Mostrando postagens com marcador Crônicas. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Crônicas. Mostrar todas as postagens

sábado, 2 de agosto de 2025

DEUS CRIOU PRIMEIRO O TATU, DE YVONNE MILLER

Por Marta Cortezão 

Compre AQUI!
Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, de Yvonne Miller, é um livro que reune várias crônicas autobiográficas ambientadas na Aldeia dos Camarás (PE), onde a autora residiu por três anos com sua família. Está dividido em quatro partes: Cheiro de terra nova ao sol, que relata as descobertas e ambientação naquele novo lugar; Com gosto de Cajá, que trata das aventuras, da relação com o lugar e seus personagens; Tempos de chuva e chumbo, que traz relevantes reflexões sobre a relação humanidade e natureza a partir de vivências cotidianas e, finalmente, Ipê amarelo, onde a narrativa alcança o ápice do lirismo como forma de reverenciar essa mata, esse chão que se pisa – um capítulo-oferenda que pede mantra, superação e espiritualidade, pois aqui se encerra um ciclo: a autora se despede da Aldeia do Camarás para aventurar-se por novos caminhos.

A crônica Deus criou primeiro o tatu, que dá título ao livro (parte III), aborda a mitologia Guarani e revela muito sobre a narrativa do sagrado e dos seres sobrenaturais em que este livro nos imerge: “Aprendi que, no dia em que Nhaderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes”. Para Mircea Eliade, “o mito designa uma ‘história verdadeira’ e, sobretudo, altamente preciosa, porque sagrada, exemplar e significativa” (1963, p. 9).  Para que o mundo existisse, o tatu foi imprescindível – a ele coube a função primordial de espalhar a areia pelo globo terrestre, imerso em água, para que se formassem os continentes. Eis uma “história verdadeira”, os continentes estão aí como prova. Quando a autora irrompe o solo sagrado da aldeia, utilizando a força e a leveza da narrativa de uma brilhante cronista para aguçar a curiosidade do leitor, ela funda uma nova Aldeia dos Camarás, cuja sacralidade nos revelará “histórias verdadeiras” com seu viés político, detalhista, descontraído e bem-humorado da realidade que seus sentidos capturam. Eis o livro como prova desta cosmogonia!

A narrativa de Miller experimenta um constante estado de simbiose com os seres da aldeia, como na crônica Vovô flui no fundo quintal, em que a autora reconhece, por seus traços temperamentais, ser neta do igarapé que serpenteia ao fundo de seu quintal – assim como o rio Watu é o avô ancestral dos Krenac. E o que dizer das personagens? Do gato Salém, do cachorro Chico, da lenta esperteza do teju (“Ah, se Luciano soubesse...”), das aranhas, dos morcegos, das formigas 'gigantes', das cobras, do pobre gafanhoto Bárbara Schneider, o peixe atolado, do homem nu... Há muito o que dizer deste universo misterioso. Há também o lado Dark da aldeia, cosmologicamente porque há “as coisas de Yvonne”! Portanto, indico a leitura de Deus criou primeiro o tatu: Crônicas da mata, um livro atravessado por encantarias, vivo, sensorial e tecido por “histórias verdadeiras”, como se percebe na crônica Aldeia dos Camarás (p. 98-101):

Já’a jaguatá, vamos caminhar!

Assim que ouve o comando, Chico vem correndo, senta do meu lado e empina o focinho para eu colocar o peitoral,

            ─ Muito bem, jaguá-i! ─ elogio.

Eu queria mesmo era ter aprendido tupi, mas o curso era aos sábados de manhã, e o que quero fazer num sábado de manhã, muito mais do que aprender qualquer coisa, é dormir. Logo optei pelo guarani. Não tem a ligação com o Nordeste que o tupi tem, mas meu coração de linguista é fácil de agradar. Foi assim que, durante três meses, passei as noites de segunda-feira sentada em frente ao computador, ouvindo o xamoi contar sobre cultura, lutas e língua do povo guarani. Aprendi que, no dia em que Nhanderu resolveu criar a Terra, encontrou o globo cheio de água. Então jogou um punhado de areia em cima e fez o primeiro animal: o tatu, que o ajudaria a espalhar a areia para formar os continentes. Sim, na mitologia guarani, Deus criou primeiro o tatu. Depois, quatro deuses menores para administrar o trabalho na Terra e só depois o homem. Aliás, o homem não, o ser humano. Aprendi também sobre a relação do povo guarani com a natureza, sobre os guardiões da floresta, os espíritos da montanha. E aprendi algumas palavras e frases dessa língua complicada e fascinante, que agora, após o curso, continuo praticando com Chico, meu companheiro de longos passeios.

