domingo, 21 de julho de 2024

ANIMAIS, CONTO DE SANDRA GODINHO

 

A N I M A I S

POR SANDRA GODINHO 

Imagem Pinterest
As vozes vinham de dentro das paredes e trabalhavam em uníssono; era preciso, para combater a fome e a sensação de vazio. As entranhas davam o tom e a cadência, tangendo a necessidade que, naquela casa, eram muitas. Bílis, vísceras, nervos e podridão, tudo desgastado pelo uso. As tábuas de madeira rangiam, no risco de se romperem. As dobradiças das janelas, enferrujadas, não obedeciam ao manuseio das mãos, não abriam nem fechavam. Também já não havia mãos. As que habitavam a casa há muito tinham se ido, antes que ela se precipitasse sobre os corpos, soterrando músculos e pelancas. Só restaram os ruídos e o estrago nas fendas.

As fendas eram muitas. Profundas. Algumas se preenchiam com raízes de árvores próximas, que avançavam sobre o local que mais parecia um túmulo. Por acaso não sabiam que, para cada função, havia uma madeira específica? Paxiúba para revestir assoalhos, caibros de andiroba para afastar os carapanãs, acariquara para os parapeitos e as varandas, louro vermelho para as paredes laterais, palha do buçu para a cobertura. Tivessem escolhido a madeira adequada, não estaríamos lá, nos banqueteando com os restos.

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Aquela família ribeirinha resistia por obra de Deus ou do Diabo, só para entender o resto da sua existência. Nunca aprenderam que as árvores nos davam o mundo inteiro, a nós e a eles. As castanheiras forneciam os ouriços; os açaizeiros, o fruto, tão energético que punha todos de pé e em estado de espera, aguardando a farinha e o peixe. O fruto roxo saía da floresta e chegava ao porto ainda de madrugada, em paneiros ou rasas[1] de açaí, para ser comercializado em todo canto. Todos lá trabalhavam. O pai pescava o tambaqui, o menino colhia o açaí das árvores, a menina criava as galinhas e a mãe passava horas para produzir a farinha de macaxeira. Esse era o mundo inteiro, o mundo que conheciam, o que fazia explodir histórias em fúria lenta, sempre à noite e sob a luz dos candeeiros, conversando com os vizinhos e os compadres. Viviam bem até darem ouvidos a quem sempre foi surdo à natureza. Cederam tanto a esses rabos de conversa que, em pouco tempo, a vida degringolou, feito barranco de rio em época da vazante, quando os espaços de ar desmanchavam a terra.

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É só descuidar do fogo da coivara e deixar o terreno arder um pouco mais pra botar pasto, dizia um. Umas cabeças de gado, só para começar, dizia outro. Se não der, o compadre passa a terra pra frente, que o que não falta na região é grileiro e garimpeiro, retrucava o outro, forasteiro. A região se encheu deles, insistiam que tinha muita empresa querendo tomar posse e facilitar a mineração. Foram tantas as ideias alimentadas pelas palavras dos outros que o pai viu seu futuro cintilar antecipado na planície. Um futuro enfeitiçado, onde a tudo botavam preço: água, terra e céu. Um lago azul no meio do verde valia milhões. Foi assim que o pai se esqueceu do rio, da mata, dos animais, dele mesmo e dos gestos de generosidade que ainda vicejava na família e naquele mundo de compadrio. As palavras martelaram, costurando muitos dias e noites na imaginação, em poderosa urdidura. Até que a família colocou as palavras em prática. Atearam fogo e energia, se empenharam a desbastar o que viam pela frente. Não notaram as chuvas se espaçarem, a terra ressecar, os rios murcharem. Dentro em pouco, atravessaram até a outra margem do seu mundo. O açaí começou a queimar no pé, sem força de florescer. Os rios e igarapés perderam a correnteza. Nem golfinho conseguia atravessar as barreiras do imponderável, morrendo na superfície dos rios e dos lagos; a mandioca desistiu de crescer, mergulhada no próprio enterro, debaixo da terra. Sem o milho, as galinhas morriam de fome, desgraçadas pelo destino.

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Foram as primeiras a se rebelar depois que a generosidade deixou de existir entre eles. Os animais, como homens, se defendiam da fome, procurando outros caminhos. Cruzaram o sítio como se a família fosse a inimiga, bicando e debicando as mãos que encontraram pela frente antes de sumir pelos arbustos. Mãos que tentaram segurar a carne branca que ainda viam como sustento. De nervos expostos, sangrando, sem se conciliar ao sono, a família partiu, calando as corujas, os guaribas e os jacus, que deixaram de visitar o sítio.

Para nós, restaram as madeiras. Já não fazemos distinção de nenhuma delas, também nós mudamos com o novo clima; seguiremos abocanhando até a última farpa. No ano que vem, a gente não sabe como vai ser. Talvez tenhamos de aprender a nos alimentar de podridão, assim como os urubus.



[1] Cestos tecidos com fibras naturais

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Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

7 comentários:

  1. Que belo conto Sandra! Tão bom que fiquei com vontade de permanecer dentro dele e esperar os próximos capitulos do livro ! Parabéns!👏🏻👏🏻👏🏻

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  2. Sandra , querida amiga, que conto magnífico! A sua capacidade em nos levar , como em corredeira, por sua narrativa é magia pura , encantaria poética! Nós, os amazônidas , estaremos sempre estado de alerta contra os abusos e tragédias que assolam nossa casa, pra isso usamos a força de nossas palavras, você é uma grande voz dessa luta , mesmo que utópica, necessária! Obrigada!

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    1. Que palavras gentis, querida Rita! Nossa casa merece nossa atenção sempre! Obrigada por estarmos juntas nessa caminhada!

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  3. Uau! Amei, Sandra querida! Um conto que nos leva a pensar, sobre o que fazemos de nós e do nosso mundo, que nos é tão generoso!

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    1. Obrigada pela leitura e pelo retorno, tão positivo e motivador. Sigamos juntas. Obrigada pela acolhida!

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  4. Excelente Conto! Um convite à reflexão sobre a diversidade da VIDA e sobre nós mesmos. Parabéns Sandra.

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