HISTÓRIA COLETIVA. / DE
MULHERES. / DE MENINAS.
Por Marta Cortezão
“Mulheres não são
pessoas no capitalismo, apenas corpos.”
(Silvia Federici, Folha
de S. Paulo-Uol, novembro,2023)
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Todos os dias, nos noticiários, nas mídias, nas
manchetes aterradoras, a morte nos lembra como o machismo mata e aterroriza mulheres
e meninas em uma violência crescente e assustadora. O Brasil é o 5º país que
mais mata mulheres no mundo. E, com infâmia, inscreve,
na perversa história desses brutais crimes, as marcas de um profundo ódio a esses
corpos femininos, devorados pelo utilitarismo e pela ganância de um mundo que vive
o capitalismo em seu extremo. Um mundo que consome a hipersexualização e a
objetificação de corpos femininos; um mundo que apavora pelo sexismo estrutural,
reforçando a discriminação baseada no sexo e/ou gênero e violando direitos
humanos, impedindo mulheres e meninas de desfrutarem de suas liberdades
fundamentais. Quando nossos corpos serão, de fato, nossos?
A garota voltava da escola, falou com um desconhecido
e desapareceu. Mais uma vida ceifada. Foi encontrada em um terreno baldio,
pedaços de seu corpo noticiados em imagens desfocadas no jornal do meio-dia. A
mesa estava posta, quase nem houve tempo de assimilar tantas notícias...
Homem segue mulher na parada do ônibus. Ela retornava,
à noite, do emprego de funcionária do lar. Era o suposto ex-marido. Consta que
ela o havia denunciado por ameaças de morte. Morreu desacreditada e sem apoio
do Estado. Vítima da violência das mãos do feminicida, deixou duas crianças que
agora são órfãs de seu cuidado maternal. Os restos mortais da vítima, de 36
anos, foram encontrados calcinados em um lixão da cidade.
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Adolescente é assediada no ônibus, a caminho da
escola. Transporte lotado. Ela deu alarme, mas não obteve apoio. O assediador era
um senhor bem-vestido, de terno e gravata, que se agarrou no discurso de homem
respeitável e pai de família abnegado. A menina desceu chorando seu desespero
na primeira parada que pôde. Alguém gravou a cena enquanto a adolescente
expressava sua angústia e a publicou nas redes sociais...
Senhora de 65 anos vai a óbito ao cair do quinto andar.
Suspeitas de um relacionamento tóxico e suas consequências depressivas. Ela envolveu-se
com um rapaz pelas redes sociais. Ele foi ganhando sua confiança, também o
acesso à sua conta bancária, à sua casa, à sua vida. Enfim, um caso a ser
investigado, diz a polícia, meio desacreditada de encontrar uma prova cabal. Mas
há fortes indícios de suicídio...
Mulheres e crianças são as maiores vítimas da guerra. Deu
também nos noticiários, mas “deu”/bateu mais forte em minhas carnes. O que faço
com esta impotência em meu corpo? Com essa dor, faca afiada e fria da morte,
prestes a atravessar a jugular? Agora mesmo não tenho nem forças nem disposição
racional para continuar falando sobre este tema, mas o feminicídio grita em
todos os lados. Está escancarado nas janelas do mundo. É preciso sair da apatia
social que aliena mentes, é preciso enxergar, do contrário, nos tornamos
cúmplices e culpadas, porque nossa passividade tem implicações morais.
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Um corpo frio sobre a pedra do necrotério. Um corpo não
identificado. Uma notícia tão corriqueira que quase ninguém se sensibiliza. Há
muita pressa, há coisas mais importantes para se ocupar. Por quê? Onde? Quando
perdemos a nossa empatia? Nossa capacidade de comoção? De nos importarmos com a
vida de nossas iguais?
Um corpo que é coletivo, mas que não nos pertence. A
essas mulheres, a essas meninas que vivem na mira da misoginia de uma sociedade
patriarcal que objetifica nossos corpos em prol do lucro e do capital. Em uma
sociedade onde não somos pessoas, apenas corpos. Apenas números na crescente lista
da vergonha que, a cada fração de segundo, pode ganhar mais uma vítima fatal. A
escritora Rosangela Marquezi, de Pato Branco, no poema Coletivo Corpo,
de seu livro (In)certas Escreveduras (Editora Medusa, 2023), faz uma abordagem
direta sobre este tema. Escancara nossas dores e agruras ao descrever o poema:
Coletivo Corpo
O corpo estava ali.
Nunca fora seu, era coletivo.
O pai mandara se cobrir.
O marido mandara se abrir.
E a ela ninguém ouviu.
E a ela ninguém sequer viu.
História coletiva.
De mulheres. De meninas.
Correntes que não se quebram.
Sinas que não se desfazem.
Seu corpo estava ali.
Nunca fora seu, nem agora.
Na mesa fria da necropsia.
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O corpo de uma mulher jaz inerte “na mesa fria da
necropsia”. Em vida, já havia sido despojado das vontades, da dignidade, de
tudo – inclusive de sua autonomia. Um corpo que alcança o extremo da
objetificação na análise póstuma. Um corpo feminino submetido às expectativas e
imposições sociais. Um corpo frio “que estava ali”, mas “nunca fora seu, era
coletivo”. Um corpo que compartilha a infeliz ventura da história triste de tantas
mulheres, vítimas da violência machista, engrossando a lista de mortes de
inúmeros corpos de mulheres e meninas subjugados pela sociedade.
O pai, figura que representa a moral e os bons
costumes, ordena que a filha se resguarde, que se cobra, que se comporte como
uma mulher deve se comportar em uma sociedade patriarcal. O marido, proprietário
e beneficiário desse corpo, ordena que ela se abra, que sirva a seus instintos,
a seus desejos irrefreáveis. Tanto o pai quanto o marido – figuras de ordem – representam
a imposição das normas masculinas sobre este corpo individual feminino. A ela, o
corpo anônimo e invisibilizado, que jaz frio em uma mesa de necropsia, resta a
negação de seus desejos e sonhos pela sociedade patriarcal falocêntrica. Resta-lhe
a história da negligência de mulheres e meninas abandonadas à ausência da
própria voz, da própria existência.
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A noção de “História coletiva. / De mulheres. / De
meninas” revela os fatos que se repetem, mudando apenas as vítimas das inúmeras
tragédias das narrativas cruéis do cotidiano. São histórias que se entrelaçam
nas “Correntes que não se quebram. / Sinas que não se desfazem”. É uma história
viciosa que fortalece as relações de poder historicamente patriarcais destacando
a universalidade dessas experiências e lutas e sugerindo a persistência de
padrões restritivos ao longo do tempo. O poema alcança seu ápice no verso “Na
mesa fria da necropsia”, encerrando uma reflexão contundente sobre a opressão
sistêmica enfrentada pelas mulheres. Melhor não poderia dizer eu! Digo
apenas que sempre é tempo de construir algo novo!
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Silvia Federici afirmou, em uma entrevista que assisti
recentemente, que quando perdemos a ilusão, sentimos a necessidade de fazer
algo novo. E é colocando a esperança nos coletivos que a luta se fortalece. A
luta de mulheres sempre esteve nesse ponto zero: ponto onde se perde a ilusão. Mas
que este ponto seja não apenas de resistência, mas também de luta e de
transformação social. Não queremos morrer todos os dias. Queremos seguir vivas!
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Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski) |
Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que acredita a literatura tem o poder de modificar vidas... Nas poucas horas vagas escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. Faz parte da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR, onde também é Professora de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).