O PORTO ALEGRE DE ALICE NO PAÍS DOS ASSOMBROS
POR ISA CORGOSINHO
Na restrita bagagem, a narradora personagem traz um
caderno com a capa estampada pela boneca Barbie, signo consagrado do consumo e modelo
de beleza que alimentou o sonho de gerações de crianças e adolescentes no mundo
inteiro (e agora, para não perder o mercado, ainda retorna com o discurso
midiático do feminismo).
A presença desse signo no caderno, feito de diário
da professora que lê Wislawa Szymborska, insere a ironia como estrutura mestra
para compreender a composição de Quarenta
dias. A mudança, a queda, a
travessia estão relacionadas à busca de um filho conterrâneo que emigrou para
Porto Alegre em busca de trabalho.
Para compreensão dos mecanismos interdiscursivos que
constituem a ironia, é preciso considerar a presença de elementos da oralidade,
principalmente na relação entre a narradora Alice e o diário com a Barbie, que
é também uma das faces do leitor empírico. Isso significa que o discurso irônico joga
essencialmente com a ambiguidade, convidando o receptor a uma dupla leitura:
linguística e discursiva. Esse convite à participação ativa coloca o receptor
na condição de coprodutor da significação, o que implica sua instauração como
interlocutor.
O diário de Alice parodia os diários adolescentes
com a inserção de variados gêneros textuais verbais e não verbais recolhidos
nas andanças, peregrinações da narradora personagem. Os capítulos são introduzidos
por textos que Alice vai recolhendo em suas andanças, uma espécie de mapeamento
da cidade, sinalizações semânticas da travessia, significâncias do percurso
social e existencial.
Maria Valéria Rezende |
O diário instaura a proximidade com o leitor
empírico, parte de uma descrição minuciosa, dramática e humorística do percurso
da personagem, nos vemos representados no prosaísmo das imagens e linguagem nas
andanças de Alice. O uso do discurso indireto livre é um jogo de perspicácia da
autora. A conversa com a Barbie é de uma coloquialidade irônica e brincalhona,
está sempre simulando ou descrevendo o trajeto, as peregrinações, o modo de
agir e sentir, como deve se portar, nos envolvendo num jogo que devemos
aprender no meio da partida.
As transformações da personagem, que chega a morar
nas ruas de Porto Alegre, são carregadas de episódios irônicos e muitas vezes responsáveis
pela leveza necessária às dramáticas travessias de Alice. Outra questão
relevante é o fato de a narradora personagem não abrir mão da condição de
leitora. Observamos a preocupação em aliar a escritura com a humanização, o
prazer da leitura, duas atividades estreitamente conexas no romance. A leitura
é prazer, enquanto a escritura é trabalho, necessidade. O fato de Alice não
abrir mão de portar livros entre os itens básicos de sobrevivência como
moradora de rua, nos revela a condição diferenciada do vínculo da literatura com
a vida, mesmo e, sobretudo, na precariedade.
Quarenta Dias
é substancialmente um jogo literário, que implica a possibilidade de alcançar o
conhecimento do real, drama vivido pelo confronto dialógico do mundo escrito no
diário da Barbie e o mundo abertamente vivenciado pelos personagens estreitados
nos becos, nas ruas, nos espaços periféricos trilhados por Alice. O leitor
experimenta o cansaço, as frustrações, a angústia da personagem nos desafios da
busca por si mesma nos rastros do jovem nordestino, invisibilizado nas
comunidades proletárias do Brasil. O jovem pedreiro é o duplo da filha
acadêmica de Alice. A relação temporal forma uma coreografia entrecruzada de
passado e presente, instalando a dúvida do que é verdadeiro ou falso, fora e
dentro de nós, gerando a incerteza de uma identidade fixa.
Outro viés que merece atenção é o metaficcional. Patrícia Waugh[1]
indica algumas interpretações importantes a esse respeito: uma extrema
autoconsciência sobre a linguagem, a forma literária e o ato de escrever
ficções; uma incerteza generalizada sobre a relação da ficção com a realidade. Em síntese, a metaficção é o termo dado à
escrita ficcional que autoconsciente e sistematicamente chama a atenção ao seu status como artefato para propor
questões sobre a relação entre ficção e realidade.
Ao fornecer uma crítica de seus próprios métodos de
construção, tais escritas não só examinam as estruturas fundamentais da
narrativa ficcional, mas também exploram a possível ficcionalidade do mundo
externo ao texto literário. O resgate do romanesco metaficcional é
intencionalmente guiado pela imprevisibilidade, fertilizado por misturas de
sementes literárias variadas, cuja floração permite ao leitor empírico o
contato com dialógicas confluências de estilos, gêneros e tempos narrativos.
Se o nosso conhecimento do mundo é mediado pela
linguagem, a ficção literária, que são mundos construídos inteiramente de
linguagem outra, continua a ser uma travessia útil para a aprendizagem sobre a
construção da “realidade” enquanto tal. Esse dilema é confrontado em Quarenta Dias por meio de uma prática
que resulta na escrita que consistentemente mostra a sua convencionalidade que,
explicita e abertamente, exibe a sua condição de artifício e que, por meio
disso, estuda a relação problemática entre a vida e a ficção.