Enquanto nos afastamos de casa pela rua de terra batida, Chico corre atrás dos gravetos que vou lançando para longe.

Tereó! ─ E ele vai.

Eju apy! ─ E ele vem.

Encontramos o açude calmo. Já vi peixes grandes, jacarés pequenos, cobras, cágados e capivaras nadando naquelas águas, mas hoje se espelham nelas apenas as poucas nuvens brancas do céu. Sedento após a brincadeira, Chico se refresca com a y-y transparente, antes de pedirmos licença aos xondaro e ka’aguy nhe’ para adentrar na floresta. Viemos para apreciar, digo em pensamento, como aprendi nas aulas das segundas-feiras. Logo entramos na mata, naquele mundo calmo e misterioso, onde, rodeada de árvores, respiro o cheiro úmido de terra e plantas, ouço o murmúrio da brisa entre as folhas, admiro os cogumelos e as yvoty à beira do caminho: vermelhas, amarelas, rosa, brancas. Sinto dezenas de olhos nos acompanhando, enquanto sigo o Chico pela pequena trilha. Vez ou outra me detenho para observar a reprodução de lagartas, cheirar uma flor ou acariciar a casca áspera de um tronco.

De volta em o'ó, ligo o computador. Faz tempo que quero saber mais sobre os Camarás, o povo que deu nome ao lugar onde moramos: Aldeia dos Camarás. Mas só acho informações sobre condomínios, aplicativos de entrega e retiros espirituais.  Então vou pelo município: Camaragibe – Terra dos Camarás, como informa a placa de boas-vindas na estrada. Só que... nenhuma informação sobre esses últimos. Na maioria das páginas, fala-se rápida e genericamente sobre se teriam habitado estas áreas antes da chegada dos portugueses, só para logo se estender, por parágrafos e parágrafos, sobre os engenhos da cana-de-açúcar. Quanto ao nome, "Camarás" supostamente se referiria a um arbusto presente na região. Ou seja: vivemos em terra de arbusto?

Não posso o deixar de lembrar que a Assembleia Provincial do Ceará, lá por 1866, chegou a declarar a inexistência de indígenas no território, ignorando todas as etnias ali presentes. Tudo isso para beneficiar a quem lucraria com a expropriação das suas terras. Tapeba, Pitaguary, Jenipapo-Kanindé, Anacé, Tapuya-Kariri, Kanindé, Tremembé, Gavião, Kalabaça, Potiguara, Tabajara, Tubiba-Tapuya, Tupinambá, Karão Jaguaribaras, Kariri - se hoje são oficialmente quinze os grupos indígenas no Ceará, imagina no século retrasado.

Será um caso parecido aqui em Pernambuco? Um caso de falsificação histórica, de invisibilização de um povo por interesses econômicos, de negação de direitos a quem poderia exigi-los? Não me surpreenderia. No fim das contas, os povos originários lutam há séculos contra um Estado que omite sua existência e saqueia suas terras.

Sigo incontáveis links, pulando de página em página, até que finalmente encontro uma referência aos indígenas Camarás. E tem mais: conversando com um amigo camaragibense, ele relata que antigamente os locais entendiam o topônimo assim mesmo, como nome de um povo. Com o tempo, porém, a outra versão – a dos arbustos – prevaleceu. É a versão oficial hoje em dia. E a gente sabe quem dita as versões oficiais, né? Mas tenho esperança: dia desses conheci uma criança daqui de Aldeia. A menina jura ter visto, na floresta atrás da casa, uma família indígena: velhos e jovens, kunhangue, avangue, kyringue.

