Floratta da pele
Por Isa Corgosinho
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Mas essas sensações ruins duravam pouco, bastava
segurar suas mãos, trazê-las próximas ao nariz: cheiravam terra fresca, úmida e
fértil. Sentia-me protegida segurando aquelas mãos. Na infância, quando sentia medo ou dor,
buscava o colo materno, alçando minhas narinas até estreitá-las nas axilas
quentes, suadas da minha mãe. O cheiro inspirado nutria-me de segurança e
ternura.
Os melhores momentos da infância e adolescência
foram aqueles vivenciados no sítio dos meus avós paternos. Tudo ali tinha
cheiro próprio, individualizado. Minha avó tinha enormes canteiros de ervas,
flores, leguminosas, verduras. Eu costumava ficar brincando por ali, e voltava
com pequeninos buquês de ervas para presentear os adultos. O meu alfabeto
olfativo escolhia o buquê de acordo com cada pessoa ou as pessoas eram
escolhidas pelos temperamentos das ervas.
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A avó tinha o buquê mais especial para meu olfato: o
cheiro exalado por ela era de um tempo insubmisso aos relógios. Um buquê
ancestral, que eu descobrira nas noites que passara acometida por febre, aconchegada
em seu colo. A avó era um buquê de
jurubeba, alfazema, arruda, graviola, centelha asiática, espinheira santa,
melissa e guiné. O buquê do avô, homem que falava com os bichos e sabia imitar
passarinhos, era um conjunto de notas harmônicas: chapéu de couro, maracujá,
salsaparrilha, graviola, hibisco, dente de leão, guiné, palo santo, espada de
São Jorge e arruda.
As primas
cheiravam a buquês de folhas de frutos e ervas: carobinha, alcachofra,
douradinha, pitanga, abacateiro, jabuticaba, jambolão, sete sangria, colônia,
samambaia e mangueira. Os primos cheiravam a funcho, erva de bugre, parreiras,
chá verde, carambola, boldo, comigo ninguém pode.
Eu, que tinha o olfato mais apurado que todos, não conseguia sentir meu próprio cheiro. Costumava
cheirar minhas toalhas, roupas, sapatos; esfregava meu nariz na pele, puxava
meus cabelos até as narinas, soprava meu hálito nas mãos, mas nada sentia, não tinha
cheiro. Já adolescente pedi para minha mãe descrever o meu cheiro. Ela
relembrava que, quando eu era bebê, só usava talco em meu corpo quando fazia
muito calor para evitar assaduras. Dizia que do meu corpo exalava essência de
baunilha pela manhã, à tarde cheirava a pêssego e à noite, flor de laranjeira.
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O pequeno sítio dos meus avós, que ficava dentro de
uma grande área quilombola, era nossa segunda casa. Todo ano passávamos parte
das férias, Natal e Ano Novo no sítio, precisávamos aproveitar a companhia
deles. Eu, mais que qualquer outra
pessoa, amava voltar ao sítio, era uma espécie de reconexão com as fragrâncias
da terra.
Até então não conhecia o odor da violência, mas ele estava sempre soprando naquela região. Ali havia muitos conflitos, principalmente com a polícia, os grileiros e os capangas dos fazendeiros, todos eles cobiçosos pelo minério no subsolo do quilombo.
A boa notícia de fim de ano era a entrega das escrituras definitivas aos cidadãos quilombolas. Meus avós faziam parte dessa comunidade. Entre eles, havia uma espécie de escambo com os produtos que cada família produzia, por isso raramente dependiam dos produtos da cidade. O que sobrava do escambo era vendido nas feiras. As ervas da avó perfumavam tudo ao redor. Levavam perfume e cura às feridas abertas pelo gás carbônico na atmosfera das cidades.
Na semana seguinte à entrega das escrituras, as
famílias organizaram uma grande festa com música, muita comida e alegria
abundante. Tinha até fogueira, assamos milho, batata doce. Era época de lua
cheia, e brincamos à luz da lua até cansar! As crianças e os mais velhos foram dormir logo
depois da ceia coletiva, e os demais ficaram ali tocando, cantando, dançando e
bebendo.
Fomos acordados antes de raiar o dia com os gritos
das mulheres. Capangas haviam invadido o
terreiro do quilombo e atirado covardemente contra os homens em festa! Meu pai
foi ferido superficialmente no ombro e na perna, mas meu avô tombou sem vida. A
polícia e os bombeiros tardaram a chegar, resultando em mais vítimas.
Além das mortes de muitos quilombolas, as patas dos animais destruíram tudo que encontraram
pela frente. Fiquei imobilizada quando senti o cheiro dos excrementos dos
cavalos sobre as plantações. Galoparam em desatino
com a ferocidade das cargas em seus dorsos, submetidos à selvageria da
invasão.
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A persistência desse odor, impregnado em nossa memória, nutriu a nossa geração na luta para punir os assassinos. Alguns mandantes continuam impunes, mas os capangas estão secando moribundos nas ferragens da prisão. O cheiro de sangue nas roupas do meu pai adoeceu por muito tempo o meu olfato. Confeccionei um pequeno patuá com as ervas de sua alma: a espinheira santa, a espada de São Jorge e o pau ferro ficariam junto ao seu peito, para que ele se curasse do trauma, das maldades e feridas do chumbo.
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O quilombo nunca se recuperou completamente da tragédia. Levamos nossa avó
para morar conosco na cidade. Fiz para ela um pequeno canteiro com as ervas do
seu buquê, em jardineiras na varanda.
Mesmo triste, minha avó trouxe alegria à nossa casa.
Aos 35 anos me apaixonei pra valer, a paixão viera
como um torvelinho. Meu corpo envaidecido transpirava a vitalidade dos
hormônios. Enfim, minha pele exalava uma fragrância tão especial e envolvente
que a batizei floratta!
E com esse poema olfativo dou boas-vindas ao amor.
Floratta
da pele
Com o
nariz percebi no rebanho _ imemorial savana _
que
existe um homem diferente de outro
Com
ele te farejo nas suadas aglomerações das metrópoles
cada
homem tem um cheiro que se distingue dos outros
Eu
corria seguindo suas pistas
estepes
cavernas florestas montanhas
cidades
motéis mares hospitais
cinemas
bibliotecas bares becos
asfaltos
ruas jardins
Os
cheiros aspergidos pelas estações
logo
dizem sem equívocos
aquele
que interessa tocar
Outono
inverno verão
Eis
que o encontro
PRIMAVERA!
ele
havia me chamado
com
seu cheiro
no
meio de todos
os
cheiros
ouço
seu sôfrego chamado de amor
com o
nariz consigo
aspirá-lo inteiro!
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Arquivo da autora |
ISA CORGOSINHO é natural de
Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa. Doutora em Teoria da
Literatura pela UnB e Università di Roma, Sapienza. Professora
universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de
artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro
Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da
escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024), Eros e Thanatos em Plenos Pecados (TAUP,2025). Coletânea NÓS Autora
premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto
destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto
destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques,
Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas
antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das
Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo
Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal,
2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.);
Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da
Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida
por Mulheres 2023.
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