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sexta-feira, 29 de agosto de 2025

FLORATTA DA PELE - CONTO DE ISA CORGOSINHO

Floratta da pele          

Por Isa Corgosinho


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Nasci com as narinas abertas ao mundo. Antes de experimentar o leite materno, já sabia seu gosto, que me entrava pelas narinas desde o ventre. Antes de começar a falar, já conhecia o alfabeto do olfato. Lembro-me que sentia vontade de chorar todas as vezes que meu pai se aproximava para me beijar o rosto. O cheiro ácido do hálito dele causava-me dissonância olfativa, perturbava-me o coração a sensação de perigo e farpas. Como se algo cruel fosse acontecer com ele antes que me tornasse adulta.

Mas essas sensações ruins duravam pouco, bastava segurar suas mãos, trazê-las próximas ao nariz: cheiravam terra fresca, úmida e fértil. Sentia-me protegida segurando aquelas mãos. Na infância, quando sentia medo ou dor, buscava o colo materno, alçando minhas narinas até estreitá-las nas axilas quentes, suadas da minha mãe. O cheiro inspirado nutria-me de segurança e ternura.

Os melhores momentos da infância e adolescência foram aqueles vivenciados no sítio dos meus avós paternos. Tudo ali tinha cheiro próprio, individualizado. Minha avó tinha enormes canteiros de ervas, flores, leguminosas, verduras. Eu costumava ficar brincando por ali, e voltava com pequeninos buquês de ervas para presentear os adultos. O meu alfabeto olfativo escolhia o buquê de acordo com cada pessoa ou as pessoas eram escolhidas pelos temperamentos das ervas.

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A mãe era um buquê formado por lavanda, bejoim, angélica, cascara sagrada e abre-caminho. O pai era um buquê de funcho, alecrim, manjericão, espinheira santa, espada de São Jorge e pau ferro.

A avó tinha o buquê mais especial para meu olfato: o cheiro exalado por ela era de um tempo insubmisso aos relógios. Um buquê ancestral, que eu descobrira nas noites que passara acometida por febre, aconchegada em seu colo.  A avó era um buquê de jurubeba, alfazema, arruda, graviola, centelha asiática, espinheira santa, melissa e guiné. O buquê do avô, homem que falava com os bichos e sabia imitar passarinhos, era um conjunto de notas harmônicas: chapéu de couro, maracujá, salsaparrilha, graviola, hibisco, dente de leão, guiné, palo santo, espada de São Jorge e arruda.

 As primas cheiravam a buquês de folhas de frutos e ervas: carobinha, alcachofra, douradinha, pitanga, abacateiro, jabuticaba, jambolão, sete sangria, colônia, samambaia e mangueira. Os primos cheiravam a funcho, erva de bugre, parreiras, chá verde, carambola, boldo, comigo ninguém pode.

Eu, que tinha o olfato mais apurado que todos,  não conseguia sentir meu próprio cheiro. Costumava cheirar minhas toalhas, roupas, sapatos; esfregava meu nariz na pele, puxava meus cabelos até as narinas, soprava meu hálito nas mãos, mas nada sentia, não tinha cheiro. Já adolescente pedi para minha mãe descrever o meu cheiro. Ela relembrava que, quando eu era bebê, só usava talco em meu corpo quando fazia muito calor para evitar assaduras. Dizia que do meu corpo exalava essência de baunilha pela manhã, à tarde cheirava a pêssego e à noite, flor de laranjeira.

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Depois que cresci, dizia ela, exalo ora sândalo ora limão siciliano por onde passo, mas eu não consigo senti-los. Peguei o hábito de carregar na bolsa óleos essenciais dessas fragrâncias para me sentir perfumada e esquecer a pele inodora. Como não sentia meu cheiro, resolvi criar minhas próprias fragrâncias:  Flor de íris e petúnia, maravilha (Mirabilis jalapa), jasmim manga. Assim, à medida que me tornava adulta, ia compondo os meus cheiros, odores.

O pequeno sítio dos meus avós, que ficava dentro de uma grande área quilombola, era nossa segunda casa. Todo ano passávamos parte das férias, Natal e Ano Novo no sítio, precisávamos aproveitar a companhia deles.  Eu, mais que qualquer outra pessoa, amava voltar ao sítio, era uma espécie de reconexão com as fragrâncias da terra.

Até então não conhecia o odor da violência, mas ele estava sempre soprando naquela região. Ali havia muitos conflitos, principalmente com a polícia, os grileiros e os capangas dos fazendeiros, todos eles cobiçosos pelo minério no subsolo do quilombo.

A boa notícia de fim de ano era a entrega das escrituras definitivas aos cidadãos  quilombolas. Meus avós faziam parte dessa comunidade. Entre eles, havia uma espécie de escambo com os produtos que cada família produzia, por isso raramente dependiam dos produtos da cidade. O que sobrava do escambo era vendido nas feiras. As ervas da avó perfumavam tudo ao redor. Levavam perfume e cura às feridas abertas pelo gás carbônico na atmosfera das cidades.

Na semana seguinte à entrega das escrituras, as famílias organizaram uma grande festa com música, muita comida e alegria abundante. Tinha até fogueira, assamos milho, batata doce. Era época de lua cheia, e brincamos à luz da lua até cansar!  As crianças e os mais velhos foram dormir logo depois da ceia coletiva, e os demais ficaram ali tocando, cantando, dançando e bebendo.

Fomos acordados antes de raiar o dia com os gritos das mulheres.  Capangas haviam invadido o terreiro do quilombo e atirado covardemente contra os homens em festa! Meu pai foi ferido superficialmente no ombro e na perna, mas meu avô tombou sem vida. A polícia e os bombeiros tardaram a chegar, resultando em mais vítimas.

Além das mortes de muitos quilombolas, as patas dos animais destruíram tudo que encontraram pela frente. Fiquei imobilizada quando senti o cheiro dos excrementos dos cavalos sobre as plantações.  Galoparam em desatino com a ferocidade das cargas em seus dorsos, submetidos à selvageria da invasão.