─ Estão aqui sempre ─ me conta. ─ Andam pela mata, conversam, cantam, as crianças correm e brincam.

Ninguém mais vê, mas eu acredito. E espero que estejam por aqui mesmo. No fim das contas, esta é a terra deles. Aldeia dos Camarás, Camaragibe, Pernambuco, Brasil.


Referências bibliográficas:

ELIADE, Mircea. Aspectos do mito. Lisboa: Edições 70, 1963.

MILLER, Yvonne. Deus criou primeiro o tatu: crônicas da mata. 1ª ed. São Paulo: Aboio, 2022.

 ☆_____________________☆_____________________☆  

Arquivo da autora
Yvonne Miller (*1985) é natural de Berlim, mas prefere o calor do Nordeste brasileiro, onde mora desde 2017 com sua esposa, enteada, gato e cachorro. Alemã de nascença, brasileira de alma, apaixonada pela crônica, linguista, admiradora de cactos, geminiana e muitas coisas mais.

Tem textos publicados em várias antologias – Paginário (Aliás, 2019), A Banalidade do Mal (Mirada, 2020), Histórias de uma quarentena (Holodeck, 2021), Crônicas de uma Fortaleza obscena (Territórios, 2021), Prêmio de Literatura Unifor 2021: Crônicas (Unifor, 2022), Amores e Lendas (Tubo, 2022), Fraturas: Antologia de Contos 2º Concurso Literário Pintura das Palavras (2022), Tinha que ser mulher (2022), Abraçar e resistir: vozes feministas (Libertinagem, 2023) – e é uma das organizadoras e coautora da coletânea de contos cearenses Quando a maré encher (Mirada, 2021). Na vida real, é mestre em linguística e preparadora de livros didáticos.


segunda-feira, 12 de junho de 2023

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - O DIA DOS NAMORADOS... Por Rosangela Marquezi


CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA
/04


 O DIA DOS NAMORADOS

POR ROSANGELA MARQUEZI


Sempre que datas comemorativas se apresentam no calendário estático da parede [porque, definitivamente, não é no dinâmico calendário da vida] pressões se fazem para que os celebremos.

E, soltas as pressões externas, internas também vão sendo criadas e logo se avolumam no peito e na alma. Se é Natal, lá vamos nós comprarmos presentes para amigos e família... Ou seria comprarmos amigos e família com presentes? Se é Dia das Mães ou dos Pais, lá vamos nós mostrarmos nosso amor carregado de culpa por falta de atenção em forma de pantufas e pijamas. Se é Dia dos Namorados... Bom, se é Dia dos Namorados, lá vamos nós, também, comprarmos amor em forma de presente, mais caro, é certo, pois o ser amado e o ser amante andam cada vez mais exigentes, só não sei se verdadeiramente de amor ou de sinais de amor. 

Mas, me pergunto, quem, afinal, instituiu que o amor precisa disso? Lembro Fernando Pessoa, em seu heterônimo Alberto Caeiro, que dizia que agora, que estava a sentir amor, interessava-se pelos perfumes das flores, simples assim, como deveria ser. Canta o poeta que, antes, só sabia que elas existiam e que tinham cheiro. Agora, ele sabia, “[...] com a respiração da parte de trás da cabeça. / Hoje as flores sabem-me bem num paladar que se cheira. / Hoje às vezes acordo e cheiro antes de ver.” 

Amor, para mim, é isso: simplicidade, no ver e no ser e no estar e no fazer e no demonstrar. Um ver o que antes só existia em si mesmo. Um ser eu num outro eu, mas mantendo, eu, o meu eu, e o outro o seu eu [Talvez sem vírgulas, mas mantendo cada eu no seu lugar]. Um estar no mundo com um outro, mas respeitando esse outro e esse outro a mim. Um fazer de cada dia uma festa, não de fantasia, mas de verdades. Um demonstrar de sentimentos-atitudes mais do que exagerados presentes muitas vezes sem estar presente.

