CONTE-ME UM CONTO/04
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GATE 36
Por Marta Cortezão
No saguão do aeroporto, sentada à
espera do voo que me devolveria de volta ao Amazonas, meus sentidos, atordoados
pela espera, capturam a realidade à minha volta e dão um pouco de colorido
emocional ao tédio das longas horas que se arrastam preguiçosamente... tanta
gente, tantas pernas ziguezagueando diante de mim, pernas bem torneadas, outras
nem tanto, outras curvadas pelo peso da idade, outras ainda cheias de vigor, de
vida, umas e outras bem tuíras, meio cor canela de urubu, até que um cremezinho
Nívea não cairia mal! outras estilo Garrincha, porque sim... Eita! E essas que
passam levando uns glúteos tão bem definidos, talvez na academia à custa de
muito suor! Ou não, quem sabe a boa genética lhes tenha em total apreço…
talvez. Acho que preciso levar mais a sério a academia, sinto que, quando dou
um tchauzinho, estilo princesa Kate Middleton, meu tríceps também se despede...
Quantos narizes pendurados em
rostos de tantas raças que aqui se misturam no portão de embarque 36 de Viena!
Uns, estilo Mozart, outros, pontiagudos, arrebitados, que parecem crescer a
cada pausa de minha espera, mas o meu e o de uma outra senhora, à minha frente,
são bem similares, aplanados e têm protuberantes asinhas para combinar com o
voo que se espera, coisas do destino, vamos dizer assim, porque tenho a
cansativa mania de amarrar todos os cabos soltos, como uma boa virginiana que
sou e que acaba de entrar na Era de Aquário... O relógio marca 3h06 da tarde
primaveril austríaca... 3 mais 6 são 9, um bom número, simboliza a luz interior,
prioriza ideais e sonhos, experienciados mediante às emoções e à intuição;
representa a ascensão a um grau superior de consciência e a capacidade de sair
pelo mundo espalhando amor aos outros.... Claro, vai que por culpa de qualquer
fio solto, a incoerência do tal destino coloque um ponto final à vida… uma
turbulência... sei lá… nunca se sabe! Espero que a última mão que eu segure
forte, em clima de despedida, seja pelo menos de um passageiro bonitão..., só
porque lembrei de Belchior cantando “foi por medo de avião/que eu segurei/pela
primeira vez a tua mão”... Bem, melhor nem pensar nisso!
Um senhor elegantemente vestido,
charmoso até, se senta em uma das cadeiras de descansar nádegas cansadas de
passageiros, abre a pasta de empresário, retira um tablet e põe cara de
homem de negócios conectado com o mundo das finanças, parece super concentrado,
até que passam diante dele umas pernas torneadas com umas leggings super
coladas... assim que os olhos do businessman se esticam para apreciar as
passantes pernas e, no caminho de volta, seu olhar esbarra com o meu, e
rapidamente nossos olhos serelepes e desorientados desviam a direção, como se
fôssemos nos comprometer naquele encontro visual... uma sensação estranha,
égua! Ficamos nessa lenga-lenga umas quantas vezes, havia uma sensação nítida
de que eu era a raposa e ele, as uvas, até desejei um beijo roubar, mas nenhum
de nós tinha laquê no cabelo... O que diria Reginaldo Rossi disso?
De repente, meus sentidos foram
sequestrados pelos ósculos ardentes do jovem e assanhado casal beijoqueiro
sentado a meu lado, eram beijos estalados e sussurros ao ouvido, com direito a
cafungadas no cangote... essas coisinhas que animam o espírito das diabruras de
quem se sente alcançado pelo “fogo que arde sem se ver”... Nisso, um rapaz bem
engomadinho e engravatado avisa, via megafone, num inglês britânico, que dentro
de bilhões de segundos o embarque se iniciaria. Rummm, pra que, maninha?