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     Meu olfato me levou às imagens: os olhares amedrontados, desesperados dos animais estavam impressos no fedor de suas fezes. Abri um parêntese e pensei com a convicção do meu olfato: só um ser de extraordinária grandeza poderia ter criado um animal com a potência de um cavalo, com o sentimento incondicionalmente amoroso de um cão e a intuição afiada de um gato. Pensei e arrematei: a dívida com a cavalaria era inafiançável. O ar entorpecido do quilombo devastado cheirava a enxofre. Os capangas haviam deixado um rastro de metilmercaptano, capaz de adoecer o olfato do mundo.  

A persistência desse odor, impregnado em nossa memória, nutriu a nossa geração na luta para punir os assassinos. Alguns mandantes continuam impunes, mas os capangas estão secando moribundos nas ferragens da prisão. O cheiro de sangue nas roupas do meu pai adoeceu por muito tempo o meu olfato. Confeccionei um pequeno patuá com as ervas de sua alma: a espinheira santa, a espada de São Jorge e o pau ferro ficariam junto ao seu peito, para que ele se curasse do trauma, das maldades e feridas do chumbo.

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Cobrimos o corpo do meu avô no caixão com as flores do seu buquê, aquele que eu havia composto para ele. Mas tinha um cheiro que repercutia suas notas em nossas narinas, exalava de uma madeira sagrada peruana:  meu avô nos mandava dizer que seu períspirito estava envolto pela atmosfera do Palo Santo. Essa fragrância dos xamãs acalmara nossos corações.

O quilombo nunca se recuperou  completamente da tragédia. Levamos nossa avó para morar conosco na cidade. Fiz para ela um pequeno canteiro com as ervas do seu buquê, em jardineiras na varanda.  Mesmo triste, minha avó trouxe alegria à nossa casa.

Aos 35 anos me apaixonei pra valer, a paixão viera como um torvelinho. Meu corpo envaidecido transpirava a vitalidade dos hormônios. Enfim, minha pele exalava uma fragrância tão especial e envolvente que a batizei floratta!

E com esse poema olfativo dou boas-vindas ao amor.

 

Floratta da pele

 

Com o nariz percebi no rebanho _ imemorial savana _

que existe um homem diferente de outro

Com ele te farejo nas suadas aglomerações das metrópoles

cada homem tem um cheiro que se distingue dos outros

 

Eu corria seguindo suas pistas

estepes cavernas florestas montanhas

cidades motéis mares hospitais

cinemas bibliotecas bares becos

asfaltos ruas jardins

 

Os cheiros aspergidos pelas estações

logo dizem sem equívocos

aquele que interessa tocar

 

Outono inverno verão

Eis que o encontro

PRIMAVERA!

ele havia me chamado

com seu cheiro

no meio de todos

os cheiros

ouço seu sôfrego chamado de amor

com o nariz consigo

aspirá-lo inteiro!

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Arquivo da autora

ISA CORGOSINHO é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024), Eros e Thanatos em Plenos Pecados (TAUP,2025). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

terça-feira, 19 de agosto de 2025

ATÉ OS CONFINS DA TERRA, CONTO DE SANDRA GODINHO

                        Até os confins da terra

                                        Por Sandra Godinho


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Nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas de como se partia dela.

Éramos nós que fazíamos o trabalho do qual muitos nutriam asco. Não era sujo, como alegavam, mas imprescindível. Aguardávamos a total imobilidade dos movimentos, os últimos estertores, a cessação do sangue e de todo o complexo de imunidade que carregavam em vida para os micróbios poderem atuar, os primeiros a surgir com prerrogativas autônomas.

As bactérias das vísceras entravam logo em ação, formando gases, fazendo as entranhas incharem para decompor o que até então tinha sido vida, um passo por vez. A cada etapa, o odor nauseabundo, exageradamente adocicado, liberado pelo morto, encurtava os limites entre os seres, entre o que é e o que já não é mais, atraindo as moscas varejeiras, as próximas a chegar para o banquete indigesto, fazendo brotar delicadezas que poucos viam, devolvendo o finado ao corpo sólido que sempre o sustentou, a terra.

Assim a sombra da saudade descia, fazendo perder os traços de rispidez de alguém que, em vida, era só rezingues, destratos e descasos. Desse modo, carne e pó se misturavam e o tempo entrava em outro tempo, quando o solo podia conversar em intimidades com aquele que lhe pisou por anos. Perdia-se, do corpo, as palavras frias, a expressão de severidade, as rusgas e as reminiscências ressentidas. Podia mesmo afirmar que era, com nosso auxílio, que um morto ganhava ares de santidade, procedendo à passagem despudorada de um mundo ao outro.


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As bactérias sempre foram agentes atuantes, nunca recusavam trabalho ou esforço. Dos intestinos, passavam aos tecidos circundantes, fígado e baço, não tanto pelas enzimas abundantes nestes órgãos, mas porque era preciso devorar de dentro para fora, do âmago para a superfície, das vísceras até a pele para um trabalho bem feito. A pele sempre foi casca, um invólucro banal, já os órgãos eram o cerne, sintetizadores da miséria humana, o amargor de uma existência..


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Coração e cérebro forneciam maior quantidade de água para os ovos recém-postos das moscas varejeiras que, em breve, eclodiam em larvas para, em seguida, digerirem pele e veias em ritmo cadenciado, liquefazendo os tecidos que acabavam escapando pelos orifícios do corpo. O finado ia ganhando um tom multicor, a palidez extrema passando ao esverdeado e, em seguida, ao acinzentado, um arco-íris de cores pré-determinadas. Um corpo morto era pleno de vida, inchando, inchando sempre, ganhando volume, com as larvas virando novas moscas, as novas moscas originando novas larvas que atraíam besouros, ácaros, formigas, vespas, aranhas, pássaros e urubus; um trabalho coletivo onde cada espécie visitava e despia o corpo um pouco mais, em verdadeiro processo de purga e despedida até chegar a vez dos animais mais complexos. Não havia hierarquia a ser respeitada. Era o caos. Mas é sempre o caos em terra devassada, não é verdade? Todos querem o melhor naco de carne, o maior pedaço, e ninguém se entende.