Há um bom tempo sozinha, só amando o que não exige reciprocidade, percebo à minha volta uma busca angustiante de manutenção desse sentimento. E, nessa busca, vejo perdas de rumo, paradas no tempo, chuvas ácidas de desejos não realizados a encher caldeirões borbulhantes. Eu, que hoje me creio mais livre disso, só observo, mas confesso que, muitas vezes, em outros tempos, me vi também presa em um algum desses caldeirões. Já amei. Se acreditei no amor, não sei. Não sou crente, mas também não descrente, porque, como diz o ditado castelhano: "No creo en brujas, pero que las hay, las hay".

[É fechar os olhos que me vejo, às vezes, parada na estação esperando a correspondência do amor. Mas, ao ver o vagão vazio, o maquinista me avisa que ele saltou um ponto antes. Talvez, na próxima semana.]

Enfim, que cada amor tem um jeito. Enfim, que quem quer amar, ama, não pede opinião. Enfim, que amar é bom. Enfim, que reciprocidade nunca é na mesma medida. Enfim, que o comércio no Dia dos Namorados continue vendendo rosas, perfumes, dixes e que também haja muito diz-que-me-diz sobre o amor. Enfim, que essa reflexão já tomou outros caminhos e o que era para ser crítica virou análise para divã, então, viva o amor de forma que ele ainda lhe permita arrepios, de prazer ou de alegria, pois este talvez seja o sentimento que verdadeiramente buscamos...

Abraço. Seja feliz.

Rosangela Marquezi

Professora de formação e atuação que, às vezes, acredita, por mais que não o digam as palavras e as ações, no amor...


DICAS DA RÔ

1. Ouça Naquela estação, música de Adriana Calcanhoto, e veja – e está tudo bem – que amores se vão...

                                “E agora, tudo bem
                                 Você partiu
                                 Para ver outras paisagens”

2. Deguste os poemas de meu silêncio lambe tua orelha, da poeta amazonense Marta Cortezão. Em versos que dialogam com outros tantos versos de outras tantas mulheres, Marta nos permite adentrar no âmago de palavras e sentimentos que há muito nos podem parecer perdidos, mas que estão aí... A lamber nossas orelhas... Entre essas palavras/sentimentos, o amor também aparece. Vivo, latente e palpável. Está presente, por exemplo, nos versos de hermetismos, em que dialoga com a escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís.

"O fenômeno mais herético é o amor. Ele não é bem recebido nem tolerado porque é uma força sem desistência e que não se revoga a si mesma." (Agustina Bessa-Luís)

                            hermetismos

o amor disse-me mistérios
regozijou-me primaveras
e tudo é doce enigma em mim
 
o dia levantou crepúsculo
em meu coração semente
era chuva começo flores
porque o amor passarinho
segredava hermetismos
cantando águas distantes
 
ele ainda chove decidido
nas noites estrelas lua grande
quando o amor travessia longe
nunca não e sempre sim

3. Leia O amor nos tempos do Cólera, do escritor colombiano, ganhador do Nobel de Literatura de 1982, Gabriel García Márquez, o El Gabo, e entenda que há amores dentro dos quais se vivem outros amores e que há amores que nunca se esquecem...

“Florentino Ariza sabia disto e nunca fez nada para desmenti-lo. [...] Tal como as outras mulheres incontáveis que amou, e mesmo as que lhe agradavam e o achavam agradável sem amá-lo, aceitou-o como aquilo que era na realidade: um homem de passagem.”
                          
“Florentino Ariza, por outro lado, não deixara de pensar nela um único instante desde que Fermina Daza o rechaçou sem aplicação depois de uns amores longos e contrariados, e haviam transcorrido a partir de então cinquenta e um anos, nove meses e quatro dias. Não tivera que manter a conta do esquecimento fazendo uma risca diária nas paredes de um calabouço, porque não se havia passado um dia sem que acontecesse alguma coisa que o fizesse lembrar-se dela.”
                     
"— E até quando acredita o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho? — perguntou. 
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.  
— Toda a vida — disse.”


