terça-feira, 5 de agosto de 2025

Resenha "Terra Úmida" de Myriam Scotti para o "Le Monde diplomatique-Brasil"

 TERRA ÚMIDA, DE MYRIAM SCOTTI

Por Rita Alencar Clark 


Arquivo da autora
O romance de Myriam Scotti, “Terra úmida”, ganhador do Prêmio Literário Cidade de Manaus 2020, na Categoria Regional, tem como tema central a diáspora Judaico-Marroquina no começo do século 20, quando muitos imigrantes vindos do Oriente atracavam no Porto de Manaus, o “Manaus Harbour”. Vinham em busca de refúgio mediante as ameaças de guerra iminente ou perseguições religiosas, em busca de trabalho e prosperidade, mas, principalmente, de liberdade. Sonhos que só no chamado “Eldorado Amazônico” poderiam ser realizados, uma vez que outros parentes já haviam se aventurado e prosperado, o que servia de incentivo a muitos imigrantes, de todas as partes do Oriente e da Europa. Uma longa viagem, sem volta, para muitos deles, que foram seduzidos pela corrida em busca do “ouro negro”. O látex, a borracha, que jorrava em abundância nos seringais da Amazônia longínqua.

A personagem principal dessa narrativa é Syme, matriarca da família, detentora da missão de unir a família em torno dos rituais da religião e da tradição Judaica, enquanto se esforça para compreender, assim como o novo idioma, os mistérios da nova terra prometida, uma terra úmida, capaz de inebriar os desavisados com seu torpor vespertino ou tragá-los para as profundezas de suas águas escuras e insondáveis.    


Arquivo da autora
Abner, o filho mais velho, conduz a primeira parte da narrativa, quando, ao voltar de uma longa viagem pelos rios da Amazônia, reencontra a mãe debilitada em luta com os últimos momentos de vida. Uma vida que ela não escolheu e que só descobriremos os motivos depois de sua partida, através dos Diários deixados na última gaveta da penteadeira…como derradeira oportunidade de mostrar-se como verdadeiramente foi. Sem, contudo, permitir a chance de ser contestada ou condenada pelas escolhas que fez em vida. A descoberta desses diários, na segunda parte da narrativa, e a leitura deles pelos filhos, já criados e adultos, desnudam uma mulher desconhecida, aquela que chamaram de mãe, ou Ima, suas aventuras e tragédias pessoais, a imensa solidão, a luta diária com os sonhos irrealizados, que saqueiam sua alma levando embora, para sempre, o brilho, poucas vezes vislumbrado naqueles olhos, deixando no lugar um amargor insondável, que a acompanhou até o fim. Syme, derrama-se através da escrita, revela-se a si mesma, fazendo-lhe companhia durante as viagens intermináveis do marido e filhos, a escrita dos diários preenche seus dias e noites de espera infinita. Os grandes rivais da vida de Syme: os rios, as longas estradas fluviais, a imensa desolação e saudade do Marrocos, daquela que um dia foi.

O romance nos traz, ainda, uma experiência sensorial/gustativa, uma vez que a narrativa sobre os aromas dos mercados marroquinos se apresenta com suas cores e especiarias, as comidas para os rituais Judaicos e os costumes ancestrais. As festas, as iguarias, as roupas, as tradições, que sobrevivem, plenamente, até os dias atuais. Um legado deixado aos descendentes, mas que todo o povo Amazônico usufruiu, uma “mistura” respeitosa de povos e tradições só possível numa época de grandes navegações e abertura dos Portos.

Abner encerra a narrativa com a terceira parte do romance trazendo um “plot twist” inesperado e magistral, levando o leitor a repensar sua própria aventura, o seu próprio tempo de existência nesta terra.

“(…). É como tenho levado os anos da minha vida, sempre querendo regressar, que nem uma criança à espera de um dia retornar ao útero da mãe. Aprendi quando aqui cheguei que isso se chama saudade, a memória do que não queremos esquecer.” (MYRIAM SCOTTI, 2021:16)


Manaus, 08 de março de 2024.


Rita Alencar Clark

Poeta, contista, cronista e ensaísta Amazonense. Colunista do Blog Feminário Conexões.