*** 

  Não vai botar fogo no corpo?

− Pra quê?

− É um Yanomami, vc sabe que eles costumam incinerar o corpo para passar para o mundo dos mortos.

− Tá me achando com cara de despachante, arigó?

− Tô não, senhor. É que ...

− Além do mais, fazer fumaça nessa clareira é entregar nossa localização. Tu quer ser preso, por acaso?

− Não, senhor.

− Então pega a pá e me ajuda a cavar que a fedentina tá insuportável. O que importa é que esse aqui não vai mais dar trabalho pra gente. Vamos sair desse buraco com os bolsos cheios de ouro e sem yanomami pra atrapalhar.

− O infeliz deve ter morrido de desnutrição, tão magrinho que faz pena.

− Ou contaminado de mercúrio, ou de malária. Que importância tem isso agora, arigó? Faz logo o que tem de fazer e cala a boca, senão te encho de porrada e você acaba como ele.

***

Era verdade: nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas de como se partia dela.


 Obs: Este conto integra o livro de contos "O negro Secou", publicado pela editora Litteralux e foi menção honrosa no prêmio Cidade de Manaus 2024.

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Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

terça-feira, 24 de junho de 2025

COM QUANTAS ESTAÇÕES SE FAZ UMA MULHER, CONTO DE ISA CORGOSINHO

 C O M   Q U A N T A S   E S T A Ç Õ E S   S E   F A Z   U M A   M U L H E R

POR Isa Corgosinho

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Depois do estupro, fui expulsa de casa após a denúncia que fiz contra meu pai. Morei por algum tempo na casa de uma prima, que veio do norte com minha mãe, ainda solteira. Depois que atingi a maioridade, aluguei um quarto de pensão com uma amiga. Abandonei a escola antes de concluir o 3º ano do Ensino Médio e dela só guardei um livro porque amava o título A hora da estrela. Faria da minha o inverso da vida da protagonista.

PRIMAVERA

Na primavera da minha vida, qualquer noitada regada à cerveja no bar, presentes como bijuterias, roupas, maquiagem, caixas de chocolate eram suficientes para que eu fizesse as vontades dos homens, meu corpo jovem e as mentiras sussurradas no escuro aumentavam a macheza deles. Eu os fazia supor a minha entrega e submissão, enquanto na verdade só estava manipulando a vaidade masculina, toda concentrada no pau e no poder: sim, senhor! Na verdade, pra mim, eram corpos anônimos, sem faces. Páginas viradas do meu folhetim.

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No início, aquele ganho me bastava para o aluguel, a comida, as drogas baratas como o álcool, a maconha e o cigarro. A escola ficou cada vez mais distante, trouxe comigo de casa um book de fotografias, que a minha mãe pagou em cinco vezes, quando cismei que poderia ser modelo. Agora ele serve para atrair meus clientes. Além da escola, deixei minha mãe, meus cinco irmãos pequenos e o alcoólatra carioca desalmado, que me violentou.

Não era difícil encontrar homens que pagassem por um programa com uma jovem de 18 anos, os aplicativos serviam principalmente pra isso. A maioria das mulheres que usa esses aplicativos busca encontrar um par perfeito, mas boa parte delas já sofreu golpes e desenganos. No meu caso, logo no primeiro encontro, apresento minha tabela de preços e as opções de prazer.

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VERÃO

Marco o longo verão da minha vida quando fiz programas com homens de vários estados, afinal moro na cidade maravilhosa, reduto do turismo sexual. Os conterrâneos são metidos a espertos, botam banca, descolados, bronzeados, narcisistas e vivem pedindo desconto pelas transas, só gostam deles mesmos. Na zona sul, ainda é possível encontrar uns caras que querem imitar o Vinicius de Moraes e por isso são galanteadores, falam pelos cotovelos, contam vantagens, são ligeiros e dançantes, superficiais, curiosos e, principalmente, mentirosos, gostam de me comer tomando uísque e ouvindo bossa nova.

Já os paulistanos são desbotados, discretos à primeira vista, ansiosos e pragmáticos, agem com  disciplina calculada, gostam de shopp gelado nos quiosques à beira mar, tomar café em livrarias e de ler tudo que lhes apetece, inclusive meu olhar, meus gestos, emitem gemidos prolongados na hora do sexo oral, pagam o valor da tabela sem reclamar. Não sei qual a motivação, mas gosto de transar com os mineiros, chegam de mansinho, suaves e com uma timidez calculada, são astutos, desconfiam até do próprio reflexo no espelho. Sinto neles o cheiro das montanhas, têm gosto de minério na boca, a pele cheira a café coado, os pelos fazem cócegas na gente. Falam pouco, mas gostam muito de transar, trepam muito bem! Me tratam como se estivessem com a garota de Ipanema, mas são avarentos, não pagam um centavo a mais pelo serviço prestado. Alargando os adjetivos são conservadores, mesmo os que se acham descolados, e, não raramente, hipócritas, masculinidade frágil.

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Os gaúchos merecem um parágrafo à parte. Conheci alguns de diferentes idades, mas todos eles gostam de transar de botas, não olham para meu rosto, gostam de cavalgar sobre o meu corpo, o hálito é impregnado de chimarrão, os suores escorrem e têm cheiro de carne crua. Das conversas rápidas, só me recordo da frase: fique de quatro, guria! Acho que nunca me casaria com um gaúcho, pra mim eles representam o suprassumo da masculinidade frágil.        

Poderia ficar aqui falando da subjetividade geográfica masculina, mas não mudaria em nada a moldura patriarcal e a masculinidade frágil que, invariavelmente, a quase todos configura,  (além disso, a autora não aprecia textos muito longos). Por isso sempre penso nessa profissão como temporária, é um investimento que faço, enquanto vou curando meus traumas e desencantos. Para cada corpo de homem que dou prazer, deixo um lastro do meu desprezo, um rastro de bílis misturado à porra gosmenta do gozo. Se eu já me apaixonei, amei? Sim, com muita intensidade, mas daria um novo conto. 

