única coisa que ela sentia era medo e insegurança, além de uma latente intuição lhe tirava a tranquilidade. O homem por quem se apaixonara, em alguns momentos, parecia-lhe um estranho, e Eulalia via pequenos sinais que a incomodavam em suas atitudes. Algo não estava certo.

- Será que nos precipitamos? Será que eu me precipitei? – Inconformada com a sensação, estava decidida a fazer o que fosse possível para sentir-se mais calma, afastando como podia os pensamentos para longe.

Saíra de um relacionamento regado a solidão e precisava da atenção que Jairo lhe dava. Mas, havia um “mas” pairando como uma névoa sobre sua cabeça. Tudo se parecia demais com uma mentira. Um lado de sua mente, já havia decretado que tudo não passava de uma grande mentira que agora, ela teria que conviver. Assim, forçava-se a ficar imune aos alertas de sua intuição.

- Como posso não me sentir feliz na companhia dele?  Agora que já estou aqui preciso relaxar e aproveitar todos os momentos – Concluiu, ensaiando uma mudança de postura.

Haviam passeado de mãos dadas pela primeira vez sem incomodarem-se com as pessoas ao redor. Agora assumidos, poderiam fazer coisas de gente normal, livres como nunca se permitiram antes. Almoçaram em um restaurante maravilhoso, foram as compras e tudo parecia perfeito. Desde que chegaram ela sentira-se extremamente bem recebida em todos os lugares que passaram, Eulália sentia-se quase uma conterrânea, na verdade, seu biotipo realmente fazia com que ela parecesse muito com uma filha da terra. Mesmo assim, para ela, algo estava fora do lugar.

Naquela noite, Jairo havia prometido levá-la para conhecer a noite portenha e seus encantos, Buenos Ayres e sua famosa boemia. Eulália tinha um lado que apreciava a beleza das noites e sentia uma curiosidade romântica acerca dos seres que vagam solitários de bar em bar.

Em sua ingenuidade, acreditava que todos os boêmios eram artistas, compositores ou músicos. Nem de longe, se permitiria imaginar criaturas tristes e solitárias vagando sem rumo, objetivos ou sem esperança. Para ela, Jairo meio que retratava essa fantasia, o via como um lindo boêmio, e essa noite prometia. Tango, vinho, boas risadas e muito romance.

Olhando-se no espelho ordenou a si mesma para que fosse feliz. Decida a mudar sua postura, preparou a banheira e deleitou-se com um longo banho, chegando mesmo a adormecer naquela água perfumada e cheia de espuma, enquanto Jairo participava de mais uma reunião de negócios com os produtores de uva. Precisavam encaminhar detalhes da próxima safra, e sua rotina fazia com que se dividisse entre a Argentina e outros países, incluindo o Brasil.  

Maquiou-se, e vestiu sua roupa especial, um belíssimo vestido que Jairo lhe dera especialmente para a ocasião. Um tomara que caia, em tafetá preto, que parecia ter sido feito sob medida, lindo e tão caro quanto seu salário de um mês. Já vestida, parou para admirar-se no espelho, tudo estava perfeito. Mesmo assim, sentiu-se estranha. Ela nunca gastaria tanto dinheiro em uma peça de roupa.

- Talvez deva me acostumar com esse tipo de luxo. – Concluiu terminando a maquiagem e aprovando sua imagem. Estava pronta para a tão esperada noite de tango, mas ali em frente ao espelho apesar de toda a produção, o que viu foi um par de olhos tristes.

- Acho que vou colocar mais rímel, um pouco mais de blush e talvez disfarce. – Foi o que fez.

Eulalia ainda ouvia os insultos e sentia os olhares de desaprovação quando a notícia de seu divórcio se fez conhecida. Fora julgada e condenada por amigos e familiares, enfim, todos os que não se deram ao trabalho de perguntar o porquê. Preferiram fingir não saber o que é possível se viver ou morrer entre quatro paredes. Houve uma espécie de escolha e na caça às bruxas, as mulheres sempre perdem.