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Arquivo da autora
MYRIAM SCOTTI nasceu em Manaus, é formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; é mestre em literatura e crítica literária também pela PUC-SP; com curso de extensão em práticas de leitura e formação do leitor, pela PUC-SP. A partir de 2014, baseada nas experiências com seu primogênito Daniel, estreou como escritora de histórias infantis: O menino que só sabia dizer não (publicação independente); O menino que só queria comer tomate e Quando meu irmão foi embora? (editora Chiado); além do e-book “O menino que não queria dormir sozinho”. Em 2018, estreou na poesia com o título A língua que enlaça também fere (Editora Patuá). Em 2020, lançou um segundo livro de poesia sob o título Mulheres chovem (Editora Penalux), ano em que também venceu o prêmio literário da cidade de Manaus com o romance regional Terra Úmida, publicado em 2021 pela Editora Penalux. Em 2021 lançou o primeiro romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf), o qual foi admitido pelo PNLD 2021 e foi escolhido como paradidático de várias escolas do Brasil, além de ter sido selecionado no edital “Minha biblioteca” de São Paulo 2022, onde constam mais de onze mil exemplares espalhados pelas bibliotecas da capital. Em 2024, lançou o livro de crônicas Tudo um pouco mal (Editora Patuá) durante a Festa Literária de Paraty (FLIP), o título é semifinalista do prêmio nacional Sabiá de crônicas. Também em 2024 foi convidada para os Festivais Literários de Araxá e Paracatu, ambas comandadas pelo produtor cultural Afonso Borges, onde explanou sobre literatura produzida por mulheres no Amazonas. Há três anos é curadora do Festival Literário do centro de Manaus (FLIC), promovido pelo produtor cultural João Fernandes, CEO do Centro Cultural Casarão de Ideias.

sábado, 2 de agosto de 2025

DEUS CRIOU PRIMEIRO O TATU, DE YVONNE MILLER

Por Marta Cortezão 

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Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, de Yvonne Miller, é um livro que reune várias crônicas autobiográficas ambientadas na Aldeia dos Camarás (PE), onde a autora residiu por três anos com sua família. Está dividido em quatro partes: Cheiro de terra nova ao sol, que relata as descobertas e ambientação naquele novo lugar; Com gosto de Cajá, que trata das aventuras, da relação com o lugar e seus personagens; Tempos de chuva e chumbo, que traz relevantes reflexões sobre a relação humanidade e natureza a partir de vivências cotidianas e, finalmente, Ipê amarelo, onde a narrativa alcança o ápice do lirismo como forma de reverenciar essa mata, esse chão que se pisa – um capítulo-oferenda que pede mantra, superação e espiritualidade, pois aqui se encerra um ciclo: a autora se despede da Aldeia do Camarás para aventurar-se por novos caminhos.

A crônica Deus criou primeiro o tatu, que dá título ao livro (parte III), aborda a mitologia Guarani e revela muito sobre a narrativa do sagrado e dos seres sobrenaturais em que este livro nos imerge: “Aprendi que, no dia em que Nhaderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes”. Para Mircea Eliade, “o mito designa uma ‘história verdadeira’ e, sobretudo, altamente preciosa, porque sagrada, exemplar e significativa” (1963, p. 9).  Para que o mundo existisse, o tatu foi imprescindível – a ele coube a função primordial de espalhar a areia pelo globo terrestre, imerso em água, para que se formassem os continentes. Eis uma “história verdadeira”, os continentes estão aí como prova. Quando a autora irrompe o solo sagrado da aldeia, utilizando a força e a leveza da narrativa de uma brilhante cronista para aguçar a curiosidade do leitor, ela funda uma nova Aldeia dos Camarás, cuja sacralidade nos revelará “histórias verdadeiras” com seu viés político, detalhista, descontraído e bem-humorado da realidade que seus sentidos capturam. Eis o livro como prova desta cosmogonia!