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OUTONO

No ciclo outonal da minha vida, quando minha mãe ficou viúva, (paguei com meu corpo para um homem fazer o serviço na prisão onde estava meu pai) voltei pra casa pra ajudá-la a cuidar dos meus irmãos, não tem dinheiro que chegue pra pagar as despesas, meu pai só deixou dívidas, cicatrizes e traumas. O homem foi um predador na vida da família. Juntei o que restou das minhas economias, coragem, consciência e saudade e me juntei a eles. Agora dividia a responsabilidade de dar afeto, pão e uma pitada de esperança para os jovens homens que eu sempre amei.

Hoje não frequento apenas os sites de encontros, faço programas fast-food nas paradas de ônibus da cidade. Me considero menos infeliz que antes, tenho pra quem e onde voltar. Pra aumentar a renda e diversificar meu trabalho, agora também faço programas com mulheres, mas essa novidade certamente daria um conto à parte. Já tenho em vista uma cliente que, me parece, será assídua: todas as manhãs ela passa devagarinho com o seu carro, observando as minhas formas, já trocamos olhares comprometedores. Da próxima vez, vou fazer sinal para parar o carro, oremos.   

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INVERNO

Toda manhã, por volta das 7h, no caminho para a Universidade, os meus olhos têm encontro marcado com aquela mulher. Faz ponto naquela parada de ônibus durante o ano inteiro: primavera, verão, outono e inverno, lá está ela. Às 7h15, eu já estou dando aula, e ela antes disso já estava trabalhando.

É uma mulher com cerca de 40 anos, estatura média, cabelos longos, pretos, pernas torneadas, cintura marcada, olhos castanhos, tristes e cansados. Entramos num inverno chuvoso e lá está ela, vestida com um casaco de lã vermelha, um short de couro preto, uma meia desfiada na coxa, calçada com uma sandália de salto alto e os pés encharcados pela chuva, mais uma invisível proletária do asfalto, sob um frágil guarda-chuva estampado por estrelas.

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Arquivo da autora
ISA CORGOSINHO  é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e  Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

domingo, 21 de julho de 2024

ANIMAIS, CONTO DE SANDRA GODINHO

 

A N I M A I S

POR SANDRA GODINHO 

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As vozes vinham de dentro das paredes e trabalhavam em uníssono; era preciso, para combater a fome e a sensação de vazio. As entranhas davam o tom e a cadência, tangendo a necessidade que, naquela casa, eram muitas. Bílis, vísceras, nervos e podridão, tudo desgastado pelo uso. As tábuas de madeira rangiam, no risco de se romperem. As dobradiças das janelas, enferrujadas, não obedeciam ao manuseio das mãos, não abriam nem fechavam. Também já não havia mãos. As que habitavam a casa há muito tinham se ido, antes que ela se precipitasse sobre os corpos, soterrando músculos e pelancas. Só restaram os ruídos e o estrago nas fendas.

As fendas eram muitas. Profundas. Algumas se preenchiam com raízes de árvores próximas, que avançavam sobre o local que mais parecia um túmulo. Por acaso não sabiam que, para cada função, havia uma madeira específica? Paxiúba para revestir assoalhos, caibros de andiroba para afastar os carapanãs, acariquara para os parapeitos e as varandas, louro vermelho para as paredes laterais, palha do buçu para a cobertura. Tivessem escolhido a madeira adequada, não estaríamos lá, nos banqueteando com os restos.

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Aquela família ribeirinha resistia por obra de Deus ou do Diabo, só para entender o resto da sua existência. Nunca aprenderam que as árvores nos davam o mundo inteiro, a nós e a eles. As castanheiras forneciam os ouriços; os açaizeiros, o fruto, tão energético que punha todos de pé e em estado de espera, aguardando a farinha e o peixe. O fruto roxo saía da floresta e chegava ao porto ainda de madrugada, em paneiros ou rasas[1] de açaí, para ser comercializado em todo canto. Todos lá trabalhavam. O pai pescava o tambaqui, o menino colhia o açaí das árvores, a menina criava as galinhas e a mãe passava horas para produzir a farinha de macaxeira. Esse era o mundo inteiro, o mundo que conheciam, o que fazia explodir histórias em fúria lenta, sempre à noite e sob a luz dos candeeiros, conversando com os vizinhos e os compadres. Viviam bem até darem ouvidos a quem sempre foi surdo à natureza. Cederam tanto a esses rabos de conversa que, em pouco tempo, a vida degringolou, feito barranco de rio em época da vazante, quando os espaços de ar desmanchavam a terra.

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É só descuidar do fogo da coivara e deixar o terreno arder um pouco mais pra botar pasto, dizia um. Umas cabeças de gado, só para começar, dizia outro. Se não der, o compadre passa a terra pra frente, que o que não falta na região é grileiro e garimpeiro, retrucava o outro, forasteiro. A região se encheu deles, insistiam que tinha muita empresa querendo tomar posse e facilitar a mineração. Foram tantas as ideias alimentadas pelas palavras dos outros que o pai viu seu futuro cintilar antecipado na planície. Um futuro enfeitiçado, onde a tudo botavam preço: água, terra e céu. Um lago azul no meio do verde valia milhões. Foi assim que o pai se esqueceu do rio, da mata, dos animais, dele mesmo e dos gestos de generosidade que ainda vicejava na família e naquele mundo de compadrio. As palavras martelaram, costurando muitos dias e noites na imaginação, em poderosa urdidura. Até que a família colocou as palavras em prática. Atearam fogo e energia, se empenharam a desbastar o que viam pela frente. Não notaram as chuvas se espaçarem, a terra ressecar, os rios murcharem. Dentro em pouco, atravessaram até a outra margem do seu mundo. O açaí começou a queimar no pé, sem força de florescer. Os rios e igarapés perderam a correnteza. Nem golfinho conseguia atravessar as barreiras do imponderável, morrendo na superfície dos rios e dos lagos; a mandioca desistiu de crescer, mergulhada no próprio enterro, debaixo da terra. Sem o milho, as galinhas morriam de fome, desgraçadas pelo destino.