4. Leia o conto Pomba Enamorada ou uma história de amor, da escritora brasileira Lygia Fagundes Telles. Na história, a protagonista se enamora por Antenor, com quem dançou apenas uma vez, mas se apaixonou ao ponto de, mesmo sendo rechaçada por ele, continuar a amá-lo vida afora. E tanto que, mesmo casada, com outro, ela continua a amar essa imagem de homem que projetou sobre Antenor... No final, já velha, acreditando em uma cartomante, vai novamente ao encontro dele... A nós, leitores, fica a possibilidade de criarmos um desfecho: haverá um reencontro ou uma ruptura definitiva? Enfim... Leia e perceba como ficar amarrada a uma ideia de amor é frustrante.

“Encontrou-o pela primeira vez quando foi coroada princesa no Baile da Primavera e assim que o coração deu aquele tranco e o olho ficou cheio d’água pensou: acho que vou amar ele pra sempre.”

“Quando engravidou, mandou-lhe um postal com uma vista do Cristo Redentor (ele morava agora em Piracicaba com a mulher e as gêmeas) comunicando-lhe o quanto estava feliz numa casa modesta mas limpa, com sua televisão a cores, seu canário e seu cachorrinho chamado Perereca.”

“[...] disse que tudo isso era passado, que já estava ficando velha demais pra pensar nessas bobagens mas no domingo marcado deixou a neta com a comadre, vestiu o vestido azul-turquesa das bodas de prata, deu uma espiada no horóscopo do dia (não podia ser melhor) e foi.”


5. Leia poemas do livro Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, do poeta chileno Pablo Neruda, ganhador do Nobel de Literatura de 1971. É o segundo livro do autor e, mesmo tendo sido publicado pela primeira vez em 1924, é o livro de poesia mais vendido em língua espanhola. O poema n.º 20 é um dos mais belos/tristes sobre amor que se perde.

"Posso escrever os versos mais tristes esta noite. 
 
Escrever, por exemplo: a noite está estrelada,
E cintilam azuis, os astros, desde longe. 
 
[...] 
 
Já não a quero, é certo, mas quanto a quis.
Minha voz buscava o vento para tocar seu ouvido. 
 
De outro. Será de outro. Como antes de meus beijos.
Sua voz, seu corpo claro. Seus olhos infinitos. 
 
[...] 
 
Porque, em noites como esta, a tive entre meus braços,
minha alma não se contenta em havê-la perdido. 
 
Ainda que esta seja a última dor que ela me causa,
e estes sejam os últimos versos que eu lhe escrevo."

6. Leia A insustentável leveza do ser, do escritor tcheco Milan Kundera. Uma história muito marcante sobre o que se busca verdadeiramente em relacionamentos. Tomas, um dos protagonistas, busca alegria, e quando não encontra parte em busca dela em outros corpos/amores. Mas essa busca também lhe causa tristezas...

"Mas seria possível ainda falar de alegria? Assim que ele saía para encontrar uma de suas amantes, perdia o interesse e jurava a si próprio que seria a última vez."

7. Aprecie a pintura Os amantes (The Lovers, 1928), do pintor surrealista René Magritte (1898-1967). Pintura perturbadora que nos traz a ideia de um amor proibido, um amor que nos cega, representado pelos rostos que se unem em um beijo, mas que estão cobertos por véus brancos... Caso esteja passeando em Nova Iorque, aproveite e visite o Museu de Arte Moderna (MoMA) e veja in loco a pintura, que está lá exposta.

Fonte: https://www.moma.org/collection/works/79933?artist_id=3692&page=1&sov_referrer=artist

☆_____________________☆_____________________☆


Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que, às vezes, acredita, por mais que não o digam as palavras e as ações, no amor... Nas horas vagas poucas da vida, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. É membro da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR.

Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017).

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - ENCERRAMENTOS DE TEMPO... Por Rosangela Marquezi



CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA
/03


 ENCERRAMENTOS DE TEMPO


POR ROSANGELA MARQUEZI






Foto: arquivo pessoal da autora / 2022.
Presa em um calendário que não condiz com meu tempo de ser. Eis a sensação que tenho em períodos que antecedem o fim e o nascer de tempos estipulados em folhinhas de almanaque. Em muitos momentos da vida, tudo que eu queria era não ver o tempo passar, nessa marcação arbitrária que inventaram sem nos consultar. Sinto, às vezes, que inícios e finais de tempo são apenas imposições de um sujeito ou de vários sujeitos que, não satisfeitos em simplesmente deixarem a vida fluir, resolveram inventar um calendário e nele nos prenderam.