A narrativa de Miller experimenta um constante estado de simbiose com os seres da aldeia, como na crônica Vovô flui no fundo quintal, em que a autora reconhece, por seus traços temperamentais, ser neta do igarapé que serpenteia ao fundo de seu quintal – assim como o rio Watu é o avô ancestral dos Krenac. E o que dizer das personagens? Do gato Salém, do cachorro Chico, da lenta esperteza do teju (“Ah, se Luciano soubesse...”), das aranhas, dos morcegos, das formigas 'gigantes', das cobras, do pobre gafanhoto Bárbara Schneider, o peixe atolado, do homem nu... Há muito o que dizer deste universo misterioso. Há também o lado Dark da aldeia, cosmologicamente porque há “as coisas de Yvonne”! Portanto, indico a leitura de Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, um livro atravessado por encantarias, vivo, sensorial e tecido por “histórias verdadeiras”, como se percebe na crônica Aldeia dos Camarás (p. 98-101):

Já’a jaguatá, vamos caminhar!

Assim que ouve o comando, Chico vem correndo, senta do meu lado e empina o focinho para eu colocar o peitoral,

            ─ Muito bem, jaguá-i! ─ elogio.

Eu queria mesmo era ter aprendido tupi, mas o curso era aos sábados de manhã, e o que quero fazer num sábado de manhã, muito mais do que aprender qualquer coisa, é dormir. Logo optei pelo guarani. Não tem a ligação com o Nordeste que o tupi tem, mas meu coração de linguista é fácil de agradar. Foi assim que, durante três meses, passei as noites de segunda-feira sentada em frente ao computador, ouvindo o xamoi contar sobre cultura, lutas e língua do povo guarani. Aprendi que, no dia em que Nhanderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes. Sim, na mitologia guarani, Deus criou primeiro o tatu. Depois, quatro deuses menores para administrar o trabalho na Terra e só depois o homem. Aliás, o homem não, o ser humano. Aprendi também sobre a relação do povo guarani com a natureza, sobre os guardiões da floresta, os espíritos da montanha. E aprendi algumas palavras e frases dessa língua complicada e fascinante, que agora, após o curso, continuo praticando com Chico, meu companheiro de longos passeios.

Enquanto nos afastamos de casa pela rua de terra batida, Chico corre atrás dos gravetos que vou lançando para longe.

Tereó! ─ E ele vai.

Eju apy! ─ E ele vem.

Encontramos o açude calmo. Já vi peixes grandes, jacarés pequenos, cobras, cágados e capivaras nadando naquelas águas, mas hoje se espelham nelas apenas as poucas nuvens brancas do céu. Sedento após a brincadeira, Chico se refresca com a y-y transparente, antes de pedirmos licença aos xondaro e ka’aguy nhe’ para adentrar na floresta. Viemos para apreciar, digo em pensamento, como aprendi nas aulas das segundas-feiras. Logo entramos na mata, naquele mundo calmo e misterioso, onde, rodeada de árvores, respiro o cheiro úmido de terra e plantas, ouço o murmúrio da brisa entre as folhas, admiro os cogumelos e as yvoty à beira do caminho: vermelhas, amarelas, rosa, brancas. Sinto dezenas de olhos nos acompanhando, enquanto sigo o Chico pela pequena trilha. Vez ou outra me detenho para observar a reprodução de lagartas, cheirar uma flor ou acariciar a casca áspera de um tronco.

De volta em o'ó, ligo o computador. Faz tempo que quero saber mais sobre os Camarás, o povo que deu nome ao lugar onde moramos: Aldeia dos Camarás. Mas só acho informações sobre condomínios, aplicativos de entrega e retiros espirituais.  Então vou pelo município: Camaragibe – Terra dos Camarás, como informa a placa de boas-vindas na estrada. Só que... nenhuma informação sobre esses últimos. Na maioria das páginas, fala-se rápida e genericamente sobre se teriam habitado estas áreas antes da chegada dos portugueses, só para logo se estender, por parágrafos e parágrafos, sobre os engenhos da cana-de-açúcar. Quanto ao nome, "Camarás" supostamente se referiria a um arbusto presente na região. Ou seja: vivemos em terra de arbusto?

Não posso o deixar de lembrar que a Assembleia Provincial do Ceará, lá por 1866, chegou a declarar a inexistência de indígenas no território, ignorando todas as etnias ali presentes. Tudo isso para beneficiar a quem lucraria com a expropriação das suas terras. Tapeba, Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Anacé, Tapuya-Kariri, Kanindé, Tremembé, Gavião, Kalabaça, Potiguara, Tabajara, Tubiba-Tapuya, Tupinambá, Karão Jaguaribaras, Kariri - se hoje são oficialmente quinze os grupos indígenas no Ceará, imagina no século retrasado.

