Até os confins da terra
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Éramos nós que fazíamos o trabalho do qual muitos nutriam asco.
Não era sujo, como alegavam, mas imprescindível. Aguardávamos a total
imobilidade dos movimentos, os últimos estertores, a cessação do sangue e de
todo o complexo de imunidade que carregavam em vida para os micróbios poderem
atuar, os primeiros a surgir com prerrogativas autônomas.
As bactérias das vísceras entravam logo em ação, formando gases,
fazendo as entranhas incharem para decompor o que até então tinha sido vida, um
passo por vez. A cada etapa, o odor nauseabundo, exageradamente adocicado,
liberado pelo morto, encurtava os limites entre os seres, entre o que é e o que
já não é mais, atraindo as moscas varejeiras, as próximas a chegar para o
banquete indigesto, fazendo brotar delicadezas que poucos viam, devolvendo o
finado ao corpo sólido que sempre o sustentou, a terra.
Assim a sombra da saudade descia, fazendo perder os traços de rispidez de alguém que, em vida, era só rezingues, destratos e descasos. Desse modo, carne e pó se misturavam e o tempo entrava em outro tempo, quando o solo podia conversar em intimidades com aquele que lhe pisou por anos. Perdia-se, do corpo, as palavras frias, a expressão de severidade, as rusgas e as reminiscências ressentidas. Podia mesmo afirmar que era, com nosso auxílio, que um morto ganhava ares de santidade, procedendo à passagem despudorada de um mundo ao outro.
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***
− Não vai botar fogo no corpo?
−
Pra quê?
−
É um Yanomami, vc sabe que eles costumam incinerar o corpo para passar para o
mundo dos mortos.
−
Tá me achando com cara de despachante, arigó?
−
Tô não, senhor. É que ...
−
Além do mais, fazer fumaça nessa clareira é entregar nossa localização. Tu quer
ser preso, por acaso?
−
Não, senhor.
−
Então pega a pá e me ajuda a cavar que a fedentina tá insuportável. O que
importa é que esse aqui não vai mais dar trabalho pra gente. Vamos sair desse
buraco com os bolsos cheios de ouro e sem yanomami pra atrapalhar.
−
O infeliz deve ter morrido de desnutrição, tão magrinho que faz pena.
− Ou contaminado de mercúrio, ou de malária. Que importância tem isso agora, arigó? Faz logo o que tem de fazer e cala a boca, senão te encho de porrada e você acaba como ele.
***
Era verdade: nunca foi uma questão de como se chegava à terra, mas
de como se partia dela.
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Uau! Que conto é esse, Sandra Godinho!
ResponderExcluirLi sem respirar e refiz a leitura igualmente, levando um soco na boca do estômago.
Não em relação ao corpo em decomposição mas, com a morte da empatia, da falta de compaixão para com outro e da truculência e egoísmo presentes nos "homens de bem"...
O conto é profundo e fecundo às nossas reflexões e tomada de posição no mundo.
Parabéns à Sandra por esta produção e ao Feminário por abrir espaço à literatura que liberta! Margarida Montejano