- Santa hipocrisia, eu me separo pra viver minha vida com mais dignidade e sou tratada como uma puta. Elas preferem manter as aparências? Então tudo bem, não sei se perdoo, mas com certeza eu supero. A escolha foi sua. Você buscou a liberdade e conseguiu. Agora, bora ser feliz dona Eulália! É uma ordem!!! - Falou em voz alta, certificando-se que a mulher de olhar triste que via refletida no espelho entenderia o recado. Deu uma última ajeitada nos cabelos, e saiu do banheiro.

Jairo já a esperava sentado confortavelmente em uma bela poltrona estilo retrô. Ao vê-la abriu seu enorme sorriso cheio de dentes, pulou em sua direção envolvendo-a nos braços. Ela, uma mulher pequena, ficava completamente escondida no enorme corpo de Jairo e aquele abraço, aquele carinho, aquela demonstração de conforto eram para ela a representação de um excelente momento pro relógio quebrar, e o tempo parar de andar. Um lapso de momento em que Eulália acalmou-se.

- Meu Deus como está linda! Me deixa ver como ficou nesse vestido, minha nossa! Eu sou muito sortudo, o homem mais sortudo de toda Buenos Ayres. - Exclamou Jairo enquanto a girava imitando um passo de dança. Findo o rodopio, olhou-a nos olhos e a beijou com a ternura e a potência que lhe eram características. Seu amor era uma bomba de sensações controversas e irresistíveis. Era um homem bonito com uma figura altiva, de gestos cautelosos e postura de leão.  Trajava um terno caro e bem cortado, que na verdade era a forma que usualmente se vestia.

- Vamos bela senhora Blanco? Senhora Eulália Blanco! Fica chic não acha? - Disse-lhe dando-lhe o braço, e empregando seu próprio sobrenome a ela.

- Senhor Jairo Blanco! Devo pressupor que isso seja um pedido de casamento? - Completou Eulália rindo.

- Vamos bela senhora, a noite nos espera. – Continuou sem responder sua pergunta. Sorrindo e rodopiando sobre si mesmo, ensaiou pequemos passos de dança enquanto atravessavam o corredor de seu quarto de hotel.

Na verdade, casamento não havia passado na cabeça de Eulália. Durante o curto período em que estavam juntos, apesar do envolvimento avassalador, se viam pouco e Eulália tinha consciência quanto a diferença de idade, e de vida entre os dois. Não haviam conversado sobre essa possibilidade, na verdade nem sequer haviam viajado juntos antes. Ela se envolvera com um homem que trabalhava muito e adorava seu trabalho, haviam se conhecido em uma convenção já que Eulália era secretária em uma empresa de eventos.

No elevador, Eulália assistiu confusa Jairo sacar o celular para checar se tudo estava encaminhado no que se referia aos convites e reservas dos convidados daquela noite.

- Convidados, que convidados? Deus do céu, quantas pessoas estarão lá? - Perguntou a si mesma indignada, pois naquele mesmo dia ele havia trabalhado. Imaginou que a noite fosse só deles. Tudo o que desejava era uma noite de romance, como ele a havia feito acreditar que seria.

Algo desabava a sua frente escancarando o que esse talvez viesse a ser a sua vida com ele, escancarando talvez o motivo de suas incertezas. Talvez nunca conseguisse ser importante o suficiente para ele, talvez não seria como agora, sequer consultada sobre algo que também a envolveria. Talvez, os negócios estivessem sempre entre os dois.

Uma nuvem de medo surgiu em seus olhos e quebrou seu espírito. Eulália não gostava de conflitos, e já apreensiva, questionava-se se deveria ou não externar sua indignação e desconforto. Preferiu calar-se, e engolindo as palavras continuou apenas observando enquanto Jairo falava, gesticulava e coordenava a tudo com desenvoltura. Seus olhos encheram-se de lágrimas e ela os baixou para que ele não percebesse. Mais uma vez, fez o que sempre fizera, calou-se como havia se calado a vida inteira.