Será um caso parecido aqui em Pernambuco? Um caso de falsificação histórica, de invisibilização de um povo por interesses econômicos, de negação de direitos a quem poderia exigi-los? Não me surpreenderia. No fim das contas, os povos originários lutam há séculos contra um Estado que omite sua existência e saqueia suas terras.

Sigo incontáveis links, pulando de página em página, até que finalmente encontro uma referência aos indígenas Camarás. E tem mais: conversando com um amigo camaragibense, ele relata que antigamente os locais entendiam o topônimo assim mesmo, como nome de um povo. Com o tempo, porém, a outra versão – a dos arbustos – prevaleceu. É a versão oficial hoje em dia. E a gente sabe quem dita as versões oficiais, né? Mas tenho esperança: dia desses conheci uma criança daqui de Aldeia. A menina jura ter visto, na floresta atrás da casa, uma família indígena: velhos e jovens, kunhangue, avangue, kyringue.

─ Estão aqui sempre ─ me conta. ─ Andam pela mata, conversam, cantam, as crianças correm e brincam.

Ninguém mais vê, mas eu acredito. E espero que estejam por aqui mesmo. No fim das contas, esta é a terra deles. Aldeia dos Camarás, Camaragibe, Pernambuco, Brasil.


Referências bibliográficas:

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.

MILLER, Yvonne. Deus criou primeiro o tatu: crônicas da mata. 1ª ed. São Paulo: Aboio, 2022.

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Arquivo da autora
Yvonne Miller (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais.

Tem textos publicados em várias antologias – Paginário (Aliás, 2019), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck, 2021), Crônicas de uma Fortaleza obscena (Territórios, 2021), Prêmio de Literatura Unifor 2021: Crônicas (Unifor, 2022), Amores e Lendas (Tubo, 2022), Fraturas: Antologia de Contos 2º Concurso Literário Pintura das Palavras (2022), Tinha que ser mulher (2022), Abraçar e resistir: vozes feministas (Libertinagem, 2023) – e é uma das organizadoras e coautora da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Na vida real, é mestre em linguística e preparadora de livros didáticos.


quinta-feira, 31 de julho de 2025

7 POEMAS DE MARIA EMANUELLE CARDOSO


Arquivo da autora

Maria Emanuelle Cardoso nasceu em Montes Claros, Minas Gerais, em 15 de novembro de 2000. Graduada em Ciências Biológicas Bacharelado na Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) em 2023, atualmente cursa o mestrado em Biodiversidade e Uso dos Recursos Naturais (PPGBURN) na mesma instituição. Além de bióloga, é poeta e educadora popular. Realiza pesquisas na área de etnoecologia, com ênfase no campo de redes de troca de sementes e mudanças climáticas. Seu livro de estreia amarelo mostarda, do qual foram extraídos os poemas que ilustram esta coluna, foi publicado em 2024 pela editora Nauta. Também tem poemas publicados em antologias e revistas (Há quarenta e seis pés, Totem&Pagu, Cassandra, Aboio, Ruído Manifesto, Casa Inventada, Oficina Literária da Revista Cult, Jornal Rascunho e Relevo). Recebeu o segundo lugar do Prêmio Poesia Agora Verão 2021 (Trevo) e foi selecionada para o Clipe Poesia 2023 na Casa das Rosas.


sangradouro 

espero os fios do cabelo teu

deitada na beira do rio

com os olhos fechados,

como quem come piaus:

 

cansada, faminta,

separando com a língua 

a espinha da carne -

 

atirando à poeira

as escamas que ficam.