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Foram as primeiras a se rebelar depois que a generosidade deixou de existir entre eles. Os animais, como homens, se defendiam da fome, procurando outros caminhos. Cruzaram o sítio como se a família fosse a inimiga, bicando e debicando as mãos que encontraram pela frente antes de sumir pelos arbustos. Mãos que tentaram segurar a carne branca que ainda viam como sustento. De nervos expostos, sangrando, sem se conciliar ao sono, a família partiu, calando as corujas, os guaribas e os jacus, que deixaram de visitar o sítio.

Para nós, restaram as madeiras. Já não fazemos distinção de nenhuma delas, também nós mudamos com o novo clima; seguiremos abocanhando até a última farpa. No ano que vem, a gente não sabe como vai ser. Talvez tenhamos de aprender a nos alimentar de podridão, assim como os urubus.



[1] Cestos tecidos com fibras naturais

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Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA: COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL/ Isa Corgosinho




LITERATURA FEMININA CONTEMPORÂNEA|06

COSTURANDO DEVANEIOS NAS VENTANIAS CÓSMICAS, DE NIC CARDEAL

 Por Isa Corgosinho

 

O livro de Nic Cardeal Costurando ventanias me acompanhou na volta de João Pessoa para Brasília, as suas páginas vieram impregnadas da maresia de Jampa e agora experimentam o ar seco e a energia revitalizante do cerrado candango. Tive que interromper a leitura várias vezes em virtude da organização desse retorno. A cada retomada, experimentei novos sentidos em suas particulares costuras, por isso fui tomada pelo desejo de escrever sobre elas.   


Nas costuras da prosa, as ventanias da poesia   

O escritor Julio Cortázar[1], ao refletir sobre as características do conto, afirma que escrever contos e poemas é algo parecido, quase um estado de transe. Esse estado seria provocado pela escolha de um material significativo. O livro Costurando ventanias conjuga-se no hibridismo de gêneros, ao associar acontecimentos da realidade (crônicas) com elementos fictícios (contos), desvelando, assim, uma misteriosa propriedade de irradiar alguma coisa para além dele mesmo. Irradia ventanias que informam e conformam um breviário da condição humana, principalmente no que se refere ao embate do ser e o cosmo, o ser e o tempo, a materialidade das coisas dissolvidas pelas ventanias da temporalidade. É ainda o contista argentino que nos diz que a gênese do conto e do poema assemelha-se, porque nasce de um deslocamento provocado pelo estranhamento, um deslocar-se que altera o regime “normal da consciência”.     

Enxergamos, ainda sob o ponto de vista de Cortázar, um perfil de contista, uma mulher que repentinamente cercada pela imensa algaravia do mundo, comprometida em maior ou menor grau com a realidade histórica que a contém, escolhe um determinado tema e faz com ele um livro de contos e crônicas. O tema parece se impor irresistivelmente por cima ou por baixo de sua consciência, e a quebra do silêncio da folha em branco vem pela música, e tudo aquilo que a eleva como linguagem das subjetividades.

Dito isso, é importante ressaltar as afinidades dos contos de Cardeal com a poesia. A poesia é um dos mais importantes destinos da palavra, a palavra poética nesse livro não se limita a exprimir ideias ou sensações apenas, almeja, na tomada de consciência da linguagem, se lançar ao futuro. Com notável precisão, Gaston Bachelard[2] declara que a imagem poética, em sua novidade, abre um povir da linguagem.   

            A prosa de Ventanias é tecida em três redes aéreas que modulam a sua arquitetônica: Eu quero a música que mora dentro da flauta; Então proponho um faz-de-conta que me avizinha: paradoxos dessa dança chamada vida; Mas o tempo passou muito... passou ligeiro. A função poética nos contos e crônicas é marcada pela projeção do ícone sobre o símbolo, pela presença de códigos não verbais como a música, a dança, as imagens visuais sobre a linguagem verbal.  

A poesia presente nos contos de Cardeal chega aos nossos ouvidos energizada pela melopeia, assim como a entende Ezra Pound[3]. Se trouxermos, como aliada, a experiência de sua obra poética, não seria inadequado afirmar que as frases nesses contos e crônicas estão carregadas, acima e além de seus significados comuns, de marcantes qualidades musicais que dirigem o propósito ou tendência desses significados, basta escutar a temática que abre os primeiros contos Eu quero a música que mora dentro da flauta: O som inaudível, o sopro, as batidas do coração que ressoam na caixa torácica, no som que repercute nas vértebras.    

Lista de desejos

Eu não quero só a flauta. Eu quero a música que mora dentro da flauta. Cada nota escondida em sustenidos sentidos. Eu quero os acordes da poesia virando canção – e a voz que a faz palavra entoada. Sim, sou egoísta por querer a flauta e a moradora da flauta.  (CARDEAL, p. 15, 2021)   

            A musicalidade é composta pela exploração das paranomásias, das aliterações, assonâncias, trocadilhos nos títulos e, principalmente, nos versos rimados, ritmados no interior dos contos.

Títulos de contos

Tralhas fora dos trilhos de dentro

Os olhos chuvosos de Deus

Do barro ao berro

Fragmento do conto A linha

Empenho-me, assim, no ofício de pescar palavras no vasto mar que navega, para lá e para cá, dentro do meu peito, feito da mesma água que invade meus olhos fundos, bem distante da superfície do mundo. (CARDEAL, p. 14, 2021).

Sobre a influência da melopeia, a prosa de Nic comparece nas fronteiras da música, e a música aqui talvez seja a ponte entre a consciência e o universo sensível não pensante, ou mesmo não sensível.  Ainda nesse conto, a contista afirma que os poemas a descrevem, que os poemas são a alma, as palavras seu corpo. Sim, pois que seus poemas transmitem uma vertente peculiar de sensibilidade, são mais que ideias transmitidas, são imagens que devem ser sentidas, tocadas na corporeidade das palavras.   