- Que porra é essa? Não era um jantar romântico? Por que não conversou comigo antes? Por que não me avisou? – Bradou internamente sem nada dizer. A insegurança que ela ensaiara dar fim enquanto se arrumava, havia voltado e ele sequer percebeu. Eulália ainda não sabia, mas Jairo não conseguia ver muito além de si próprio.

O carro já havia andado alguns quilômetros quando enfim, a ligação terminou. O motorista, funcionário de confiança de Jairo, apenas a cumprimentou evitando olhar para ela durante todo o trajeto. Para Eulália isso foi um alívio, pois afastou o constrangimento de sua visível decepção. O destino era relativamente próximo do hotel, e a essa altura, seja lá quem o havia escolhido, fizera um bom trabalho. “La Noche”, um pequeno bar, no charmoso bairro de San Telmo.

Com móveis de madeira escura torneada, piso de ladrilhos brancos e pretos alternados. Lindo, tão lindo que parecia ser parte de outra época. Sentiu-se entrando em um túnel do tempo, num cenário perfeito, da música aos garçons, das pessoas aos cheiros que inundavam o ambiente que ostentava um refinamento único e genuíno.  

Estava encantada e considerou deixar-se levar pelo clima da noite portenha. Talvez não fosse assim tão difícil transformar aquela em uma noite inesquecível. Ela precisava desesperadamente sentir-se viva e havia entrado em um mundo de sonho. Estava deslumbrada.

Como pôde, sorriu e foi simpática com os convidados de Jairo, mesmo que para ela fossem apenas estranhos falando uma língua estranha, e que provavelmente só teriam assuntos que não lhe interessariam. Após algum tempo, abstraiu-se das conversas e desistiu mostrar-se presente na situação. Desistiu das delicadezas ensaiadas e da ausência de Jairo que se ocupou a agradar os presentes. Eulália distinguia sua voz ao longe, já que ele havia se sentado do outro lado da mesa para conversar. 

- Está tão animado e profícuo. Ou será prolixo? Essas conversas são sempre mais do mesmo e eu não vim aqui para trabalhar. Como ele pode fazer isso nessa noite? - Riu do próprio trocadilho.

Distraiu-se analisando tanto Jairo quanto o seu interlocutor, um senhor mais velho que prestava uma atenção sobre-humana nas palavras em suas palavras.

Acho que o homem não colocou direito a peruca. Sim, acho que ele usa peruca. - Cerrou os olhos prestando atenção aos detalhes que pudessem lhe entregar a verdade sobre o caso.

- É, eu estou certa. Aquela quantidade de cabelo sobre sua cabeça não combina nem com seu rosto, nem com os ralos cabelos nas laterais, e a cor é diferente. – Concluiu que a partir de então, seria um ótimo passatempo encontrar defeitos em todos que estavam estragando a sua noite, pelo menos assim, ficaria com uma expressão risonha o que daria a impressão de estar satisfeita.

Foi o que fez com o auxílio do garçom um tanto empolgado com a moça que parecia deslocada. O rapaz, decidira manter sua taça cheia, num bom pretexto para estar por perto numa espécie de flerte proibido. Ela por sua vez, entregou-se inteira as delícias do líquido sagrado.

A imagem de Jairo, aos poucos, desapareceu na fumaça dos cigarros, no som da música, e na leseira daquele bom vinho. Ele tornou-se apenas mais um no meio de tantas pessoas e Eulalia já não estava mais com eles. Estava sozinha como nos longos anos de seu casamento. Estava em um lugar repleto de gente, mas sozinha.

Como não entendia muito bem o idioma, decidiu colocar mentalmente uma legenda nas palavras que jorravam das bocas das pessoas fazendo com que a dificuldade de comunicação, passasse então a diverti-la. Agora a língua que eles falavam já nem era mais tão estrangeira assim.