 ☆_☆_☆ 

respiração de bicho forte
faz ferida nas paisagens

alguns arqueólogos acreditam
que a idade das pedras lascadas
trata-se na verdade da idade das
pedras estilhaçadas a mudança se
dá porque acreditam que os primatas
não lascavam com atrito de lagarta
pedra por pedra e sim com os estilhaços
da queda faziam suas lanças.
lançaram o artigo com o título: fazer armas
com os estilhaços
que nos caem

☆_☆_☆ 

namazu

os peixes-remo medem aproximadamente seis
metros. quando aparecem, dizem aos japoneses
que é tempo de terremotos. a gramática diz:
sua saída causa terremoto. o beiço diz: o terremoto
causa sua saída. hoje, quando se vê um peixe-remo
sabe-se que é tempo de terremotos e tsunamis.
as relações da causa e consequência do influxo
e efluxo de humanos, por outro lado, ainda não
são totalmente conhecidas. há quem diga
que todo humano é prelúdio de incêndio.
há quem acredite que toda carbonização
é prelúdio de humano. não se sabe se houve
guerra porque existem humanos ou existem
humanos porque houve guerra.
aos humanos quando os vemos
resta contar a lenda de um primata que corre como
planta se esconde como pirilampo contempla kintsugi
e sabe como provocar terremotos

☆_☆_☆ 

Chicletes tutti-frutti

andar sempre na ponta dos pés
descalça e silenciosa
sem olhar para os Reumatismos
não se pode despertar os Nomes
todos sob o tegumento de charcutarias
quieta, cada vez mais quieta
imóvel, translúcida, intocada
como a saudade grotesca das cristaleiras
podes beber nos meus copos
esta poeira na superfície
é do acúmulo de olhos

☆_☆_☆ 

mesmo crescer no escuro é ir em direção à luz

tudo é pequenino,
para ver é necessário arregalar os olhos,
roubar o rosto do tempo
como quem pesca tamarindos
para com os dentes quebrar sua casca
e com a garganta chupar fortemente
seu sumo azedo
até subirem as canelas
múltiplos caules de muriçocas

 ☆_☆_☆ 

Algas Vermelhas

na primeira vez que entrei no rio
fechei os olhos e mergulhei profundamente
fiquei com gosto de areia e sangue na pele
passei então
a mergulhar como quem para a noite se despe
não completamente, apenas o suficiente
sabendo que tanto na noite quanto no rio
a Areia sempre vem

 ☆_☆_☆ 

como quem planta bananas

 

se coloco meus joelhos 

em suas têmporas

é para que sobre eles medite

fique preso 

em suas teias de aranha

caia no corte do seu tango

 

há uma conexão ancestral 

entre os joelhos e a terra 

se ofereço a ti meus joelhos

é para que coloque sobre eles

todo seu peso 

é para te derrubar 

em meus abalos sísmicos 

é para que sobre eles me plante

é para que de meus bagos 

se alimente

 

os joelhos são a primeira ruga da pele

é sempre neles que perdemos

e é sempre sobre ele que nos curvamos

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REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 

CARDOSO, Maria Emanuelle. Amarelo mostarda. 1. ed. Barueri, SP: Editora Nauta, 2024. 100 p. ISBN 978-65-83074-14-0.

Arquivo da autora
Instagram: el___maria

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sexta-feira, 27 de junho de 2025

ROSÁRIO MARIA, POEMA DE ELIZABETE NASCIMENTO

 CAVAR A ALMA E TECER PRIMAVERA: UMA LEITURA SIMBÓLICA DO POEMA ROSÁRIO MARIA, DE ELIZABETE NASCIMENTO

POR JOCINEIDE CATARINA MACIEL DE SOUZA

Imagem Pinterest
Esta abordagem propõe uma leitura simbólica do poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento. Toma como eixo central a construção de um sujeito poético feminino que se insurge por meio da palavra, da memória coletiva e da força do cotidiano. Ancorada em vozes críticas como Hélène Cixous, Conceição Evaristo e Gaston Bachelard, a análise mostra como o poema desloca o silêncio histórico das mulheres para uma textualidade insurgente, sensível e potente.

O poema Rosário Maria, de Elizabete Nascimento, inscreve-se numa linhagem poética que combina linguagem, gênero e território. Ao mobilizar o nome “Maria” como signo coletivo e ancestral, o texto articula o íntimo e o político, o místico e o cotidiano. Trata-se de uma poética da escavação: da alma, da terra e da história.

A repetição de “Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria” é um mantra que impõe ritmo e urgência à leitura. Como sugere Gaston Bachelard (1993), a imagem da escavação remete ao inconsciente profundo, às “cavernas da alma” onde habita a memória arquetípica. Neste caso, o gesto de cavar é também um gesto de resistência, de retorno ao próprio corpo como território de força.