O calendário não entende (e não aceita) que tem momentos na vida que tudo o que queremos ser é a Carolina, do Chico Buarque, aquela moça que não viu o tempo passar na janela, mesmo que, lá fora, uma rosa tenha morrido, uma festa tenha acabado, um barco tenha partido... Simples assim, como se pudéssemos cruzar o espaço-tempo ao ritmo da canção de Maria Bethânia e Zeca Pagodinho: “Deixa a vida me levar / Vida leva eu / Deixa a vida me levar / Vida leva eu”;

(Mas não! A vida urge urgente e cortante, cheia de rimas engraçadinhas para nos desviar a atenção do incerto mundo aberto!)

E corremos. Como formigas que perderam a direção do formigueiro. E voamos. Como mariposas seduzidas pela brilhante luz que as distraem do seu destino. E isso tudo para que, no dia primeiro de janeiro, novamente nos encontremos na linha de partida da corrida da vida.

Felizes os que conseguem cruzar a linha do tempo e não se quedam ao fim anual da jornada. Felizes os que entendem que calendários são arbitrários e vivem o tempo perfeito do momento presente. Para esses, há esperança. Para os desencantados, não sei...

O que sei é que esta minha rabugice logo passa, pois sei que nada melhor do que um tempo – sim, tempo – atrás do outro, com uma folguinha para respirar, para que tudo volte ao seu (in)devido lugar. E porque sei disso é que lhes digo que esta reflexão não é sobre desesperança, mas esperança-certeza de que, como tão bem ilustrou Heráclito de Éfeso, se ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, seremos novas mulheres e novos homens a cada segundo desta vida!!

E isso é transcender a existência! É também acreditar que todos as estações se fazem e refazem dentro de cada um de nós, passageiros efêmeros desse breve espaço-tempo de um bater de asas de uma borboleta que é a nossa história.

Seja feliz!



DICAS DA SUSTÂNCIA


1. Ouça Carolina, de Chico Buarque, e entenda que nem sempre precisamos estar atentos ao passar do tempo! A canção ficou em terceiro lugar no II Festival Internacional da Canção Popular (FIC), em 1967. Ouça AQUI!

2. Leia Como parar o tempo, do escritor inglês Matt Haig. É uma leitura bem instigante sobre a jornada de um homem, Tom Hazard, que, por causa de uma alteração genética, não envelhece da mesma forma que os seres humanos normais. Dessa forma, ele perpassa séculos da nossa história... O livro discute questões como imortalidade e como tudo vai se repetindo neste mundo... Paixões, medos, angústias, guerras. O livro foi publicado aqui no Brasil em 2017, pela Harper Collins. 

Eu fui pessoas que odiei e pessoas que admirei. Fui divertido e chato e feliz e infinitamente triste. Já estive do lado certo e do errado da história. 

3. Ouça a música Sobre o tempo, do Pato Fu, lançada no álbum Foi gol de quem?, de 1995. É uma música que, mesmo não tendo uma letra que nos faça profundamente refletir, nos faz dançar ao sabor do tempo... Uma delícia. Ouça AQUI!

4. Veja o quadro Persistência da memória (1931), do pintor surrealista Salvador Dalí. Se for possível, visite o Museu de Arte Moderna da Nova York (MoMA) e veja-a ao vivo! Se não puder realizar este passeio, a conheça a partir do site do MoMA (https://www.moma.org/collection/works/79018! Com seus tradicionais relógios “derretendo”, a pintura de Dalí traz um cenário onírico, que faz um diálogo, talvez, com a Teoria da Relatividade, de Einstein, além de trazer a ideia de que o tempo passa sem que possamos controlá-lo. É uma pintura que merece ser vista e pensada!

Foto: reprodução da Internet


5. Deguste o poema Seiscentos e sessenta e seis, do poeta alegretense Mario Quintana, publicado originalmente no livro Esconderijos do tempo (1980), no qual o autor traz a ciência da inexorabilidade do tempo...