A liberdade etílica, que captura facilmente aqueles não acostumados ao álcool, fez com que ela se sentisse à vontade consigo mesma. Deixou-se levar pela vibração do ambiente e assistiu extasiada à apresentação musical de três senhores que tocavam acordes perfeitos em instrumentos que ela nem conhecia. Teve a impressão de que o restante dos músicos talvez, estivesse escondido, como era possível, apenas três senhores, só três, inundarem todo o salão com tamanha magia? A harmonia daquelas figuras já idosas, se encaixava perfeitamente ao cenário, e Eulália divagava alternando-se entre o real e a fantasia trazida por Baco.

- Talvez tenham nascido aqui, têm a mesma idade do bar. Acho que bebi demais. - Percebendo o absurdo que pensara, decidiu que era hora de comer alguma coisa, tomar um copo de água, e andar um pouco. Precisava se recuperar antes que alguém notasse sua embriaguez. Levantou-se com calma e dirigiu-se ao banheiro.

Nem se deu ao trabalho de comunicar a Jairo. Cuidou em andar de forma leve e cautelosa para que ninguém percebesse que estava “alta”. Lavou o rosto, retocou a maquiagem, e sentindo-se melhor resolveu retornar à sua mesa. No caminho de volta, distraiu-se com os homens e mulheres bem vestidos, e com a alegria que pairava no ar, sem dúvida era o ambiente perfeito para casais apaixonados.

Voltou a passos lentos, ciente de que havia demorado mais que o normal, mas agora sentia-se bem. Constatou que Jairo que trocara de interlocutor, ainda não voltara para a cadeira ao seu lado, talvez nem tivesse dado por sua falta. Estava contrariada e decidida a não estragar ainda mais a sua noite quando o anúncio da apresentação principal lhe atraiu a atenção.

- Tango! – Exclamou batendo palmas entusiasmada. Ajustou-se rapidamente na cadeira no mesmo momento em que o prestativo garçom, lhe oferecia mais uma taça de vinho que ela mais que prontamente, aceitou. Assistiu à apresentação hipnotizada, pondo-se a calcular o nível de harmonia e entrosamento que um casal de profissionais da dança deve possuir para realizar com tamanha desenvoltura aqueles passos intricados.

- Se o sexo fosse uma música, definitivamente seria o tango. – Concluiu acompanhando com atenção cada movimento. Mentalmente bailou com eles chegando a inferir se fora do palco, também seriam um par. Invejou a dança e invejou aquela moça que rodopiava leve nos braços de seu parceiro. Gostaria de trocar de lugar com ela.

Sem que Eulália soubesse, era praxe ao fim da apresentação que os dançarinos escolhessem pessoas entre o público para dançar, como se fosse uma aula. Entusiasmada acompanhou atentamente toda a movimentação. A moça, após andar um pouco, convidou um senhor grisalho e tímido de uma mesa no lado oposto do salão. O rapaz sem nenhuma hesitação, assim que se separou da parceira, buscou por Eulália e a olhou fixamente. Caminhou em sua direção com a determinação de quem sabia muito bem o que queria. Queria Eulália. Parou em sua frente, sorriu e estendeu-lhe a mão.

Com o coração acelerado, mais que depressa ela aceitou o convite e saíram de mãos dadas rumo a pista de danças. Já no meio do salão lembrou-se de Jairo, dirigiu seu olhar a ele procurando talvez, um sinal de aprovação que não recebeu. Pelo contrário, ele a observava com um misto de surpresa e raiva. Sua reação negativa não a demoveu. Era visível que ele estava perplexo e que se pudesse dizer algo naquele momento, com certeza a impediria. Eulália olhou a sua volta, e recebeu a aprovação do bar inteiro por meio de palmas e palavras de incentivo, para ela e para o senhor tímido que agora sorria. Era isso o que todas as mulheres naquele bar queriam, e era isso o ela queria. Esqueceu-se de Jairo, e se entregou ao tango como antes se entregara ao vinho.

Nos braços daquele estranho fascinante se deixou conduzir como uma amante que flui nas mãos de seu homem. Olhavam-se fixamente e ela agiu como se dançar lhe fosse algo costumeiro, como se eles já houvessem ensaiado aquela dança muitas e muitas vezes.