A metaficção pode-se desdobrar em alguns tipos de
relação: com aquelas convenções particulares do romance que mostram o processo
de sua construção; com a forma da paródia, que serve tanto como exemplo quanto
como uma crítica do conhecido romance parodiado. Esta última foi a opção de Maria
Valéria com a retomada paródica do clássico Alice
no país das maravilhas, de Lewis Caroll.
Em virtude de sua abrangência autoconsciente, a
prática metaficcional tem-se tornado particularmente importante na compreensão
da ficção contemporânea. A metaficção exibe, exagera e mostra as bases de sua
instabilidade: o fato de que os romances são criados por meio de uma
assimilação contínua das formas históricas cotidianas da comunicação. Não há
uma “linguagem de ficção” privilegiada. Há linguagens de memórias, jornais,
diários, histórias, registros de conversações, arquivos, jornalismo e
documentação, comics etc. Essas
linguagens competem entre si, de tal forma que uma extensão da “linguagem de
ficção” é sempre, se não muitas vezes secretamente, autoconsciente.
Ao declarar a opção por uma escrita metaficcional
que persegue a complexidade por meio de um catálogo de possibilidades
linguísticas diversas, Maria Valéria retoma o viés plurilinguístico do
romanesco tanto como uma resposta quanto uma contribuição a um sentido radical
mais extremo de que a realidade ou a história são provisórias: já não há mais
um mundo de eternas verdades, mas uma série de construções, artifícios e
estruturas inconstantes.
Os escritores metaficcionais voltam-se interiormente
ao seu próprio meio de expressão para examinar a relação entre a forma
ficcional e a realidade social. Nessa perspectiva, Waugh observa que eles têm
focalizado na noção de que a linguagem cotidiana defende e sustenta tais
estruturas de poder pelo contínuo processo de naturalização, por meio do qual
as formas de opressão são construídas em representações aparentemente
“inocentes”.
O desafio que a obra se propõe é disputar o leitor
contemporâneo, assediado por uma indústria cultural que interpela e embrutece
mentes e sentidos, e trazê-lo à leitura de textos desafiantes, que apontem
outras formas de compreensão e interpretação do mundo e da arte. Quarenta dias
apresenta uma abrangente pluridiscursividade dialogizada. No nível do dialogismo
intrínseco, a autora cita diversos escritores em epígrafes, com as quais
estabelece um diálogo de interação e intercomplementação discursivas.
Qualquer começo
é só prosseguimento e o livro dos eventos está sempre aberto ao meio . Wislawa
Szymborska. (REZENDE, 2014, p. 25)
Não pergunte por que lhe escrevo. Escrevo porque as palavras estão aí, como a cidade, a noite, a chuva, o rio, diante de mim, dentro de mim, uma torrente de palavras que não me cumprem. (Marília Arnaud). (REZENDE, 2014, p. 7)
Passo agora o
dia todo a escrever o diário. (...) Dá-me a sensação da onipotência, da
onisciência, de ser dono dos meus dias, das minhas horas e minutos, da minha
verdade enfim... (Edson Amâncio). (REZENDE, 2014, p. 21).
Ao lado desse coro autoral, Maria Valéria comparece
com igual isonomia entre as demais consciências, apresentando seu projeto maior
que se intitula Quarenta dias, em
diálogo estreitíssimo com o conjunto de citações que precedem cada capítulo,
sem abdicar do seu papel de regente do coro de vozes. Fica evidente, portanto,
que a liberdade dos demais autores ficcionalizados é sempre relativa, que não
se situa fora de um programa, de uma poética da autora.
Maria Valéria Rezende |
O sentido dialógico presente na obra ultrapassa o
contexto intrínseco das personagens e avança rumo ao diálogo cronotópico,
reatando laços e rompendo outros no grande coro de galos cantantes que tecem a
aurora, o pôr do sol e a noite do tempo grande do romance.
O crítico
argentino Ricardo Piglia[2]
afirma em seu ensaio sobre memória e tradição que o ato criador é o entrecruzamento
de textos. Ao discutir a tradição, ele exclui as relações de posse pessoal do
escritor em face da linguagem, ao entender a memória cultural de cada um como
um tecido cuja trama se compõe de citações, lembranças e esquecimentos.
Nos dias de hoje, tornam-se cada vez mais complexas
as definições dos conceitos de inspiração, de originalidade e de
intertextualidade já que nossa cultura tem-se caracterizado por traços
impessoais e anônimos e pelo desaparecimento gradativo da noção de sujeito.
Tudo isso se reflete na diluição da figura do autor e contribui para o
alargamento do espaço textual e discursivo, pois tanto a obra quanto o escritor
participam do sistema coletivo de enunciação de saberes. Dessa forma, é
possível um diálogo permanente entre os textos, que passa a receber o sopro
revitalizante de receptores futuros e da inevitável transformação dessa mesma
tradição.