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A presença do “magma”, da “lareira” e do “incendiar o mundo” evoca o elemento fogo como transformação. Cixous (2013), em O riso da Medusa, argumenta que a escrita feminina precisa incendiar as estruturas do discurso patriarcal. O fogo em Rosário Maria é reativo e criador. Não destrói: liberta.

A passagem de “Maria” para “Marias” marca uma virada importante. O eu lírico singular se dissolve no plural coletivo, numa construção identitária que ecoa o conceito de “escrevivência”, cunhado por Conceição Evaristo (2005): a escrita que emerge da vida, das vivências encarnadas de mulheres silenciadas. Maria é toda mulher que cava, fia, lavra e canta.

As Marias de Elizabete “tecem outras rotas”, “acordam”, “desfiam os rosários”, num movimento de agenciamento coletivo. Aqui, o rosário não é símbolo de submissão religiosa, mas de insurgência simbólica. Desfiar os rosários é desfazer as tramas da resignação.

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A poesia de Elizabete emerge como um espaço de escuta e mobilização. A expressão final do poema — “a primavera precisa chegar” — funciona como síntese do desejo de transformação. Não é uma primavera natural, mas histórica: exige que a palavra rompa o silêncio-túmulo e inaugure um novo ciclo. Rosário Maria é mais do que um poema. É um manifesto. Com ritmo de ladainha e corpo de reza profana o poema devolve à linguagem sua função primeva: a de criar mundos. E como lembra Paul Ricoeur (1997), “o que nos define não é o que lembramos, mas a história que somos capazes de contar”. As Marias de Elizabete contam, tecem e fazem florir a primavera.


ROSÁRIO MARIA

 

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Deixa que escorra na pele o magma, Maria!

Labuta rainha, debulha o rosário, Maria!

Suba a ladeira, acenda a lareira, saia da fileira, Maria!

Desagua a mar, Maria.

Lava-se no lar, Maria.

Senta-se no bar, Maria.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Há magma em sua terra, Maria.

Incendeia o mundo, Maria!

Saia da fila, Maria!

Balança a saia, Maria!

Lavra a terra com os fios da vida, Maria.

Espalha sementes, Maria.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Maria.

Tu és uma Maria.

Nós, somos muitas, Marias!

Vençam as crostas da pele, Marias!

Teçam outras rotas, Marias!

Acorda! Chegou a hora de desfiar os rosários, Marias.

Cava, cava, cava bem fundo n’alma, Marias.

A conta está paga, Marias.

Unam-se! Há fios prateados na madrugada, Marias.

Teçam atônitas as teias da vida, Marias.

Com pérolas que adornam a garganta, Marias!

Com fé e esperança que ilustram a vida, Marias!

Corações alados espalham amor, Marias!

 

Vai!  Deixa que as palavras abram sua boca de túmulo,

a primavera precisa chegar.

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Referências

BACHELARD, Gaston. A terra e os devaneios do repouso. São Paulo: Martins Fontes, 1993.

CIXOUS, Hélène. O riso da Medusa e outros ensaios feministas. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.

EVARISTO, Conceição. "Escrevivências: a escrita de nós-mulheres". Revista Estudos Feministas, v. 13, n. 2, 2005.

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 1997.

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Arquivo da autora

Jocineide Catarina Maciel de Souza - Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, da Universidade do Estado de Mato Grosso (PPGEL/Unemat) (2021). Mestra em Estudos Literários também pela Unemat (2014). Graduada em Letras (2009). Quilombola do complexo territorial de Pita Canudo em Cáceres/MT. Produziu o documentário: “Quintais Quilombolas: Memória e identidade Cultural do Quilombo Pita Canudos Cáceres/MT”, com o apoio da Secel, por meio da Lei Aldir Blanc, em 2020. É, também, produtora cultural e diretora da Escola Estadual Demétrio Pereira, em Reserva do Cabaçal/MT-BRASIL.