Há uma aura que emana de um corpo para outro em uma fluidez simbiótica que vem com a dança. Quando corpo e alma se misturam a uma melodia tornando-se parte dela de tal maneira, que entre dois estranhos nasce uma cumplicidade que só existe no compasso da música. Eles haviam entrado nesse universo.

Naquele bar antigo nascia uma Eulália atemporal, sem medo de lançar-se ao desconhecido. Deixou que todas as sensações pulsantes do momento, invadissem sua alma. Uma Eulália que vivia aquela fantasia sem medo de ser feliz. Ela rodopiou nos braços daquele homem, nos braços do tango e da poesia que faltava em sua vida. Esqueceu-se da tristeza e do medo. Ali não havia pecado, havia apenas a euforia da liberdade.

Não havia passado. O presente era mágico. E quanto ao futuro?

Bem... Nesse ela pensaria depois. 

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Sandra Sa'ntos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, pela faculdade de Saúde Publica da Universidade de São Paulo- FMS/USP. Ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Escritora, dedica-se a poesia e aos contos. Publicou "Jardim dos Silêncios" - Editora Viseu e organiza seu primeiro livros de contos. Além de um romance a caminho. Sua temática gira em torno do universo feminino, com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina. 

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

MOSAICO DE IDEIAS: O DIA DE CÃO, POR SANDRA SANTOS

 

MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|02 

O   D I A   D E   C Ã O

POR SANDRA A. SANTOS

As viagens no metrô paulistano geralmente são longas e cansativas, principalmente para quem mora na periferia. Um período de tempo em que passamos às voltas com nossos pensamentos, dando espaço às reflexões que surgem de forma intrusa, e por vezes deslocadas. Gente demais, com espaço de menos, e cada um isolado no seu mundo.

O silêncio, a alma do trem, instala-se como uma trilha sonora invisível a inundar um cenário, onde pessoas estranhas se encontram, amontoam-se, e são forçadas a um desconfortável grau de proximidade.

Quando o vagão lota completamente, desequilibrar-se é impossível para quem segue viagem em pé, pois mesmo sem segurar o corrimão, basta apoiar-se na parede hermética de carne e ossos que involuntariamente balança na mesma onda.

Fiz essa viagem por muitos anos e tinha dificuldades com um certo tipo de passageiro: aquele que, estranhamente, presume que o outro queira prosear durante o trajeto, e qualquer um serve, desde que tenha ouvidos. Concluo que talvez a solidão incentive esse tipo de comportamento, e mesmo sem nenhum empenho de minha parte, muitas pessoas dividiram suas vidas comigo, querendo eu ou não. Por mim, viajaria calada na companhia dos meus pensamentos nada silenciosos, e mesmo à contragosto, nunca neguei atenção a quem me puxasse conversa.

Antes da febre dos smartfones, as viagens eram mais interessantes e mesmo que praticamente ninguém se olhasse nos olhos, as pessoas ainda estavam lá. Com o passar do tempo e com o avanço da tecnologia celular, elas migraram para um universo paralelo onde os olhos ficam na tela, e alma sai do corpo. Entretanto, há quem resista a essa escravidão virtual e abra um livro; eu me identifico quando encontro outro herói da resistência.

Em São Paulo as distâncias são imensas, e o trajeto de casa para o trabalho e do trabalho para casa, de forma cruel nos rouba a individualidade. Mesmo assim, insisto em amar essa cidade engolidora de gente, emprestando-lhe uma aura de poesia que só os loucos e os poetas conseguem ver.

O dia começara como outro qualquer, e estando eu entregue voluntariamente aos labirintos da minha mente, fui puxada para a realidade pela figura de um homem que, apesar de extraordinariamente comum, despertara minha atenção, fazendo com que um arrepio gélido percorresse todo o meu corpo. Havia nele algo que estava além de seu rosto magro e do seu aspecto sofrido: um sorriso cruel, os olhos frios e desprovidos de brilho. Ao invés de sentar-se, parou de frente para a porta com as pernas abertas e os braços cruzados, fitando-a como se pudesse movê-la com a força de seu pensamento.