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

6. Leia Em busca do tempo perdido (1913-1927), um clássico da literatura mundial, escrita por Marcel Proust. São sete livros nos quais o autor, a partir de um momento em que degusta uma Madeleine, mergulhada no chá, começa a lembrar da infância e vai nos trazendo uma gama imensa de personagens, que acabam se encadeando em diferentes histórias na França da Belle Époque. No último volume, O tempo redescoberto, o narrador por fim percebe que só poderá trazer o passado de volta a partir de sua escrita, entendendo então sua vocação: escrever um grande romance. Uma das traduções aqui para o Brasil foi feita por diferentes tradutores, entre eles os famosos poetas Mario Quintana (volume 1 a 4); Manuel Bandeira (volume 5), junto com Lourdes Sousa de Alencar; e Carlos Drummond de Andrade (volume 6); O volume 7 foi traduzido pela importante crítica literária Lúcia Miguel Pereira.

7. Corra a uma boa panificadora e coma uma deliciosa Madeleine, famoso biscoito em forma de concha, originário da região de Lorraine, na França.

Foto: reprodução da Internet


☆_____________________☆_____________________☆


Rosangela Marquezi
[foto arquivo pessoal da autora]
Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação, mas aprendente de novos olhares por opção... Nas horas vagas, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal.

Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017).

terça-feira, 18 de outubro de 2022

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - SEXO E VIDA... Por Rosangela Marquezi

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA/02


 SEXO E VIDA


POR ROSANGELA MARQUEZI










Hoje, quando acordei, me deu uma vontade de sussurrar no seu ouvido e dizer vamos fazer amor... Acordei com vontade de sexo e essa vontade, depois de uma certa idade, não é diária não. Não diria que é rara, mas é demorenta! E aí... como você não estava lá e sozinha não era o que eu queria, resolvi escrever sobre, porque afinal, a escrita é um modo de prazer, principalmente se pensarmos o texto a partir da acepção derrideana de mimesis, em que o real é, de certo modo, réplica do que já foi contado, descrito...


Mas aí também já é muita filosofia para algo que deveria ser bem mais simples, olho no olho, corpo no corpo... Então, c’est la vie! A gente vai fazendo e desfazendo a vida, ou – como já citei Derrida – construindo e descontruindo a vida da forma que a gente pode e quer. E viver, como dizia o grande Guimarães Rosa, “é muito perigoso”, mas também é gostoso. Penso que é nos aprendizados que a gente concebe a vida...

E se de sexo passei para a vida é porque ambos são inseparáveis, se não quisermos imaginar uma sociedade à la Admirável Mundo Novo, ou a qualquer outra história de mundos distópicos, nos quais a perpetuação da espécie é em laboratório, apenas... E se são inseparáveis, é de se pensar que – no tempo atribulado em que estamos vivendo – há muita gente sem vida, ou sem sexo...

Manter o desejo, essa pulsão pela vida ou pelo sexo, não é fácil depois de um dia cansativo, em que o trabalho é que determina o resto de nosso tempo... Felizes e afortunados os que – ao fim de um exaustivo dia – ainda mantém essa pulsão viva! O cansaço, as dores, as angústias, as descrenças e a desesperança matam vontades, lavam libidos, levam desejos embora!

Enfim, que o “meu” desejo transformou-se em texto e, nas tessituras da vida, vou levando e abraçando o que vem pela frente, na ânsia de calmaria dos fortes ventos que nos desmantelam. E tecer a vida é, também, escolher os fios e cores que combinam... Ou não, já que cores são apenas uma percepção visual. A grande questão que se põe é, então: educar o olhar para boas escolhas de sexo e de vida!

E, para boas escolhas, corpo e alma precisam conversar mais demoradamente para que a vida ande nos eixos – não que andar fora dos trilhos não seja bom, de vez em quando...

Abraço. Seja feliz.