Aqueles passageiros do gate 36 imediatamente avançam em marcha, em
movimentos mecânicos, como se fossem saúvas cortadeiras, carregando cada uma
seu quinhão de folha. Que saco! me vejo obrigada a abandonar meu confortável
lugar de espera, justo quando o clima erótico começava a esquentar... Fui me
reunir às outras companheiras saúvas da gigantesca fila. A saúva da minha
frente tinha um pescoço que pedia beijo, juro!... Cruzes! Acho que aquele jovem
casal me contagiou de amores..., mas não vou me render a esse louco e
convidativo pedido, nego-me terminantemente, não estou aqui para isso!... E se
estivesse? “Ah, para com isso, boba, o universo deseja a sua felicidade!”, me
repetiu aquela vozinha amiga interior que sempre me anima para o pecado. Bem
que seria uma boa ideia... as horas passariam até mais rápidas e prazerosas! E
se eu tropeçasse em minha pequena folha de 10 kg e caísse esparramada nesse
saúvão da frente?! Ai, melhor esquecer isso.
Passeio os olhos e vejo meu ex
sentado, abraçando a namorada, ela dormindo apoiada em seu ombro e ele roçando
carinhosamente seu rosto ao dela... Que cretino! Nunca me fez um carinho assim
e sequer me abraçou tão apaixonadamente em público... Prefiro admirar o amor do
jovem casal que continua sentado praticando a religião dos ósculos ardentes e
que agora mesmo tem braços e pernas entrelaçados... Como eles podem ser tão
flexíveis assim?! Claro, o amor é flexível, não precisa ser forte, basta ser dócil,
complacente e transigente... Não! já basta a longa espera, nada de fazer
conexão com a filosofia, né, maninha!? Caramba, não é meu ex, mas o primo dele,
tenho certeza, claro, o primo foi sempre mais bonito e mais carinhoso, é isso
mesmo! Sempre gostei do primo, mas como ele nunca me deu bola, fiquei com o
arigó do Gerisney para fazer ciúmes e deu no que deu, afff! Se arrependimento
matasse, já havia retornado ao pó, segundo o Gênesis, amém! Estava tudo muito
claro para mim, como pude me enganar! O primo do meu ex e a namorada saem
abraçados, como dois pombinhos, e juntam-se às outras saúvas que aguardavam a
entrada na monstra fila rumo ao formigueiro alado.
Nossa! Não acredito! Tem um viking
lindo, na fila ao lado, cheio de barbaridades no olhar e outra vez acontece a
mesma coisa estranha que sucedeu com o businessman: nossos olhares se
encontram e outra vez saem correndo espavoridos para ensimesmarem-se nas
respectivas e assanhadas entranhas... Mas deu tempo de sentir o viçoso verde
daqueles olhos... Meu cartão de embarque foi ao chão juntamente com o
passaporte, nos agachamos quase ao mesmo tempo, foi como se estivéssemos apenas
nós dois, tudo acontecia na Era de Aquário, no compasso de minha respiração
ofegante, nossas mãos se tocaram, meu coração acelerou... Aquela barba bem
povoada, tão bem feita, deixando aqueles lábios rosados e carnudos em
destaque... Ele sorriu, ficamos meio atrapalhados porque nos chocamos de leve,
enquanto Elvis Presley cantarolava Oh my love, my darling/ I’ve hungered for
your touch... De repente, estávamos nas ilhas Maldivas, duas taças de
vinho, um jantar especial, ele chegando vestido com uma saia atrevidamente
escocesa (sim, foi um equívoco, ele não era um viking, como disse
antes), se aproximando com um lindo sorriso na boca, voz grave, sedutora, seus
braços com sede de entrelaçar-me apetitosamente, vinham em minha direção,
aquela fragrância máscula inebriando-me os sentidos, desde seus quase dois
metros de altura (eu suspirando enxerimentos) para dizer-me... “Senhora, faça o
favor de andar, o embarque já começou!”. Abandono meu louco devaneio “p” da
vida! Essas saúvas mecânicas não sabem viver o prazer da espera!
(Marta Cortezão, In: Entre linhas,
memórias e outras passagens [livro eletrônico] / Organizado por Letícia
Pinto Cardoso. - Manaus : Edição do Autor, 2021. Link de acesso https://drive.google.com/file/d/1nvT8MoNSWtgRWJY-__4V8iqzqQMgG9ek/view )