Passei a observá-lo de forma mais atenta, e pressenti que viria confusão, pois ele parecia pronto para enfrentar a turba ensandecida que entraria na estação seguinte. Aquilo não daria certo, e ouso dizer que nada me preparou para o que aconteceu quando a porta 28-A se abriu.

Com um enorme salto e de braços abertos, o homem lançou-se para frente com uma fúria terrível. Seus olhos estavam em brasa, e ele latia, rosnava e babava-se como um cão raivoso.  Eu, que nunca vira alguém imitar um cachorro com tamanha precisão, duvidei que fosse apenas uma simulação, pois parecia que ele havia se transformado em um animal. Para mim, aquele homem acreditava ser um cachorro.

A porta se fechou e ninguém entrou. Afinal, quem se atreveria a ser atacado por um monstro feroz? Foi tudo muito rápido, surreal. A movimentação automática na plataforma havia sido quebrada com louvor, e de forma inusitada, qualquer protocolo de convivência social comum aos transportes coletivos, diluíra-se ao som de latidos.

Um silêncio mortal circulou pelo vagão, e as pessoas se entreolhavam contorcendo-se nos acentos, e creio, que como eu, os outros passageiros foram tomados pela surpresa e pelo medo. Olhares confusos buscavam algum tipo razoável de explicação para o que acabávamos de testemunhar. Antecipei seus movimentos tentando traçar uma rota de fuga, afinal talvez fosse necessário. Mantive os olhos nele até que o infeliz me fitou diretamente, e eu por instinto, baixei rapidamente a cabeça considerando que não se olha um predador nos olhos, a menos que se queira enfrentá-lo.

Ele então, calmamente descruzou os braços e passou a nos analisar, observando-nos de forma acintosa, saboreando orgulhoso o impacto que causara. Divertindo-se às nossas custas ele sabia que tinha o controle da situação.

- Ceis gostaram do Toinho? - Indagou certificando-se que era ouvido.

- Esse cão “dos inferno” é meu companheiro, e é só nele que eu confio. Não confio em ninguém nessa cidade de loucos. Cidade de loucos sim. Eu odeio essa cidade. – Frisou aos berros tentando ofender-nos.

- Já passei muita fome, e até hoje não sei o que tô fazendo aqui..., nessa cidade de merda! Cidade fedida. Eu vim pra melhorar de vida e não consegui nada. – Sua expressão ensandecida, paulatinamente, assumia os ares de um solene discurso.

- Cheguei novo e cheio de esperança. A cabeça cheia de sonho. Cheio de vontade de trabalhar... E o que eu ganhei? O que eu ganhei? – Seu olhar nos atravessava e eu imaginei que talvez fosse melhor se o ignorássemos, mas olhar para ele era irresistível, e acho mesmo que, àquela altura, queríamos e merecíamos saber o motivo daquilo tudo.

Quando a voz robótica anunciou a chegada da próxima estação, o homem-cão posicionou-se novamente em frente à porta, pronto para o momento do bote.

- Vem Toinho, a porta vai abrir..., pega tsss tss Pega! Au uau au auuuuuuuu. – Ele berrava, e o Toinho latia como um cão obediente, pronto a proteger seu tutor. Dessa vez foi mais feroz e as pessoas na plataforma recuaram estonteadas. Ninguém se arriscou a entrar, nem na porta onde ele estava, nem nas outras mais distantes.

Impotentes, assistimos o trem ganhar novamente os trilhos enquanto ele continuava sua história. Sua expressão, paulatinamente se modificava, e eu notei que o ódio dava lugar a algo mais leve que eu ainda não conseguia identificar.

- Ceis gostam do Toinho né que eu sei? Eu também... só tenho ele! Ô cachorro danado. Esse é fiel. Au! Auau! Cala a boca Toinho, fica quieto e me deixa falar cachorro danado. - Ralhou com Toinho até conseguir seu silêncio canino.

