A RELAÇÃO SISTÊMICA AUTOPOIÉTICA NAS GESTAS DAS ÁGUAS – NAS TROVAS DAS AMAZONIDADES
Edgar
Morin (2006), ao discorrer sobre o paradigma cartesiano, faz uso do termo
"simplificador". Assim, a simplicidade põe ordem no universo, expulsa
dele a desordem e a ordem se reduz a uma lei, a um princípio. Segundo o
filósofo, este paradigma simplificador vê o uno, ou o múltiplo, mas não consegue
ver que o uno pode ser ao mesmo tempo múltiplo. Ou o princípio da simplicidade
separa o que está ligado (disjunção), ou unifica o que é diverso (redução). Em
resposta a esse paradigma, Morin apresenta o Paradigma da Complexidade, cujo
postulado está na relação entre a parte e o todo: não é apenas a parte que está
no todo, mas o todo que está igualmente na parte.
O
conhecimento adquirido com as vivências nos rios, que no livro de Cortezão é o
todo, volta-se sobre a parte população ribeirinha, formando um ecossistema múltiplo
da floresta e região. As amazonidades nos convidam a uma visão
das dimensões holísticas da região pelos rios Negro e Solimões que atravessam
as vidas dos ribeirinhos do norte do país. Os perfis humanos, herdeiros dos povos originários,
são seres-em-relação e o EU lírico se define sempre diante de um Tu, esse TU
significativo e caudaloso, que é o rio.
Para girar a chave e
abrir a compreensão que nos permite uma melhor interpretação do livro de
Cortezão, a afirmação de Luhmann (1987) nos é muito bem-vinda. Para ele, o
desenvolvimento do pensamento sistêmico percorreu três distintas fases
históricas: na primeira, os sistemas eram arquitetados como totalidades
fechadas; na segunda, aconteceu uma
mudança radical em comparação à primeira, e os estudiosos passaram a conceber
os sistemas como abertos, em outras palavras como sistemas que realizam trocas
com o seu meio; e terceira, também chamada a fase dos sistemas autorreferenciados
ou autopoiéticos, é defendida principalmente por Maturana e Varella (1995).
A fase
sistêmica que pulsa nas trovas das Amazonidades forma sistemas autopoiéticos,
que se definem como configurações vivas que se constituem e mantêm a si mesmas.
Seus componentes interagem num processo circular, produzindo mais componentes
necessários para a autopreservação e constituindo-se em uma unidade delimitada
que necessariamente é um ser vivo. Esse sistema nos parece apropriado para
compreender a arquitetônica dos cinco rios que gestam em suas águas a
pluralidade regional, cultural de sua gente.
O Rio I – DOS ACESUMES são trovas que entoam o vasto campo semântico da dupla chama amor e erotismo, sob a cumplicidade do rio, na ribeira do Negro o lamento do amigo que partiu caboclas águas: é o rio da presença e da ausência, nos incertos destinos heracletianos do rio como um devir a ser do homem. A água e o fogo são as matérias compostas das temperaturas que sobem do rio e penetram o corpo desejante, exaltam a dupla chama: o rio é fálico, é o amante que penetra suas águas no cio sob a saia:
Quando caniçava as águas,
e me remava de rios,
sacava-me o vento a saia
na fértil relva de cios.
Mas a amante deseja a chama do amor perene, e propõe acordo com o amado, encarnado no rio. Oferece os bens necessários terra, fogo, alimento e um interminável sentimento:
Dou uma roça de meia
três latas de querosene
e o que tiver no paneiro
por um rio de amor perene.
O Rio II – DAS COMILANÇAS. Aracu, Jaraqui, Pequiá e uma
série de alimentos que provêm direta ou indiretamente dos rios: os peixes; a
mandioca que produz a farinha; as frutas do café, do açaí, do maracujá são
alguns dos ricos e variados alimentos que fazem a festança da cunhatã. A mãe
natureza provedora e seu filho rio com sua fauna e flora abastecem, nutrem os
povos originários, as famílias ribeirinhas. Os rios são amantes e são também
provedores. O modelo sistêmico autopoiético aqui também comparece evidenciando
uma de suas características que é produzir por si mesmos o que necessitam para
a sua organização, acolhem tudo que é necessário para sua subsistência e
autorreprodução.
O Rio III – DAS LESEIRAS. O afluente das leseiras é rico nas caracterizações do rio e do clima quente e úmido, que invocam os fluidos, temperamentos, as malícias, as espertezas dos caboclos. A leseira não é apenas um modo macunaímico de ser, está presente na língua afiada dos abelhudos, pissiqueiros, tagarelas. Tudo cabe na sintaxe metafórica dos ditos populares: o humor afiado estampa a ambivalência do riso, presente nas relações brejeiras dos ribeirinhos.
Vai a canoa à deriva
florindo-se em doce brisa
devaneios na peneira...
Eita, mormaço leseira!
Amizade de invejoso
e ferrada de mutuca!
Eu num quero é nem com nojo:
Sorve a alma e o sangue suga!
Considero o Rio III um dos mais instigantes. No meio das leseiras, uma trova entrava o riso: é o curumim que sobe a ladeira com o bucho pinhado de lombriga. O descaso com a saúde dos povos originários e seus descendentes mostra que o projeto de extinção desses povos segue seu curso, jamais interrompido. A morte lenta, gradual por doenças, fome, matanças.
Outro aspecto que o torna marcante, talvez nuclear entre os
rios, é a deliciosa, sensual e brincante reflexão autoconsciente que Cortezão
faz sobre o ritmo da trova, como o mais adequado para musicalizar as
amazonidades, gestantes das águas. Reafirma uma poesia que ultrapassa a cor
local e se coloca em plena segurança sobre o jogo de enunciações que rementem à
comunicação metapoética.