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Arquivo da autora

Elizabete Nascimento (Cáceres/MT) -  é poeta, professora e avó. O silêncio e o tempo são seus mestres e, por isso, tenta guardar as dores com dignidade e as ressignifica em páginas, na ânsia de apontar que o verbo pode ser abrigo, cura e voo. Cada palavra que rabisca é na tentativa de ofertar um sopro de esperança ao mundo. Aprendeu que escrever e amar são, voos de pássaros, os únicos caminhos, verdadeiramente, eternos.

terça-feira, 24 de junho de 2025

COM QUANTAS ESTAÇÕES SE FAZ UMA MULHER, CONTO DE ISA CORGOSINHO

 C O M   Q U A N T A S   E S T A Ç Õ E S   S E   F A Z   U M A   M U L H E R

POR Isa Corgosinho

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Depois do estupro, fui expulsa de casa após a denúncia que fiz contra meu pai. Morei por algum tempo na casa de uma prima, que veio do norte com minha mãe, ainda solteira. Depois que atingi a maioridade, aluguei um quarto de pensão com uma amiga. Abandonei a escola antes de concluir o 3º ano do Ensino Médio e dela só guardei um livro porque amava o título A hora da estrela. Faria da minha o inverso da vida da protagonista.

PRIMAVERA

Na primavera da minha vida, qualquer noitada regada à cerveja no bar, presentes como bijuterias, roupas, maquiagem, caixas de chocolate eram suficientes para que eu fizesse as vontades dos homens, meu corpo jovem e as mentiras sussurradas no escuro aumentavam a macheza deles. Eu os fazia supor a minha entrega e submissão, enquanto na verdade só estava manipulando a vaidade masculina, toda concentrada no pau e no poder: sim, senhor! Na verdade, pra mim, eram corpos anônimos, sem faces. Páginas viradas do meu folhetim.

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No início, aquele ganho me bastava para o aluguel, a comida, as drogas baratas como o álcool, a maconha e o cigarro. A escola ficou cada vez mais distante, trouxe comigo de casa um book de fotografias, que a minha mãe pagou em cinco vezes, quando cismei que poderia ser modelo. Agora ele serve para atrair meus clientes. Além da escola, deixei minha mãe, meus cinco irmãos pequenos e o alcoólatra carioca desalmado, que me violentou.

Não era difícil encontrar homens que pagassem por um programa com uma jovem de 18 anos, os aplicativos serviam principalmente pra isso. A maioria das mulheres que usa esses aplicativos busca encontrar um par perfeito, mas boa parte delas já sofreu golpes e desenganos. No meu caso, logo no primeiro encontro, apresento minha tabela de preços e as opções de prazer.

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VERÃO

Marco o longo verão da minha vida quando fiz programas com homens de vários estados, afinal moro na cidade maravilhosa, reduto do turismo sexual. Os conterrâneos são metidos a espertos, botam banca, descolados, bronzeados, narcisistas e vivem pedindo desconto pelas transas, só gostam deles mesmos. Na zona sul, ainda é possível encontrar uns caras que querem imitar o Vinicius de Moraes e por isso são galanteadores, falam pelos cotovelos, contam vantagens, são ligeiros e dançantes, superficiais, curiosos e, principalmente, mentirosos, gostam de me comer tomando uísque e ouvindo bossa nova.

Já os paulistanos são desbotados, discretos à primeira vista, ansiosos e pragmáticos, agem com  disciplina calculada, gostam de shopp gelado nos quiosques à beira mar, tomar café em livrarias e de ler tudo que lhes apetece, inclusive meu olhar, meus gestos, emitem gemidos prolongados na hora do sexo oral, pagam o valor da tabela sem reclamar. Não sei qual a motivação, mas gosto de transar com os mineiros, chegam de mansinho, suaves e com uma timidez calculada, são astutos, desconfiam até do próprio reflexo no espelho. Sinto neles o cheiro das montanhas, têm gosto de minério na boca, a pele cheira a café coado, os pelos fazem cócegas na gente. Falam pouco, mas gostam muito de transar, trepam muito bem! Me tratam como se estivessem com a garota de Ipanema, mas são avarentos, não pagam um centavo a mais pelo serviço prestado. Alargando os adjetivos são conservadores, mesmo os que se acham descolados, e, não raramente, hipócritas, masculinidade frágil.

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Os gaúchos merecem um parágrafo à parte. Conheci alguns de diferentes idades, mas todos eles gostam de transar de botas, não olham para meu rosto, gostam de cavalgar sobre o meu corpo, o hálito é impregnado de chimarrão, os suores escorrem e têm cheiro de carne crua. Das conversas rápidas, só me recordo da frase: fique de quatro, guria! Acho que nunca me casaria com um gaúcho, pra mim eles representam o suprassumo da masculinidade frágil.        