- Não vi pai nem mãe e se meus irmãos são vivos, só Deus é quem sabe. Aqui carreguei muita areia e cimento no lombo. Nunca estudei, mas arranjei “uns rabo de saia” e trepei e trepei gostoso... Até que sosseguei e casei. Casei não..., caguei. Tive “uns menino” que nunca consegui sustentar direito. Nunca roubei, nunca matei e..., o que eu ganhei? – Suas perguntas só receberam nosso profundo, e agora, consternado silêncio.

- O que eu ganhei? Fala caralho..., eu tô perguntando... – Silêncio mais profundo.

 - Tô sem emprego, tomei uns “belo par de chifre” e agora tô aqui com meu amigo Toinho. Agora só eu e ele... “Ceis” tão com medo dele ou de mim? Fala com eles Toinho! – Fala pra eles que hoje a gente saiu com vontade de morrer ou de matar... Fala pra eles que nóis num tá brincando... Au au auauau – Lembro-me de sentir um certo alivio ao observar que ele não parecia estar armado.

De estação em estação, o desconhecido desabafou, o cachorro latiu e o trem seguiu vazio.

Aquele homem, em seu dia de fúria compartilhou sua triste história, deixando que do ódio explodisse o choro, em um lamento doído e barulhento. Pouco a pouco, o medo deu lugar a solidariedade e o homem-cão agora, era apenas um homem simples pedindo socorro.

Uma espécie de conversa de boteco mesclada a uma sessão de terapia de grupo se instalou aos poucos, e não faltaram os mais variados conselhos para que ele seguisse sua vida: um partilhou sua história de chifre garantindo que com o tempo, a dor passaria; outro pregou um discurso religioso; alguém, da outra ponta do vagão, ensinou uma simpatia para tirar o encosto; a senhorinha sentada ao meu lado, ensinou um chá milagroso para acalmar a alma. Houve até quem brincasse com o cachorro..., se o Toinho fosse de verdade, provavelmente ganharia um cafuné.

Fato é que em um certo momento, alguém do outro lado do vagão gritou:

- Eita que a porta vai abrir e o vagão vai encher! Pelo amor de Deus homem, solta o Toinho!

Todos riram, e arrisco a dizer que o cachorro Toinho, agora abanava a cauda alegremente.

FIM.

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Sandra A. Santos 
é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

MOSAICO DE IDEIAS: A ESCRITA, A MULHER E A BUSCA PELO ESPAÇO DE EXPRESSÃO, POR SANDRA SANTOS



MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|01 

A ESCRITA, A MULHER E A BUSCA PELO ESPAÇO DE EXPRESSÃO


POR SANDRA A. SANTOS


Não sei explicar como começou pra mim.  Só sei que sempre gostei de literatura e fui uma leitora ávida na infância e adolescência. Um dia em 2002, lidando com as coisas inóspitas que a vida por vezes nos proporciona, pensei que a qualquer momento explodiria.  Foi quando por impulso, peguei um papel e escrevi... Soltei a palavra, gostei do resultado e naquele mesmo dia mostrei a alguém. O que ouvi?

– P@##a, foi você quem escreveu isso? Você quem escreveu? Mesmo? – perguntou-me incrédulo o meu primeiro leitor.

– Sim, fui eu... Claro que fui eu. – Respondi tanto magoada quanto surpresa, num tom impregnado por um misto de desafio e orgulho ferido. Afinal, porque não seria, se eu estava ali, me expondo? E porque não poderia ser um texto meu?

– Nunca darei conta de você.... Você me assusta, você tem alma de artista. – Respondeu-me o tal interlocutor fitando-me como se aquele texto evidenciasse uma espécie de doença. Algo vil que me colocava numa posição vulnerável e em contraponto, me conferia alguma vantagem que lhe era intimidadora. Se era assim... então eu deveria me sentir culpada.

Recebi aquelas palavras como um elogio atravessado por uma ameaça velada.

Essa situação me marcou, primeiro negativamente e aos poucos tornou-se minha mola propulsora, já que amo um desafio. A vida, assim como a necessidade de sobrevivência me deixou sem possibilidades de me entregar à escrita por um bom tempo. Porém ela estava lá, latejante. A vontade de me comunicar, de gritar para o mundo o que eu via e o que eu sentia me cutucava diariamente. Havia algo a ser dito e eu queria falar.

