sexta-feira, 29 de agosto de 2025

FLORATTA DA PELE - CONTO DE ISA CORGOSINHO

Floratta da pele          

Por Isa Corgosinho


Imagem Pinterest
Nasci com as narinas abertas ao mundo. Antes de experimentar o leite materno, já sabia seu gosto, que me entrava pelas narinas desde o ventre. Antes de começar a falar, já conhecia o alfabeto do olfato. Lembro-me que sentia vontade de chorar todas as vezes que meu pai se aproximava para me beijar o rosto. O cheiro ácido do hálito dele causava-me dissonância olfativa, perturbava-me o coração a sensação de perigo e farpas. Como se algo cruel fosse acontecer com ele antes que me tornasse adulta.

Mas essas sensações ruins duravam pouco, bastava segurar suas mãos, trazê-las próximas ao nariz: cheiravam terra fresca, úmida e fértil. Sentia-me protegida segurando aquelas mãos.  Na infância, quando sentia medo ou dor, buscava o colo materno, alçando minhas narinas até estreitá-las nas axilas quentes, suadas da minha mãe. O cheiro inspirado nutria-me de segurança e ternura.

Os melhores momentos da infância e adolescência foram aqueles vivenciados no sítio dos meus avós paternos. Tudo ali tinha cheiro próprio, individualizado. Minha avó tinha enormes canteiros de ervas, flores, leguminosas, verduras. Eu costumava ficar brincando por ali, e voltava com pequeninos buquês de ervas para presentear os adultos. O meu alfabeto olfativo escolhia o buquê de acordo com cada pessoa ou as pessoas eram escolhidas pelos temperamentos das ervas.

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A mãe era um buquê formado por lavanda, bejoim, angélica, cascara sagrada e abre-caminho. O pai era um buquê de funcho, alecrim, manjericão, espinheira santa, espada de São Jorge e pau ferro.

A avó tinha o buquê mais especial para meu olfato: o cheiro exalado por ela era de um tempo insubmisso aos relógios. Um buquê ancestral, que eu descobrira nas noites que passara acometida por febre, aconchegada em seu colo.  A avó era um buquê de jurubeba, alfazema, arruda, graviola, centelha asiática, espinheira santa, melissa e guiné. O buquê do avô, homem que falava com os bichos e sabia imitar passarinhos, era um conjunto de notas harmônicas: chapéu de couro, maracujá, salsaparrilha, graviola, hibisco, dente de leão, guiné, palo santo, espada de São Jorge e arruda.

 As primas cheiravam a buquês de folhas de frutos e ervas: carobinha, alcachofra, douradinha, pitanga, abacateiro, jabuticaba, jambolão, sete sangria, colônia, samambaia e mangueira. Os primos cheiravam a funcho, erva de bugre, parreiras, chá verde, carambola, boldo, comigo ninguém pode.

Eu, que tinha o olfato mais apurado que todos,  não conseguia sentir meu próprio cheiro. Costumava cheirar minhas toalhas, roupas, sapatos; esfregava meu nariz na pele, puxava meus cabelos até as narinas, soprava meu hálito nas mãos, mas nada sentia, não tinha cheiro. Já adolescente pedi para minha mãe descrever o meu cheiro. Ela relembrava que, quando eu era bebê, só usava talco em meu corpo quando fazia muito calor para evitar assaduras. Dizia que do meu corpo exalava essência de baunilha pela manhã, à tarde cheirava a pêssego e à noite, flor de laranjeira.

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Depois que cresci, dizia ela, exalo ora sândalo ora limão siciliano por onde passo, mas eu não consigo senti-los. Peguei o hábito de carregar na bolsa óleos essenciais dessas fragrâncias para me sentir perfumada e esquecer a pele inodora. Como não sentia meu cheiro, resolvi criar minhas próprias fragrâncias:  Flor de íris e petúnia, maravilha (Mirabilis jalapa), jasmim manga. Assim, à medida que me tornava adulta, ia compondo os meus cheiros, odores.

O pequeno sítio dos meus avós, que ficava dentro de uma grande área quilombola, era nossa segunda casa. Todo ano passávamos parte das férias, Natal e Ano Novo no sítio, precisávamos aproveitar a companhia deles.  Eu, mais que qualquer outra pessoa, amava voltar ao sítio, era uma espécie de reconexão com as fragrâncias da terra.

Até então não conhecia o odor da violência, mas ele estava sempre soprando naquela região. Ali havia muitos conflitos, principalmente com a polícia, os grileiros e os capangas dos fazendeiros, todos eles cobiçosos pelo minério no subsolo do quilombo.