DICAS DA SUSTÂNCIA


1. Aprecie a obra O abraço (The embrace – Lovers II), de Egon Schiele. Pintada em 1917, no Expressionismo vienense, a pintura mostra dois corpos nus, em um abraço, entregando-se ao desejo, em uma praia. Por ser expressionista, nos leva a aquele lugar, como se fôssemos voyeurs a liberar toda a nossa curiosidade. É uma pintura belíssima. Aproveite e visite o site em que estão as outras pinturas de Schiele: http://www.egonschieleonline.org/ .  


2. Ouça Amor I love you, de Marisa Monte, com participação de Arnaldo Antunes recitando um trecho de O primo Basílio, de Eça de Queiroz. Marisa compôs a música em parceria com Carlinhos Brown. Música linda, que arrepia e faz querer contar “[...] pras paredes / Coisas do meu coração”. O excerto recitado por Arnaldo:

[...] tinha suspirado, tinha beijado o papel devotamente! Era a primeira vez que lhe escreviam aquelas sentimentalidades, e o seu orgulho dilatava-se ao calor amoroso que saia delas, como um corpo ressequido que se estira num banho tépido; sentia um acréscimo de estima por si mesma, e parecia-lhe que entrava enfim numa existência superiormente interessante, onde cada hora tinha o seu encanto diferente, cada passo conduzia a um êxtase, e a alma se cobria de um luxo radioso de sensações! 

3. Leia O primo Basílio, do escritor Eça de Queiroz! Publicado em 1878, o romance conta a história de Jorge e Luísa e, é claro, do primo Basílio, com o qual a protagonista se envolve acreditando ser amada... Retrato da burguesia da época, o romance é um dos mais importantes do Realismo Português. Nele, o autor analisa de uma forma dura e crua a sociedade e suas hipocrisias. Luísa é uma personagem emblemática, que permanece na vida da gente mesmo após o término da leitura. Delicie-se com mais um trechinho do livro, que vem na sequência do que é declamado por Arnaldo Antunes em Amor I love you:

Ergueu-se de um salto, passou rapidamente um roupão, veio levantar os transparentes da janela... Que linda manhã! Era um daqueles dias do fim de agosto em que o estio faz uma pausa; há prematuramente, no calor e na luz, uma tranquilidade outonal; o sol cai largo, resplandecente, mas pousa de leve, o ar não tem o embaciado canicular, e o azul muito alto reluz com uma nitidez lavada; respira-se mais livremente; e já não se vê na gente que passa o abatimento mole da calma enfraquecedora. Veio-lhe uma alegria: sentia-se ligeira, tinha dormido a noite de um sono são, contínuo, e todas as agitações, as impaciências dos dias passados pareciam ter-se dissipado naquele repouso. Foi-se ver ao espelho; achou a pele mais clara, mais fresca, e um enternecimento úmido no olhar — seria verdade então o que dizia Leopoldina, que não havia como uma maldadezinha para fazer a gente bonita? Tinha um amante, ela! 

4. Assista a série Modern Love, na Amazon Prime. São duas temporadas, uma de 2019 e a segunda de 2021. A série é baseada em uma coluna do New York Times, de título homônimo, e apresenta, de acordo com o The Hollywood Report, o amor em suas inúmeras formas: sexual, romântico, familiar, platônico e também o amor próprio. Até o momento, são duas temporadas! Ah! Na segunda temporada tem o astro de Game of Thrones, o maravilhoso Kit Harington, no terceiro episódio, fazendo, inclusive, uma referência ao seriado!

5. Leia Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, para lembrar sempre o perigo que corremos, enquanto humanidade, de nos desumanizarmos!! O livro foi publicado em 1932 e a sua narrativa se passa numa Londres futura, do ano 2540... Mas que parece cada vez mais perto!! O título vem da peça A tempestade, do imortal dramaturgo inglês William Shakespeare.



☆_____________________☆_____________________☆

Rosangela Marquezi
[foto arquivo pessoal da autora]

Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação, mas aprendente de novos olhares por opção... Nas horas vagas, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal.


Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017).

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

FERAS SOLTAS, DE LULIH ROJANSKI

ENTRE FERAS E SILÊNCIOS Por Marta Cortezão Arquivo da autora Lulih Rojanski   nasceu no Paraná. É descendente de imigrantes poloneses que vi...