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sábado, 2 de agosto de 2025

DEUS CRIOU PRIMEIRO O TATU, DE YVONNE MILLER

Por Marta Cortezão 

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Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, de Yvonne Miller, é um livro que reune várias crônicas autobiográficas ambientadas na Aldeia dos Camarás (PE), onde a autora residiu por três anos com sua família. Está dividido em quatro partes: Cheiro de terra nova ao sol, que relata as descobertas e ambientação naquele novo lugar; Com gosto de Cajá, que trata das aventuras, da relação com o lugar e seus personagens; Tempos de chuva e chumbo, que traz relevantes reflexões sobre a relação humanidade e natureza a partir de vivências cotidianas e, finalmente, Ipê amarelo, onde a narrativa alcança o ápice do lirismo como forma de reverenciar essa mata, esse chão que se pisa – um capítulo-oferenda que pede mantra, superação e espiritualidade, pois aqui se encerra um ciclo: a autora se despede da Aldeia do Camarás para aventurar-se por novos caminhos.

A crônica Deus criou primeiro o tatu, que dá título ao livro (parte III), aborda a mitologia Guarani e revela muito sobre a narrativa do sagrado e dos seres sobrenaturais em que este livro nos imerge: “Aprendi que, no dia em que Nhaderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes”. Para Mircea Eliade, “o mito designa uma ‘história verdadeira’ e, sobretudo, altamente preciosa, porque sagrada, exemplar e significativa” (1963, p. 9).  Para que o mundo existisse, o tatu foi imprescindível – a ele coube a função primordial de espalhar a areia pelo globo terrestre, imerso em água, para que se formassem os continentes. Eis uma “história verdadeira”, os continentes estão aí como prova. Quando a autora irrompe o solo sagrado da aldeia, utilizando a força e a leveza da narrativa de uma brilhante cronista para aguçar a curiosidade do leitor, ela funda uma nova Aldeia dos Camarás, cuja sacralidade nos revelará “histórias verdadeiras” com seu viés político, detalhista, descontraído e bem-humorado da realidade que seus sentidos capturam. Eis o livro como prova desta cosmogonia!

A narrativa de Miller experimenta um constante estado de simbiose com os seres da aldeia, como na crônica Vovô flui no fundo quintal, em que a autora reconhece, por seus traços temperamentais, ser neta do igarapé que serpenteia ao fundo de seu quintal – assim como o rio Watu é o avô ancestral dos Krenac. E o que dizer das personagens? Do gato Salém, do cachorro Chico, da lenta esperteza do teju (“Ah, se Luciano soubesse...”), das aranhas, dos morcegos, das formigas 'gigantes', das cobras, do pobre gafanhoto Bárbara Schneider, o peixe atolado, do homem nu... Há muito o que dizer deste universo misterioso. Há também o lado Dark da aldeia, cosmologicamente porque há “as coisas de Yvonne”! Portanto, indico a leitura de Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, um livro atravessado por encantarias, vivo, sensorial e tecido por “histórias verdadeiras”, como se percebe na crônica Aldeia dos Camarás (p. 98-101):

Já’a jaguatá, vamos caminhar!

Assim que ouve o comando, Chico vem correndo, senta do meu lado e empina o focinho para eu colocar o peitoral,

            ─ Muito bem, jaguá-i! ─ elogio.

Eu queria mesmo era ter aprendido tupi, mas o curso era aos sábados de manhã, e o que quero fazer num sábado de manhã, muito mais do que aprender qualquer coisa, é dormir. Logo optei pelo guarani. Não tem a ligação com o Nordeste que o tupi tem, mas meu coração de linguista é fácil de agradar. Foi assim que, durante três meses, passei as noites de segunda-feira sentada em frente ao computador, ouvindo o xamoi contar sobre cultura, lutas e língua do povo guarani. Aprendi que, no dia em que Nhanderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes. Sim, na mitologia guarani, Deus criou primeiro o tatu. Depois, quatro deuses menores para administrar o trabalho na Terra e só depois o homem. Aliás, o homem não, o ser humano. Aprendi também sobre a relação do povo guarani com a natureza, sobre os guardiões da floresta, os espíritos da montanha. E aprendi algumas palavras e frases dessa língua complicada e fascinante, que agora, após o curso, continuo praticando com Chico, meu companheiro de longos passeios.

Enquanto nos afastamos de casa pela rua de terra batida, Chico corre atrás dos gravetos que vou lançando para longe.

Tereó! ─ E ele vai.

Eju apy! ─ E ele vem.