O sopro revitalizante escolhido por Maria Valéria
Rezende é o já citado Alice no país das
maravilhas, de Lewis Carroll, ele próprio composto de infinitas referências
literárias, como destaca Sebastião Uchoa Leite, tradutor brasileiro do romance
de Carroll.
(...) é a
comprovação das alusões históricas dos textos de Alice e, sobretudo das alusões
literárias. Este é o caso das canções inseridas nos textos. (...) dos 24 poemas
dos textos de Alice, são paródias de poemas e canções inglesas bem conhecidas
na época (LEITE, p. 150).
O que importa
assinalar aqui é o quanto a fantasia carrolliana está presa a um universo de
referências, inclusive as literárias, sendo, nesse último aspecto, tão
metaliterária quanto inúmeras passagens dessa épica paródica que foi o Ulisses,
de James Joyce. Também os personagens de
Carrollianos são, em grande parte, referenciados seja em poemas infantis e
contos da tradição popular, seja a expressões e costumes locais. (LEITE, p.
150-151).
Assim como no Alice de Carroll, o leitor vai
encontrar citações explícitas que comparecem no dialogismo extrínseco de Quarenta dias:
Tão de repente
que Alice nem teve tempo de tentar parar antes de despencar no que seria um
poço muito fundo. (REZENDE, 2014, p. 73)
(...) mil vezes
o telefone, ecoando no apartamento vazio, vazio, porque eu não estava lá, tinha
entrado pelos livros adentro, caído num poço profundo, passado para outro mundo
louco, um ‘wonderland’ qualquer de onde esta Alice não pretendia voltar tão
cedo.” (REZENDE, 2014,.p.. 85)
A Alice de Maria Valéria Rezende nos apresenta, como
um narrador refletor, uma Porto Alegre que não aparece normalmente na mídia. Já
imersa no poço, começa a escavação em
busca do paradeiro do jovem paraibano Cícero Araújo, mas nos mostra muito mais:
denuncia a vulnerabilidade social do
trabalhador informal, dos proletários que vivem em comunidades periféricas, formadas
em grande parte por moradores nordestinos que ali se estabeleceram em busca de
trabalho e nunca mais puderam retornar à terra natal. Essa busca transforma-se
na busca de sentido para sua própria vida, depois que se vê abandonada pela
filha. Assim como a personagem de
Carroll, Alice vive sua experiência vertiginosa no poço labiríntico de uma Porto
Alegre desconhecida:
Saí, em busca de
Cícero Araújo ou sei lá de quê, mas sem despir-me dessa nova Alice, arisca e
áspera, que tinha brotado e se esgalhado nesses últimos meses e tratava de
escamotear-se, perder-se num mundo sem porteira, fugir ao controle de quem quer
que fosse. (REZENDE, 2014, p. 95)
O salto fundamental de Maria Valéria baseia-se na utopia do reconhecimento de que a leitura do mundo, mesmo esfacelado pelas desigualdades sociais, apresenta a possibilidade de converter a angústia da escritura, vivenciada pela personagem narradora, no prazer do texto como um ato estético e ético. Oxalá possa abrir os horizontes da cultura complexa e multifacetada do mundo, e que sob nossa responsabilidade deveremos ser capazes de construir no movimento incessante de nossa peregrinação angustiada e alegre em busca do sentido da vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN,
Mikhail. Estética da criação verbal.
Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
______. Problemas da poética de Dostoiévski. Trad. Paulo Bezerra. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2005.
______. Questões de literatura e de estética – a
teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernadini
et alii. São Paulo: Editora UNESP, 1993.
CARROLL, Lewis. Aventuras de Alice no país das maravilhas.
Trad. e ensaio Sebastião Uchoa Leite. São Paulo: Editora 34, 2015.
CORGOSINHO, Isabel Cristina. Se um
viajante no tempo grande do romance: entre a angústia da escritura e o prazer
da leitura, em Italo Calvino no período 2010-14. Tese (Doutorado em Teoria
da Literatura) – Pós-Lit. Universidade de Brasília - UnB. Brasília, pp. 278.
2014.
WAUGH, Patricia.Metafiction: the
theory and practice of self-conscious fiction.London & New York:Methuen(New accentes), 1984. Vii , 176 .
REZENDE, Maria Valéria. Quarenta dias. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014.
[1] WAUGH ,
Patricia.Metafiction: the theory and practice of self-conscious
fiction.London & New
York: Methuen (New accentes), 1984. Vii
, 176 p.
[2] PIGLIA,
Ricardo. Memoria e tradición. In:
CONGRESSO ABRALIC, 2,1991, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte:
UFMG, 1991. p. 60-66.
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Isa Corgosinho é
natural de Brasília/DF, Professora doutora universitária, aposentada, poeta,
cronista, contista, ensaísta. Livro “Memórias da pele” (Venas Abiertas, 2021).
Coletânea Nós: Poesia selecionada e autora premiada/1° lugar Crônicas. (Selo Off-Flip,
2023); Coletânea Nordeste: poesia selecionada, conto destaque (Selo Off-Flip,
2023); Prêmio Off-Flip 2024 Conto Destaque; Prêmio Off-Flip 2024 Poesia
Destaque.
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