Ao lado da função poética, concorre a função metalinguística que comparece em lances certeiros de autoconsciência do fazer literário, metapoética. Na composição do sensível conto A palavra, todas as características do sentimento são expressadas pelos movimentos dos sentidos e pelos traumas da ausência, da distância, das separações, da perda vivenciadas pela infância e pela vida afora. Todas as metonímias, eufemismos são empregados para dissipar a inalcançável compreensão dos sentimentos gerados pela separação, pelo luto ou pelo amor. Tudo circunda essa coisa, palavra esquisita, multifacetada, adjetivada, jamais nomeada. Apenas ao final, a palavra que, pela dor se vela, enfim se desvela – saudade  a palavra pronunciada em coro pela aldeia tinha o dom de dividir e curar a dor, como uma hóstia em forma de pão, alimento coletivo do amor. 

A gente tinha um nome para essa coisa que apertava o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair. Dizia-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bocadinho a dor.

Porque a saudade precisava ser dita, ainda que fosse na aldeia uma palavra esquisita... (CARDEAL, pp. 55-57, 2021)   

No conto (A)porte de poesia as funções poética e metalinguística andam entrelaçadas, enamoradas, ocupando singular equidade de posição e isonomia de valor. O leitor pode se deliciar com os jogos metalinguísticos, a começar pelo próprio título, que é um verdadeiro slogan pelo desarmamento.  A prosa encena o nascimento da paz no corpo potente da poesia.     

Sou a favor do porte de poesia. Carregá-la desde a semente, até que a palavra infle, insufle, percorra o caminho do ventre, saia do ninho, alce voo em direção ao céu do meu/teu/nosso coração. Ali aportada a poesia, que ela absorva a empatia, a boemia, a leveza ou a entropia, a expressão, a expansão, a exuberância da própria vida. E, quando pronta a atingir o alvo, aponte a poesia na direção da alma!  (CARDEAL, p. 61, 2021)   

Nas ventanias dos devaneios

As camadas sonoras e imagéticas da música e da dança em Costurando ventanias compõem, junto a outras figurações, notável relação com a Poética do devaneio, de Gaston Bachelard[4], mas é precisamente no capítulo V Devaneio e cosmo que encontramos a trilha interpretativa. Nessa obra encontramos verdadeiras constelações de imagens de elevada cosmicidade: fogo, terra, ar e água estão disseminados em outras imagens que fazem da leveza o contraponto da petrificação, do pesadume do mundo (pássaros, ninhos, borboleta, árvores, céu, estrelas, astros, asas, chuva, lágrimas, chapéu, horizontes, barro, sementes etc), revelando extraordinária imaginação criativa.

            É a ênfase no devaneio operante que nos interessa na travessia interpretativa. O devaneio cósmico que experimentamos nos contos de Cardeal é aquele ao longo do qual o universo sensível se transforma em universo de opostos complementares, cuja ambivalência das sombras soma-se à luz irradiada da poesia. Os contos trazem fragmentos do universo: a unidade da beleza se concretiza nos elementos água, ar, fogo e terra. O cosmos em Ventanias é constituído de palavras grávidas. Segundo Bachelard:

Um devaneio falado transforma a solidão do sonhador solitário numa companhia aberta a todos os seres do mundo. O sonhador fala ao mundo, e eis que o mundo lhe fala. Amando as coisas do mundo, aprendemos a louvar o mundo: entramos no cosmos da palavra. (BACHELARD, p. 179, 1996).

            Na esteira de Bachelard, Nic Cardeal reafirma em sua obra o clímax do devaneio cósmico, que é o de constituir um cosmos da palavra. É pela função poética da linguagem que seus leitores são seduzidos, arrebatados da inércia, conduzidos por uma espiral de louvores que transforma o universo sensível em universo de beleza.

A leveza, num mundo cada vez mais empobrecido no falar, no expressar, saturado por imagens que poluem e avassalam nossa visão, parece se sustentar em palavras primeiras, em imagens primeiras. Os poetas dos devaneios cósmicos, para calar o barulho ensurdecedor, recobrem o mundo com a musicalidade das palavras que sonham. É assim que um sonhador de palavras reconhece, numa palavra do homem aplicada a uma coisa do mundo, uma espécie de etimologia onírica, como nas belas frases poéticas:      

Pois, de que será feita a poesia, senão da veia aorta que nos conduz ao peito – do lado esquerdo de dentro – na emoção da palavra gasta, apontada sobre o alvo da flecha? Depois do alvo, da flecha, por certo que estarão felizes os operadores de sonhos a recortar palavras – exaustas – em algodão: poesia qu´inda flutua, aportada ao cais da alma.

Finalmente então, depois desse tempo cinza, haverá um lugar no refazer do amor. N´alguma estrada aberta, onde plantações extensas de esperanças, por ordem dos poetas (esses operadores de sonhos a portar palavras!) - serão colhidas aos montes em novas eras. (CARDEAL, pp.61-62, 2021)    

É extraordinário o encontro das duas poéticas no que se refere o agenciamento de palavras cósmicas, imagens cósmicas que costuram os vínculos do homem com o mundo, mas precisamente da mulher com o mundo. Nas epifanias, a poeta nos arrebata com as duas tonalidades, humana e cósmica, que ao se encontrarem se transfiguram:       

Eu tenho um céu que mora em mim. Ele amanhece e anoitece vez por outra. Gosta de salpicar-se de estrelas, receber algum sol de visita, tem na lua uma amiga confidente pra tristezas escondidas. [...]

No meu céu de estimação os horizontes são fios compridos, feito linhas em novelos, que se estendem desenhando lindos montes, que passeiam sorrateiros, inventando as paisagens dos meus sossegos.