Em algum momento cedi ao impulso e passei a escrever diariamente, fatos que me chamavam a atenção, histórias sobre pessoas e situações que eu observava, principalmente sobre o universo feminino. Mulheres que como eu, viviam suas vidas apesar das dificuldades e seus universos que me tiravam da zona de conforto. Mas, afinal existia alguma zona de conforto em mim? Talvez não, e exatamente isso que me conferia identidade. Então, viva o desconforto que me move.

Nasceram contos, poesias que ficaram muito tempo no HD do computador ou em papéis que começavam a amarelar. A princípio, não mostrei a ninguém por falta de coragem. Como poderia ser diferente se um dia, alguém colocou minha sensibilidade e minha forma de expressão no rol dos piores pecados?

Ainda bem que a gente amadurece. Ainda bem que existem espaços de fala como o “Feminário Conexões”. Salve a santa Internet que cada vez mais nos conecta.  

Com o amadurecimento, surgem a força e o amor próprio que nos fazem seguir no sentido contrário da mudez e do medo do julgamento. Força essa, que nasce na contramão do surgimento das rugas, e da quantidade crescente de velas nos bolos de aniversário. O amadurecimento traz o autorrespeito e escancara a magia fumegante da nossa potência: a potência de ser mulher.

Escolhi mostrar nessa primeira participação, o poema “O espelho” que deu origem a tudo isso, e depois de 20 anos, me conferiu o terceiro lugar, menção honrosa, no concurso do Celeiro Literário – Brasília. Esse concurso deu origem a coletânea -Tempos Adversos e me proporcionou a coragem de enviar meus poemas para o projeto Enluaradas, do qual aguardo ansiosamente, o primor de livro, intitulado "I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida”. Em alguns meses, sentirei a satisfação de realizar o lançamento do meu primeiro livro de poesias, O “Jardim dos Silêncios”, pela editora Viseu. 

Hoje, deixo que as palavras brotem, permito que fluam ganhando cada vez mais espaço em minha vida. No momento trabalho louca e apaixonadamente em meu primeiro romance, ainda com um nome provisório, “Dona Eugênia”. 

Agradeço a equipe organizadora desse blog e aproveito para a parabenizar a iniciativa, pois cada canal de fala, cada canal que permite a nossa expressão, permite trazer à tona o que nos move. Nossa genuína forma de ser e de estar no mundo.

Segue o poema que considero o ponto de virada da minha história.

 

O ESPELHO

Solidão. Veias secas.

O passado nada mais é que um peso morto sobre minhas costas frágeis.

Papéis em branco, aguçam a minha louca ânsia de escrever meu futuro

com a mesma segurança narcísica de quem escreve leis.

Hoje, só encontro manchas de sangue nas paredes do meu útero vazio.

Meus seios já não vertem mais o leite farto.

A dança do vento em minha direção brinca com as folhas mortas

intencionalmente queimadas do meu jardim.

Verti uma lágrima para cada uma delas...

Ouço teu olhar que me fala daquilo que envergonhado tu calas:

do teu suposto amor, da minha pseudosantidade que desprezei,

dos medos e perigos que procurei e que mesmo apavorada, por amor enfrentei.

Das preces que evitei...

Meu leito, minha morte.

Meu sorriso apagou-se na imagem da menina magra que morou no espelho.

Minhas bonecas quebradas riem-se de mim.

Meus sonhos tornaram-se minhas amarras e

como companhia que desprezo, tenho apenas anjos ociosos.

Os profundos sulcos em minhas mãos enganam a cigana experiente, linhas que

paradoxalmente, a cada ano tornam-se mais fortes enquanto meu corpo definha.

Consumo-me nas tramas que criei?

Tendência fatalista, é o que tu achas?

Que importa?

Quem lerá estas notas?

{Sandra A. Santos - Out//2002}

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Sandra A. Santos

Sandra A. Santos é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.


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