Caniçar verso é custoso:
se o verbo-isca do arrebol
não flertar
vivo, viçoso,
os versos fogem do anzol.
Pesquei um verso
porrudo,
desses de esticar caniço,
separei-o em pés miúdos
só pra fornicar com isso!
Fornicando com o verso,
descobri pelo cansaço
da vulva, que o ritmo ereto
não desabrocha
cabaço.
Rio IV – DAS CABOQUICES. Em ritmo que beira o
melancólico, as trovas insinuam a dança da despedida, a saudade antecipada das
relações profundas como o chão inalcançável dos rios. O lugar do eu lírico é o
entre: não partiu ainda, mas já não está mais aqui, onde sua identidade
compunha as alteridades complementares. A cabocla vai partir e pressente a
falta do todo sistêmico do qual era parte viva e pulsante. A poesia é o lugar
do resgate, da memória e das reminiscências do vivido, por isso a trova se faz
mais vigorosa, estende sua quadra e forma o novo chão a caminhar.
Das barrancas do meu Norte,
trago todas as bonanças.
Quando o peito aperta forte,
abro o pote das lembranças.
Tomar o melhor atalho
é poupar braços e forças
para as difíceis remadas.
De mãos dadas, quilha e proa.
Construí canoa alada
que não tem quilha nem popa.
Mas para que águas passadas,
se o destino vai à proa?
Ela costurou palavras,
remendos e poesia;
caiu na rede dos sonhos,
no embalo da nostalgia.
As caboquices estão misturadas nas lembranças, formando
um sentimento ambivalente onde as alegrias da vida, gestadas nas águas, são
assaltadas pelo sentimento de perda, distanciamento, despertencimento. O ritmo
das trovas faz a cabocla chorar, sentimento de exílio. As águas doces dos rios
estão temperadas com o sal da saudade. Os temas mais ligados a “Peneirar horas
escuras” impedem que As amazonidades tropecem na visão ufanista, radiosa da cor
local, alheia às adversidades, às sombras, às dores que também movem os cursos
dos rios.
RIO V – DOS ENCANTADOS. Para expulsar a melancolia,
tomemos o curso do Rio V, parte constituinte da cultura da região norte, os
ricos e dialógicos personagens lendários não poderiam ficar de fora das gestas
das amazonidades. Dialógicos porque se encontram com os mitos e figuras
lendárias de outras culturas, inclusive, a clássica. Os mitos e lendas
perpassam todas as culturas humanas, por isso são universais, são lendas,
histórias fundantes da origem dos tempos, da vida cíclica da natureza e dos
homens, da qual fazem parte. As trovas que encerram as gestas dos rios ratificam
a relação sistêmica dos encantados com a natureza. Representam os elementos
fundamentais e estão em relação simbiótica com o fogo, o ar, a terra e a
água.
Iara, se ouvisse Orfeu
doce e ledo canto teu,
a lira te brindaria;
de ti vassalo seria.
Oh, Pandora Macuxi,
por que abriste tal cumbuca?
Agora o meu quiriri
carrega o peso do mundo.
As relações entre mitos e personagens lendários da região
norte não são absolutamente castas, são versos revestidos de carnalidade
sensual, erótica. Há uma declarada antropofagia das figuras do folclore
brasileiro em carnavalizada devoração dos mitos clássicos e modernos.
Olhos de fogo rasgando
carnosa pele do verso;
boitatá me devorando
entranhas e estro (po)ético.
Japu, gatuno do fogo!
Ave, Prometeu Tapuio
fez-se
pássaro e seu logro
grande façanha
do mundo!
Um sexo seco e mirrado
devorou Macunaíma,
fruto mulher excitado
cuspiu o herói rindo, rindo...
Fechando a gestas das águas, resta-nos afirmar aqui um último princípio do pensamento complexo de Morin: a poesia opera a reintrodução do sujeito cognoscente. Ao poetizar o seu chão de águas da infância, da adolescência e da vida adulta, a poeta é resgatada no processo de conhecimento como autora de sua história e, consequentemente, como coautora de construções coletivas junto aos ribeirinhos de sua terra. Reafirma-se: o sujeito e o meio onde ele está inserido tornam-se codependentes, ressaltando que este meio não é entendido como algo predeterminado, mas sempre uma construção em dialógica interação com o sujeito. O caminhar sobre As amazonidades só acontece quando existe a interação entre os passos deslizantes da poeta e as gestas das águas. Privilegiados somos nós, seus leitores, que bebemos nos igarapés, nos braços e fontes dos rios que não cessam de nos maravilhar, ensinar sobre o potencial criativo de suas águas.
Bibliografia
GRZYBOWSKI, Carlos
Tadeu. Por uma teoria integradora para a compreensão da realidade. In.: Revista Psicologia em Estudo. Maringá,
v. 15, n. 2, p. 373-379, abr./jun. 2010.
LUHMANN, N. Soziale systeme, Frankfurt: Suhrkamp
Verlag, 1987.
MATURANA, H. & Varela, F. A árvore do conhecimento.
Campinas: Editorial Psy,
1995.
MORIN, E. Epistemologia da complexidade. In.: D. E. Schnitman
(Org.). Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre:
Artmed, 1996.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Trad. E. Lisboa. Porto Alegre:
Meridional/Sulina, 2006.
MORIN, E. Complexidade e a ética da solidariedade. Trad.
E. Lisboa. In.: Ensaios de Complexidade. Porto Alegre: Meridional Sulina, 2006