Eu não sei o que dá em mim para ter um céu inteiro inquilino dos meus anseios. Mas eu amo de paixão esse meu céu de estimação. Nele eu penduro estrelas cadentes e sei que um dia elas germinarão desejos inusitados transformados em viventes. Vou seguir acreditando. Porque um céu de estimação é muito mais repleto de infinitos, e os infinitos são maiores, são inteiros.  (CARDEAL, p.28, 2021)  

               O olhar fenomenológico da contista nos convida a vivenciar os paradoxos de uma tomada de consciência de um sujeito maravilhado pelas imagens poéticas da natureza e, ao mesmo tempo, a confrontá-las com o mundo em plena crise com um modelo de civilização que nos empurra para a barbárie. 

Não sei dizer se essa rota será promissora... é o meu delírio do verbo resistir no mundo. Como a lira que delira nas cordas até encontrar o sentido de ser instrumento. Do verbo ‘ser delírio’ (‘de-lira´): a palavra primeira da lira ao dizer o som do mundo.

Sem o GPS das minhas preces a ninguém, serei tão somente um arado ressoando o chão - suprema ausência de sentido nesse imenso mundo cão. (CARDEAL, p. 27, 2021) 

            O confronto acontece no interior da linguagem, por meio de uma consciência crítica criativa. Dentro das imagens poéticas pode estar o germe de um mundo, ou como diz Cortázar, essa fabulosa abertura do pequeno para o grande, do individual e circunscrito para a essência mesma da condição humana. Todo conto que se lança no tempo grande da literatura, é como uma semente onde dorme a árvore gigantesca. Essa árvore crescerá em nós, inscreverá seu nome em nossa memória.

Árvore sementeira

Às vezes me lembro de um tempo em que fui árvore. O momento em que a semente tocou o chão, adormeceu na terra quente, germinou tão de repente, esticou raízes em seu ventre. O tronco subindo em direção aos céus, galhos seguindo livres para todos os lados, folhas verdes abrindo-se em leques sem receios. (CARDEAL, p. 29, 2021)

No conto In-finitudes, o eu que narra contém infinitos particulares que se comunicam entre si e com o mundo:  

Mesmo assim, seguirei descosturando a linha. Desfazendo os nós. Até que todos nós sejamos sonhadores de novos gestos – e uma luz se acenda na cabeceira de uma outra história que se avizinha.

Sonhar é o que importa – ainda que seja um bom retrato em branco e preto pendurado na parede da imaginação. Porque comporta um infinito inteiro. Abaixo. Acima. Dentro. Além das beiras. Bem profundo. Ao abrir as portas de um novo mundo. (CARDEAL, p. 20, 2021)

Bachelard assevera que uma imagem poética nova pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante de um devaneio de um poeta. Mas Nic Cardeal não se molda totalmente ao perfil do sonhador de Bachelard, que se entrega de corpo e alma à imagem que acaba de encantá-lo. A personagem que narra em primeira pessoa nos contos é parte encarnada das imagens cósmicas, com as quais opera suas metáforas, seus dialogismos da parte no todo e do toda na parte. O embelezamento se faz nessa relação sistêmica da gênese primordial do planeta, do sistema solar, da Via Láctea:    

De passagem

Estou à procura da melhor parte, em que em mim se acende a palavra propícia para os sentidos da vida. Estreita correnteza de vida própria que me enquadra criatura terrena – do barro, da pedra que veio do alto, do pó respingado do universo, da teia do milagre moído que sobrou dos ossos daqueles tantos vindos ao mundo antes de mim. Sou aos pedaços. Quebra-cabeças em estilhaços. Sou de pedra também sou aço. Sou rio seco sem fundo, mar salgado, ardido, abismo profundo. Sou folha verde, folha seca, grão germinado, semente. Do pó das estrelas dizem que vim. Daqui a pouco vou além, para bem adiante do fim. (CARDEAL, pp. 18-19, 2021)

A cosmicidade das imagens nos convida para experiências simbióticas com o mundo, para além de sua materialidade palpável. Não exatamente um lugar onde o sonhador possa descansar tranquilo, mas onde certamente se sentirá largo, expandido em todos os elementos terra, fogo, ar e água.  Fica patente o devaneio dos ares em todos os seus redemoinhos, bem como as peripécias de uma dialética que vai do universo líquido ao universo aéreo.

Chuvas guardadas

Já não sei se amo mais as chuvas externas ou internas. Ambas solicitam rios. Águas que correm em direção aos mares.

As águas do mundo querem seguir.

Minhas aguas internas pedem passagem.

Se chorei mares outrora, por ora só rio rios. Entre um e outro, meu barco vazio transborda de mim. (CARDEAL, p. 31, 2022)

 

Os olhos chuvosos de Deus

Eu imaginava que as águas caíssem dos céus porque Deus também sentia dores intensas e precisava chorar algumas vezes. Às vezes, muitas vezes.

[...]

Naquele dia aprendi a lição, não por Deus, mas por minha própria solidão a fazer desaguar o coração – foi meu primeiro sintoma de amor. A lição? Em chuvas internas de amor nem Deus se atreve a querer entender a linguagem inútil das lágrimas.

Hoje chove muito. O dia inteiro. Sempre que chove, lembro dessa minha imaginação de outrora – quase criança – e posso ver aquele meu Deus imaginário todo encharcado, espiando d´alguma janela do céu, para ver se estendo meus olhos molhados de tanto enxugar sua dor.  (CARDEAL, pp. 32-33, 2021).

Ao alçar as asas imaginárias, o devaneio do voo nos abre um mundo, portal de desmesurada abertura, o céu é a janela do mundo, e a poeta nos ensina e nos convida a mantê-la aberta de par em par:

Há dias em que me sinto exausta. Pudesse deixar, por um dia apenas, ‘a roupa de viver’ pendurada no varal, tomando um ar, um vento, ao sol, sairia apenas com a alma (e suas asas), a passear entre as árvores, as folhas, as flores e as águas!  Ah, seria tão delicioso esse dia! Um dia de leveza, sutileza, calmaria, em que ela – eu – a alma, compreenderia, enfim, a amplitude, o sentido, o motivo da vida, para muito além dessa concepção limitada e tão paradoxal que nos foi imposta nesse tão raso objetivo de existir...

