UM CORAÇÃO EM SOL MAIOR (Por Marta Cortezão)
Palavra cantada é palavra voando.
{James Joyce}
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Entre linhas e cordas, de Valéria Pisauro, revela um caminho estreito que aproxima palavra e som
e dá asas a inúmeras imagens poéticas, comparações e metáforas. Nestas linhas e
cordas, de Valéria Pisauro, a poesia está contaminada de musicalidade. De um
lado, a poesia e sua natureza verbal; do outro, a música com sua natureza
sonora. Duas artes distintas, de caráter único e contraditório, mas completamente
correlatas. Uma relação que surge desde a própria origem cantada da poesia e que
se amplia nas cantigas poéticas e melodiosas de trovadores ou menestréis para
nos legar as canções populares e seguir, cada uma, seu caminho, suscitando
acaloradas e recentes discussões entre poesia e música na contemporaneidade.
Entretanto, em Entre linhas e cordas, esta relação expõe um sem-fim de
possíveis aproximações entre palavra e música, ainda que na contramão (p.
21) de “um violão sem cordas, reverso do verso, / Coroa e cara em inversão”, porque
assim como o paradoxo vocábulo-som, “somos guerra e flor, / Acordes de
silêncio, / Rima sem poesia, / Refrão sem música”.
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Ler Pisauro é dedilhar as cinco linhas de um
pentagrama e sentir o calor vibrante de uma clave de sol; é percorrer as
palavras, os meandros de seus versos, sussurrando o princípio-fim de um ruído
para saborear tons e semitons de suas metáforas ascendentes ou descendentes; é glosar
o mote de um humano coração em Sol Maior, em uma sequência completa de todas as
notas para perceber, de ouvido, a (des)afinação das cordas que movimentam o
mundo:
“Meu canto é poema, é seca, é fome
Estancado nos olhos dos homens, dos
homens!” (Bate Tambor, p. 40)
“Não risca o risco da hipocrisia.
No meio da praça, no inteiro da
raça,
Nas ruas, nos guetos, nas chacinas,
Marginais no anonimato dos
jornais.” (Cruz, p. 59)
“E nos fios, corais de pássaros
Regem a aresta do cotidiano
Sonhos em Sol Maior
O silêncio é outro engano.” (Aresta,
p. 108)
“Quero o teu beijo cifrado (...)
Amor bemol e sustenido,
Com o arco e o violino,
Com todos talvez e então...
Acorde sonante,
Que afina minha canção.” (Afinação,
p. 116)
“No banco do jardim público
Raiz de pedra
Há na luz uma cor amarga
De quem vive às margens
Entre escombros da cegueira
Sob os pés de quem passa.” (Jardim,
p. 149)
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Nesse compasso Entre linhas e cordas, também se
percebe a presença de uma poeta admiradora e conhecedora da cultura brasileira.
Não é à toa que o primeiro poema que abre o livro é Antropomorfose Brasileira
(p. 17)! Nele, a voz lírica passeia pelo Brasil cultural, literário,
musical e poético. O Brasil que abraça e acolhe a sua rica diversidade, é o
Brasil ideal que se harmoniza em suas diferenças feito som e palavra:
“De Macunaíma sou cria,
Antropofagia, Abaporu,
Bicho-do-mato, tupiniquim,
Grão da massa, Jeca Tatu.
Dom Quixote brasileiro,
Poeta louco, botequim.
(...)
Não ouvi o cantar do sabiá.
As pedras do meu caminho,
Deixei pela estrada, aprendi
apreciar,
Deixei tudo a Deus dará, oxalá!”.
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Ser cria de Macunaíma –personagem anti-herói, criado por
Mário de Andrade–, vai além do significado histórico-literário-cultural e alcança
um outro de grande valia, que se reconhece e se encontra no elo perdido de suas
raízes ancestrais. Assim como Macunaíma, a voz lírica, no poema Muiraquitã
(p.64) de forte estribilho, parte em busca do amuleto extraviado, que,
aqui, representa o legado-manifesto de um Matriarcado Pindorama de mulheres
guerreiras, as Icamiabas:
“No espelho da lua cheia,
Penitentes castas arqueiras,
Desciam de Iaci-Taperê,
Com mil flechas certeiras.
