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quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

CONTE-ME UM CONTO: GATE 36




CONTE-ME UM CONTO/04


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GATE 36

Por Marta Cortezão

 

No saguão do aeroporto, sentada à espera do voo que me devolveria de volta ao Amazonas, meus sentidos, atordoados pela espera, capturam a realidade à minha volta e dão um pouco de colorido emocional ao tédio das longas horas que se arrastam preguiçosamente... tanta gente, tantas pernas ziguezagueando diante de mim, pernas bem torneadas, outras nem tanto, outras curvadas pelo peso da idade, outras ainda cheias de vigor, de vida, umas e outras bem tuíras, meio cor canela de urubu, até que um cremezinho Nívea não cairia mal! outras estilo Garrincha, porque sim... Eita! E essas que passam levando uns glúteos tão bem definidos, talvez na academia à custa de muito suor! Ou não, quem sabe a boa genética lhes tenha em total apreço… talvez. Acho que preciso levar mais a sério a academia, sinto que, quando dou um tchauzinho, estilo princesa Kate Middleton, meu tríceps também se despede...

Quantos narizes pendurados em rostos de tantas raças que aqui se misturam no portão de embarque 36 de Viena! Uns, estilo Mozart, outros, pontiagudos, arrebitados, que parecem crescer a cada pausa de minha espera, mas o meu e o de uma outra senhora, à minha frente, são bem similares, aplanados e têm protuberantes asinhas para combinar com o voo que se espera, coisas do destino, vamos dizer assim, porque tenho a cansativa mania de amarrar todos os cabos soltos, como uma boa virginiana que sou e que acaba de entrar na Era de Aquário... O relógio marca 3h06 da tarde primaveril austríaca... 3 mais 6 são 9, um bom número, simboliza a luz interior, prioriza ideais e sonhos, experienciados mediante às emoções e à intuição; representa a ascensão a um grau superior de consciência e a capacidade de sair pelo mundo espalhando amor aos outros.... Claro, vai que por culpa de qualquer fio solto, a incoerência do tal destino coloque um ponto final à vida… uma turbulência... sei lá… nunca se sabe! Espero que a última mão que eu segure forte, em clima de despedida, seja pelo menos de um passageiro bonitão..., só porque lembrei de Belchior cantando “foi por medo de avião/que eu segurei/pela primeira vez a tua mão”... Bem, melhor nem pensar nisso!

Um senhor elegantemente vestido, charmoso até, se senta em uma das cadeiras de descansar nádegas cansadas de passageiros, abre a pasta de empresário, retira um tablet e põe cara de homem de negócios conectado com o mundo das finanças, parece super concentrado, até que passam diante dele umas pernas torneadas com umas leggings super coladas... assim que os olhos do businessman se esticam para apreciar as passantes pernas e, no caminho de volta, seu olhar esbarra com o meu, e rapidamente nossos olhos serelepes e desorientados desviam a direção, como se fôssemos nos comprometer naquele encontro visual... uma sensação estranha, égua! Ficamos nessa lenga-lenga umas quantas vezes, havia uma sensação nítida de que eu era a raposa e ele, as uvas, até desejei um beijo roubar, mas nenhum de nós tinha laquê no cabelo... O que diria Reginaldo Rossi disso?

De repente, meus sentidos foram sequestrados pelos ósculos ardentes do jovem e assanhado casal beijoqueiro sentado a meu lado, eram beijos estalados e sussurros ao ouvido, com direito a cafungadas no cangote... essas coisinhas que animam o espírito das diabruras de quem se sente alcançado pelo “fogo que arde sem se ver”... Nisso, um rapaz bem engomadinho e engravatado avisa, via megafone, num inglês britânico, que dentro de bilhões de segundos o embarque se iniciaria. Rummm, pra que, maninha? Aqueles passageiros do gate 36 imediatamente avançam em marcha, em movimentos mecânicos, como se fossem saúvas cortadeiras, carregando cada uma seu quinhão de folha. Que saco! me vejo obrigada a abandonar meu confortável lugar de espera, justo quando o clima erótico começava a esquentar... Fui me reunir às outras companheiras saúvas da gigantesca fila. A saúva da minha frente tinha um pescoço que pedia beijo, juro!... Cruzes! Acho que aquele jovem casal me contagiou de amores..., mas não vou me render a esse louco e convidativo pedido, nego-me terminantemente, não estou aqui para isso!... E se estivesse? “Ah, para com isso, boba, o universo deseja a sua felicidade!”, me repetiu aquela vozinha amiga interior que sempre me anima para o pecado. Bem que seria uma boa ideia... as horas passariam até mais rápidas e prazerosas! E se eu tropeçasse em minha pequena folha de 10 kg e caísse esparramada nesse saúvão da frente?! Ai, melhor esquecer isso.