Confesso. Não sei dizer por que às vezes cansa. Quero minhas asas. E um agosto diáfano, com gosto de brisa. ‘Porque eu continuo a acreditar em anjos, sei que eles existem. ‘ (CARDEAL, p.43, 2021)

No inspiradíssimo conto intitulado Lista de desejos, observamos uma importante declaração de poética, ao mesmo tempo sentimos sopro alusivo dos versos da Flauta-vértebra, do altissonante Vladímir Maiakóvski[5].

Sim, sou egoísta por querer o órgão febril do coração da flauta. Eu quero o outro lado da lua. Esse lado da rua. O meio da rua. A avenida. Estrada de terra batida. A ponta da estrela iluminando o caminho. Os passos tão gastos em perfurados sapatos.

Essa é a minha pauta – a música da (tua) vida. No toque sutil (ou áspero) da flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021)

Quando leio essas frases poéticas (ou versos?), lembro-me de passagens do filme Easy Rider[6], ou reminiscências da geração beat, e sua vertente na contracultura dos anos 50.  Mas os parágrafos seguintes nos rementem ao repouso projetado pelas imagens cósmicas que correspondem, seguindo o alegre paladar Bachelardiano, a uma necessidade, a um apetite. Ao invés do mundo como vontade de representação, o mundo como apetite. É o que demonstra o eu narrativo: uma relação antropofágica com o mundo, sem outra preocupação a não ser o desejo de mordê-lo, devorá-lo:

Eu não quero apenas a roupa da carne. Eu quero o corpo, o osso, a veia repleta de vivo vermelho, a seiva que alimenta o peito e lateja o doce e o amargo. Eu quero conhecer tua ferida. O corte da pele, o sangue jorrando em gotas, o choro do ventre, a semente parindo o futuro do indicativo. Eu quero a ruga, a curva, o passo apressado, o olhar tão cansado, a ira impulsiva, a angústia desmedida, a saudade guardada na vértebra esquerda de desesperos entorpecidos. Eu quero o riso, a gargalhada, a alegria, o sonho louco na medida exata. Ou perdida.  

Eu não quero a solidão da palavra. Nem somente a flauta. Eu quero a curva do rio escorrendo enchentes em desejos tão urgentes. E a paciência do tempo favorecendo o despertar da semente. Eu quero o amor que mora na semente – da flauta. (CARDEAL, p. 15, 2021).

O paladar se mostra em potência: cada apetite, um mundo. O sonhador bacherladiano participa então do mundo alimentando-se de uma das substâncias do mundo, substância densa ou rara, quente ou doce, clara ou cheia de penumbra segundo o temperamento da sua imaginação. E a poeta Nic Cardeal certamente vem na pele do sonhador, vem transfigurar em belas imagens o mundo exaurido de realidade, só assim pode compartilhar a saúde cósmica com seus leitores, porque nas imagens cósmicas parece que as palavras do homem infundem energia humana no ser das coisas:   

Ao corpo que me leva de um lado ao outro eu sou deveras grata. Não fosse ele, que seria de mim – solta no ar. Diáfana, fora da gravidade, rarefeita, quem sabe líquida – a olhar por olhos inexistentes a vida a vagar desde a terra removível até a semente? 

Este corpo que me carrega – a minha casa de viver a vida – porção considerável de resistir no mundo até a última gota do sopro de vento que há de virar chuva fininha: garoa miúda lavando a calçada, por onde outrora pisou um dia, feliz, este corpo que me carregou de um lado a outro das minhas esperanças tão ávidas de existência... (CARDEAL, p. 17, 2021).      

De mãos dadas com a tese de Bachelard, enfatizamos que, no grande como no pequeno, o devaneio é uma consciência de bem-estar. Numa imagem cósmica, assim como numa imagem da casa ou da casa almejada pela nossa alma, estamos no bem-estar de um repouso, é o que a narradora de ventanias propõe a si e aos seus leitores.  

As fadas? Ficaram do lado de lá. Os duendes continuam no jardim. Quando chegar minha hora de voltar para casa, eles sabem muito bem que serão outra vez visíveis as minhas asas. Afinal, de que são feitos os sonhos? Eles são feitos de medidas de eternidade, costurando ventanias em asas de borboletas.  (CARDEAL, p.44, 2021)

Podemos assegurar que as imagens extremamente significativas dos contos e crônicas atuaram como uma espécie de abertura, projetando nossas inteligência e sensibilidade em direção a algo que vai muito além do argumento literário. Ao ecoar Shakespeare nos seus versos, Nic Cardeal costura suas ventanias em nossa memória. Como assegura Cortázar, os contos que perduram em nossa memória são aglutinantes de uma realidade infinitamente mais vasta que a do seu mero argumento. Ainda é o contista argentino que nos assevera que um bom tema é como um sol, um astro em torno do qual gira um sistema planetário de que muitas vezes não se tinha consciência até que o contista, astrônomo de palavras, nos revela sua existência.  E é assim que me sinto: girando maravilhada nos devaneios das ventanias cósmicas.

 

 Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 165-205.

CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp. 154-157   

POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39.



 


[1] CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In.: Valise de cronópio. Trad. Davi Arriguci Jr. e João Alexandre Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2006. pp. 154-157    

[2] BACHELARD, Gaston. Devaneios cósmicos. In.: A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1996, pp. 165-205.

[3] POUND, Ezra. A arte da poesia – ensaios escolhidos. Trad. Heloysa de Lima Dantas e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1998. pp. 37-39. 

[4] Para girar com segurança as chaves interpretativas do livro de Nic Cardeal, valemo-nos da imprescindível intertextualidade parafrásica de fragmentos do Capítulo V Devaneio e cosmo, do livro A poética do devaneio, de Gaston Bachelard.  

[5] Hoje executarei meus versos
na flauta de minhas próprias vértebras.
(Trad. Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman).

[6] Filme de Dennis Hopper, EUA - 1969. Elenco: Peter Fonda, Dennis Hopper, Jack Nicholson.

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