Purificação a noite inteira,
Que do ventre da terra sorri,
São amazonas guerreiras,
Cantos de carícias plenas,
Da guerreira nação Tupi.
São amazonas guerreiras,
Cantos de carícias plenas,
Da guerreira nação Tupi.”
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E de uma Pauliceia Tupiniquim (p. 131) da
contemporaneidade se pode ouvir o canto lamentoso de uma “Cidade-Mãe, de braços
de concreto”, prestes a ser devorada pelo neoliberalismo dominante e nefasto e
que agoniza nas mazelas sociais, essa “fumaça que embaça o amanhã”: “Madrasta
que abraça toda raça, / Herança que não muda de mãos. / Cidade-realidade, sonho
de diversidade, / Disneylândia periférica, favelas alçadas / Cassetetes,
Cracolândia, Anhangabaú / E os meninos passeiam seminus pelas calçadas.”. Em
contrapartida há as Manhãs de Minas (p. 127) que “Despertam o aroma, a
melodia”. Uma Minas Gerais da infância da voz lírica, através da qual “a vida
renasce todos os dias”. São as “Manhãs meninas, manhãs de Minas.”.

A poética de Pisauro é uma sonata estradeira em versos
que evidencia um Brasil profundo, marcado por um compasso particular, diverso e
vertical, de temporalidades histórico-poéticas. Entre linhas e cordas é
também convocação, compromisso humano, engajamento, solidariedade política
entre mulheres, essência e amor necessários:
“Na esteira das grandes cheias
Ribeirinhas bailarinas cativeiras
Pele vermelha, mulher-sereia
A cantarolar nas beiras dos rios.
Filhas de velhas benzedeiras
Olha o azul sonha com o mar
Correnteza de oferendas
Nas águas de todo lugar.” (Rede
de Rezas, p. 56)
“Dentro de mim liberdade
Tarsilas, Severinas, Marias
Cativas, sagradas e profanas (...)
Múltiplas que choram e riem
Ramos cortados que insistem em
florir.” (Múltiplas, p. 77)
“Ela é mulher, é quem ela quer,
Ela dança com as ninfas,
Já teve família, sonhou menina,
Hoje, Maria de todos os dias,
Dos solitários, a companheira,
Dos abandonados, a alegria.
É novela e favela, é fantasia.
Na calçada é plateia, dama, meretriz,” (Quem Ela
Quer, p. 87)
“Giram saias rendadas
No terreiro, na senzala
Lendas e causos em Iorubá
Sonhos antigos afogados” (África
Distante, p. 198)

Findo este itinerário com a força
da “palavra cantada” repousando no ninho que levo no peito, agora embevecido
pelas relevantes pausas necessárias que fui amealhando pelo caminho. É tempo de
um silêncio providencial para libertar a palavra da opressão de ser verbo, porque
o poema também se cansa, está sem voz, sem melodia, Sem pauta (p. 191):
“o poema está com fome, de vida, do homem, / Sem pauta vagueia distraído, /
Marca passo das trincheiras, / Sem espaço em linhas vazias.”. A você que chegou
agora, siga a dica de viagem, pois é sabido que a “poesia arde, salva uma vez
mais”, portanto, Pisaurize-se!
A aquisição de livros é diretamente com a autora via redes sociais. Acompanhe a produção musical de Valéria Pisauro pelo Youtube e Spotify! _____________________
PISAURO, Valéria. Entre linhas e cordas. Jundiaí (SP): Telucazu Ediçoes, 2023.
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Valéria Pisauro nasceu em Campinas-SP, exerce intensa atividade cultural na literatura e na música, como professora, pesquisadora, palestrante, poeta, contista, cronista, roteirista e letrista musical. Graduada em Letras e em História da Arte, a escritora trafega com muita personalidade, versatilidade e desenvoltura por uma criaçao artística, que vem angariando críticas positivas, rendendo à poeta um lugar de destaque no cenário poético e musical brasileiro. o requinte de suas poesias/letras prima pela pluralidade de recursos, fruto de pesquisas, onde a variaçao de estilos traduz a força e a leveza de um trabalho sofisticadamente inovador, pendulando com naturalidade entre o rebuscamento e o coloquial. Participa de certames culturais, concursos literários e de reconhecidos festivais de música, tendo a felicidade de ter sido premiada em muitos deles.
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