Passeio os olhos e vejo meu ex sentado, abraçando a namorada, ela dormindo apoiada em seu ombro e ele roçando carinhosamente seu rosto ao dela... Que cretino! Nunca me fez um carinho assim e sequer me abraçou tão apaixonadamente em público... Prefiro admirar o amor do jovem casal que continua sentado praticando a religião dos ósculos ardentes e que agora mesmo tem braços e pernas entrelaçados... Como eles podem ser tão flexíveis assim?! Claro, o amor é flexível, não precisa ser forte, basta ser dócil, complacente e transigente... Não! já basta a longa espera, nada de fazer conexão com a filosofia, né, maninha!? Caramba, não é meu ex, mas o primo dele, tenho certeza, claro, o primo foi sempre mais bonito e mais carinhoso, é isso mesmo! Sempre gostei do primo, mas como ele nunca me deu bola, fiquei com o arigó do Gerisney para fazer ciúmes e deu no que deu, afff! Se arrependimento matasse, já havia retornado ao pó, segundo o Gênesis, amém! Estava tudo muito claro para mim, como pude me enganar! O primo do meu ex e a namorada saem abraçados, como dois pombinhos, e juntam-se às outras saúvas que aguardavam a entrada na monstra fila rumo ao formigueiro alado.

Nossa! Não acredito! Tem um viking lindo, na fila ao lado, cheio de barbaridades no olhar e outra vez acontece a mesma coisa estranha que sucedeu com o businessman: nossos olhares se encontram e outra vez saem correndo espavoridos para ensimesmarem-se nas respectivas e assanhadas entranhas... Mas deu tempo de sentir o viçoso verde daqueles olhos... Meu cartão de embarque foi ao chão juntamente com o passaporte, nos agachamos quase ao mesmo tempo, foi como se estivéssemos apenas nós dois, tudo acontecia na Era de Aquário, no compasso de minha respiração ofegante, nossas mãos se tocaram, meu coração acelerou... Aquela barba bem povoada, tão bem feita, deixando aqueles lábios rosados e carnudos em destaque... Ele sorriu, ficamos meio atrapalhados porque nos chocamos de leve, enquanto Elvis Presley cantarolava Oh my love, my darling/ I’ve hungered for your touch... De repente, estávamos nas ilhas Maldivas, duas taças de vinho, um jantar especial, ele chegando vestido com uma saia atrevidamente escocesa (sim, foi um equívoco, ele não era um viking, como disse antes), se aproximando com um lindo sorriso na boca, voz grave, sedutora, seus braços com sede de entrelaçar-me apetitosamente, vinham em minha direção, aquela fragrância máscula inebriando-me os sentidos, desde seus quase dois metros de altura (eu suspirando enxerimentos) para dizer-me... “Senhora, faça o favor de andar, o embarque já começou!”. Abandono meu louco devaneio “p” da vida! Essas saúvas mecânicas não sabem viver o prazer da espera!

 

(Marta Cortezão, In: Entre linhas, memórias e outras passagens [livro eletrônico] / Organizado por Letícia Pinto Cardoso. - Manaus : Edição do Autor, 2021. Link de acesso https://drive.google.com/file/d/1nvT8MoNSWtgRWJY-__4V8iqzqQMgG9ek/view )




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