A boa notícia de fim de ano era a entrega das escrituras definitivas aos cidadãos  quilombolas. Meus avós faziam parte dessa comunidade. Entre eles, havia uma espécie de escambo com os produtos que cada família produzia, por isso raramente dependiam dos produtos da cidade. O que sobrava do escambo era vendido nas feiras. As ervas da avó perfumavam tudo ao redor. Levavam perfume e cura às feridas abertas pelo gás carbônico na atmosfera das cidades.

Na semana seguinte à entrega das escrituras, as famílias organizaram uma grande festa com música, muita comida e alegria abundante. Tinha até fogueira, assamos milho, batata doce. Era época de lua cheia, e brincamos à luz da lua até cansar!  As crianças e os mais velhos foram dormir logo depois da ceia coletiva, e os demais ficaram ali tocando, cantando, dançando e bebendo.

Fomos acordados antes de raiar o dia com os gritos das mulheres.  Capangas haviam invadido o terreiro do quilombo e atirado covardemente contra os homens em festa! Meu pai foi ferido superficialmente no ombro e na perna, mas meu avô tombou sem vida. A polícia e os bombeiros tardaram a chegar, resultando em mais vítimas.

Além das mortes de muitos quilombolas, as patas dos animais destruíram tudo que encontraram pela frente. Fiquei imobilizada quando senti o cheiro dos excrementos dos cavalos sobre as plantações.  Galoparam em desatino com a ferocidade das cargas em seus dorsos, submetidos à selvageria da invasão.

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     Meu olfato me levou às imagens: os olhares amedrontados, desesperados dos animais estavam impressos no fedor de suas fezes. Abri um parêntese e pensei com a convicção do meu olfato: só um ser de extraordinária grandeza poderia ter criado um animal com a potência de um cavalo, com o sentimento incondicionalmente amoroso de um cão e a intuição afiada de um gato. Pensei e arrematei: a dívida com a cavalaria era inafiançável. O ar entorpecido do quilombo devastado cheirava a enxofre. Os capangas haviam deixado um rastro de metilmercaptano, capaz de adoecer o olfato do mundo.  

A persistência desse odor, impregnado em nossa memória, nutriu a nossa geração na luta para punir os assassinos. Alguns mandantes continuam impunes, mas os capangas estão secando moribundos nas ferragens da prisão. O cheiro de sangue nas roupas do meu pai adoeceu por muito tempo o meu olfato. Confeccionei um pequeno patuá com as ervas de sua alma: a espinheira santa, a espada de São Jorge e o pau ferro ficariam junto ao seu peito, para que ele se curasse do trauma, das maldades e feridas do chumbo.

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Cobrimos o corpo do meu avô no caixão com as flores do seu buquê, aquele que eu havia composto para ele. Mas tinha um cheiro que repercutia suas notas em nossas narinas, exalava de uma madeira sagrada peruana:  meu avô nos mandava dizer que seu períspirito estava envolto pela atmosfera do Palo Santo. Essa fragrância dos xamãs acalmara nossos corações.

O quilombo nunca se recuperou  completamente da tragédia. Levamos nossa avó para morar conosco na cidade. Fiz para ela um pequeno canteiro com as ervas do seu buquê, em jardineiras na varanda.  Mesmo triste, minha avó trouxe alegria à nossa casa.

Aos 35 anos me apaixonei pra valer, a paixão viera como um torvelinho. Meu corpo envaidecido transpirava a vitalidade dos hormônios. Enfim, minha pele exalava uma fragrância tão especial e envolvente que a batizei floratta!

E com esse poema olfativo dou boas-vindas ao amor.

 

Floratta da pele

 

Com o nariz percebi no rebanho _ imemorial savana _

que existe um homem diferente de outro

Com ele te farejo nas suadas aglomerações das metrópoles

cada homem tem um cheiro que se distingue dos outros

 

Eu corria seguindo suas pistas

estepes cavernas florestas montanhas

cidades motéis mares hospitais

cinemas bibliotecas bares becos

asfaltos ruas jardins

 

Os cheiros aspergidos pelas estações

logo dizem sem equívocos

aquele que interessa tocar

 

Outono inverno verão

Eis que o encontro

PRIMAVERA!

ele havia me chamado

com seu cheiro

no meio de todos

os cheiros

ouço seu sôfrego chamado de amor

com o nariz consigo

aspirá-lo inteiro!

♡__________________◇________________♤________________♧__________________♡

Arquivo da autora

ISA CORGOSINHO é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024), Eros e Thanatos em Plenos Pecados (TAUP,2025). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

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