Encontramos o açude calmo. Já vi peixes grandes, jacarés pequenos, cobras, cágados e capivaras nadando naquelas águas, mas hoje se espelham nelas apenas as poucas nuvens brancas do céu. Sedento após a brincadeira, Chico se refresca com a y-y transparente, antes de pedirmos licença aos xondaro e ka’aguy nhe’ para adentrar na floresta. Viemos para apreciar, digo em pensamento, como aprendi nas aulas das segundas-feiras. Logo entramos na mata, naquele mundo calmo e misterioso, onde, rodeada de árvores, respiro o cheiro úmido de terra e plantas, ouço o murmúrio da brisa entre as folhas, admiro os cogumelos e as yvoty à beira do caminho: vermelhas, amarelas, rosa, brancas. Sinto dezenas de olhos nos acompanhando, enquanto sigo o Chico pela pequena trilha. Vez ou outra me detenho para observar a reprodução de lagartas, cheirar uma flor ou acariciar a casca áspera de um tronco.

De volta em o'ó, ligo o computador. Faz tempo que quero saber mais sobre os Camarás, o povo que deu nome ao lugar onde moramos: Aldeia dos Camarás. Mas só acho informações sobre condomínios, aplicativos de entrega e retiros espirituais.  Então vou pelo município: Camaragibe – Terra dos Camarás, como informa a placa de boas-vindas na estrada. Só que... nenhuma informação sobre esses últimos. Na maioria das páginas, fala-se rápida e genericamente sobre se teriam habitado estas áreas antes da chegada dos portugueses, só para logo se estender, por parágrafos e parágrafos, sobre os engenhos da cana-de-açúcar. Quanto ao nome, "Camarás" supostamente se referiria a um arbusto presente na região. Ou seja: vivemos em terra de arbusto?

Não posso o deixar de lembrar que a Assembleia Provincial do Ceará, lá por 1866, chegou a declarar a inexistência de indígenas no território, ignorando todas as etnias ali presentes. Tudo isso para beneficiar a quem lucraria com a expropriação das suas terras. Tapeba, Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Anacé, Tapuya-Kariri, Kanindé, Tremembé, Gavião, Kalabaça, Potiguara, Tabajara, Tubiba-Tapuya, Tupinambá, Karão Jaguaribaras, Kariri - se hoje são oficialmente quinze os grupos indígenas no Ceará, imagina no século retrasado.

Será um caso parecido aqui em Pernambuco? Um caso de falsificação histórica, de invisibilização de um povo por interesses econômicos, de negação de direitos a quem poderia exigi-los? Não me surpreenderia. No fim das contas, os povos originários lutam há séculos contra um Estado que omite sua existência e saqueia suas terras.

Sigo incontáveis links, pulando de página em página, até que finalmente encontro uma referência aos indígenas Camarás. E tem mais: conversando com um amigo camaragibense, ele relata que antigamente os locais entendiam o topônimo assim mesmo, como nome de um povo. Com o tempo, porém, a outra versão – a dos arbustos – prevaleceu. É a versão oficial hoje em dia. E a gente sabe quem dita as versões oficiais, né? Mas tenho esperança: dia desses conheci uma criança daqui de Aldeia. A menina jura ter visto, na floresta atrás da casa, uma família indígena: velhos e jovens, kunhangue, avangue, kyringue.

─ Estão aqui sempre ─ me conta. ─ Andam pela mata, conversam, cantam, as crianças correm e brincam.

Ninguém mais vê, mas eu acredito. E espero que estejam por aqui mesmo. No fim das contas, esta é a terra deles. Aldeia dos Camarás, Camaragibe, Pernambuco, Brasil.


Referências bibliográficas:

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.

MILLER, Yvonne. Deus criou primeiro o tatu: crônicas da mata. 1ª ed. São Paulo: Aboio, 2022.

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Arquivo da autora
Yvonne Miller (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais.

Tem textos publicados em várias antologias – Paginário (Aliás, 2019), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck, 2021), Crônicas de uma Fortaleza obscena (Territórios, 2021), Prêmio de Literatura Unifor 2021: Crônicas (Unifor, 2022), Amores e Lendas (Tubo, 2022), Fraturas: Antologia de Contos 2º Concurso Literário Pintura das Palavras (2022), Tinha que ser mulher (2022), Abraçar e resistir: vozes feministas (Libertinagem, 2023) – e é uma das organizadoras e coautora da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Na vida real, é mestre em linguística e preparadora de livros didáticos.


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