Poderia ficar aqui falando da subjetividade geográfica masculina, mas não mudaria em nada a moldura patriarcal e a masculinidade frágil que, invariavelmente, a quase todos configura,  (além disso, a autora não aprecia textos muito longos). Por isso sempre penso nessa profissão como temporária, é um investimento que faço, enquanto vou curando meus traumas e desencantos. Para cada corpo de homem que dou prazer, deixo um lastro do meu desprezo, um rastro de bílis misturado à porra gosmenta do gozo. Se eu já me apaixonei, amei? Sim, com muita intensidade, mas daria um novo conto. 

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OUTONO

No ciclo outonal da minha vida, quando minha mãe ficou viúva, (paguei com meu corpo para um homem fazer o serviço na prisão onde estava meu pai) voltei pra casa pra ajudá-la a cuidar dos meus irmãos, não tem dinheiro que chegue pra pagar as despesas, meu pai só deixou dívidas, cicatrizes e traumas. O homem foi um predador na vida da família. Juntei o que restou das minhas economias, coragem, consciência e saudade e me juntei a eles. Agora dividia a responsabilidade de dar afeto, pão e uma pitada de esperança para os jovens homens que eu sempre amei.

Hoje não frequento apenas os sites de encontros, faço programas fast-food nas paradas de ônibus da cidade. Me considero menos infeliz que antes, tenho pra quem e onde voltar. Pra aumentar a renda e diversificar meu trabalho, agora também faço programas com mulheres, mas essa novidade certamente daria um conto à parte. Já tenho em vista uma cliente que, me parece, será assídua: todas as manhãs ela passa devagarinho com o seu carro, observando as minhas formas, já trocamos olhares comprometedores. Da próxima vez, vou fazer sinal para parar o carro, oremos.   

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INVERNO

Toda manhã, por volta das 7h, no caminho para a Universidade, os meus olhos têm encontro marcado com aquela mulher. Faz ponto naquela parada de ônibus durante o ano inteiro: primavera, verão, outono e inverno, lá está ela. Às 7h15, eu já estou dando aula, e ela antes disso já estava trabalhando.

É uma mulher com cerca de 40 anos, estatura média, cabelos longos, pretos, pernas torneadas, cintura marcada, olhos castanhos, tristes e cansados. Entramos num inverno chuvoso e lá está ela, vestida com um casaco de lã vermelha, um short de couro preto, uma meia desfiada na coxa, calçada com uma sandália de salto alto e os pés encharcados pela chuva, mais uma invisível proletária do asfalto, sob um frágil guarda-chuva estampado por estrelas.

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Arquivo da autora
ISA CORGOSINHO  é natural de Brasília/DF, mas mora atualmente em João Pessoa.  Doutora em Teoria da Literatura pela UnB e  Università di Roma, Sapienza. Professora universitária, aposentada, ensaísta, poeta, cronista, contista, autora de artigos e ensaios. Livro Memórias da pele (Venas Abiertas, 2021), Livro Panópticos e Girassóis (Urutau, 2024), Livro Se um viajante entre a angústia da escritura e o prazer da leitura (Caravana, 2024). Coletânea NÓS Autora premiada/1° lugar Crônicas. (SELO OFF FLIP, 2023), Coletânea NORDESTE conto destaque, (SELO OFF FLIP 2024), Coletânea NÓS (SELO OFF FLIP 2024) conto destaque, Coletânea Prêmio SELO OFF FLIP 2024 com poema e conto destaques, Coletânea TERRA (SELO OFF FLIP 2025) com conto destaque. Participou de diversas antologias, entre elas Coletânea Enluaradas I (2021); 1ª Coletânea Mulherio das Letras na Lua (2021); Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas (Selo Editorial/Sarasvati Editora, 2021); Poesia & Prosa (In-finita, Portugal, 2021); Coletânea Mulherio das Letras para ELAS, (Amare Editora, 2021.); Colectânea Mulherio das Letras Portugal (In-finita, Portugal, 2022). Membro da Comissão de Seleção do Prêmio Carolina Maria de Jesus de Literatura Produzida por Mulheres 2023.

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