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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

AUTORA DA VEZ: “ETERNIDADE X FINITUDE”, DE MÁRCIA MACHADO - POR HYDELVÍDIA CAVALCANTE


AUTORA DA VEZ/02

“ETERNIDADE X FINITUDE”, de Márcia Machado


Por Hydelvídia Cavalcante


Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

Será?

Sou estranha por não me apoquentar com isso?

A exemplo de Drummond,

“O presente é a minha matéria...”

Se a espiritualidade

simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

isso me incomoda.

Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...”

Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

boa, má?

Certa, errada,

ora sim, ora não

antíteses me (in)definem...

Antes de iniciar nossa apreciação, precisamos observar que, como linguista, faz anos que não nos dedicamos à análise de obras literárias. Assim sendo, pedimos desculpas por não enveredarmos pelas trilhas do saber literário que ora não temos condições de apresentar. 

O título do poema de Márcia Elizabeth Machado nos chamou atenção, logo que iniciamos a leitura. Eternidade x finitude são palavras que denotam, para nós, situações opostas, pois o que é eterno não tem fim. A eternidade se aliaria, portanto a uma situação de infinitude. Percebemos, de antemão, mesmo antes da leitura do texto, que o poema se envolveria com os aspectos dualísticos que induzem a uma análise da vida.

Duas características expressam, sobremaneira, os diferentes sentidos do poema Eternidade x finitude: a intertextualidade e as marcas literárias da Escola Barroca. A intertextualidade se faz presente não apenas quando menciona o discurso já dito de alguns escritores brasileiros, mas também quando a autora expressa o seu próprio sentimento a respeito do tema. Quanto às marcas literárias da Escola Barroca, são facilmente percebidasas características de dualidade, contraste, inquietação, sentimento de inferioridade, pessimismo, ênfase na dualidade matéria e espírito, dúvidas, questionamentos, religiosidade, dubiedade de sentidos e as figuras de linguagem como metáforas, antíteses, paradoxos, hipérboles e interrogações. Duas características que marcaram a poesia barroca também se fazem presente no poema em análise: o cultismo ou gongorismo que se evidencia em um jogo de palavras, criação literária do poeta espanhol Luiz de Gôngora; e o conceptismo ou quevedismo que ressalta o jogo de ideias, uma criação do poeta espanhol Francisco Quevedo.

Para melhor explicitar as afirmações mencionadas, vamos à análise considerando os versos que compõem o poema:

1) Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

    Será?

São versos que denotam dúvida, inquietação. Há uma certeza de que o corpo, por ser matéria, um dia acaba, deixa de existir, transforma-se em pó.  Essa certeza se manifesta ao lado de uma dúvida, de uma inquietação, o que denota uma contradição, um contraste. Inquietação e contraste são marcas literárias do Barroco.  A inquietação se mostra trazendo nas entrelinhas a dúvida: acredito ou não acredito na reencarnação? A autora em um único verso e com apenas uma palavra interrogativa, será?, demonstra a dúvida com relação ao seu próprio questionamento: o espírito retorna em outro corpo físico? O fato de a interrogação se encontrar sozinha, isolada, em um único verso, também denota uma aflição, um questionamento, uma inquietação de cunho pessoal. No entanto, sabemos que essa inquietação toma conta da mente de muitas pessoas: acreditar ou não acreditar no processo de reencarnação, aceitar que existe vida após a morte ou acreditar que o espírito só anima apenas uma vez um corpo físico. Os questionamentos, as interrogações fizeram parte das inquietações de escritores do Barroco, como Gregório de Matos Guerra cujas poesias se caracterizam pelos contrastes e pelas contradições.

2) Sou estranha por não me apoquentar com isso? 

Este verso nos diz o seguinte: posso até acreditar, mas prefiro não refletir a respeito. Também expressa uma contradição: não querer se apoquentar já admite existir um questionamento, uma inquietação a respeito do assunto. A expressão “sou estranha ”traz a voz de quem sabe haver outras pessoas que se importam em querer saber sobre a vida do espírito, após a morte do corpo. Mas, por que eu também preciso me preocupar com isso? Essa interrogação presume que há uma preocupação com o que outras pessoas acham em relação a essa atitude de não querer se apoquentar com isso. Na vida, este comportamento é um fato real. Sofremos muito, pensando no que os outros vão achar de nossas opiniões, ideologias e de nossos valores. Por incrível que pareça é o que pensamos que os outros pensam de nós mesmos que nos deixam apoquentados. Bakhtin (2006 [1979], p. 342) nos diz que “eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim”.O ser humano não consegue viver sem esse outro que lhe apoquenta a vida. 

Há também um jogo de ideias entre o verso “prefiro não me apoquentar com isso” e os versos anteriores: “alma revive em outros corpos... Será?”. Esse jogo de ideias refleta um refinado confronto intelectual, com raciocínios duvidosos, o que remete ou lembra o conceptismo que tem origem com o escritor espanhol Francisco Quevedo.

2) A exemplo de Drummond,

   “O presente é a minha matéria...”

A autora traz a citação de Carlos Drummond para amparar um sentimento que acha ser também próprio de seu viver neste plano: sua preocupação com o corpo físico no tempo presente, em tempo real. O que lhe importa é o corpo material, o corpo físico, sem nenhuma consideração com o espírito, com a energia inteligente que lhe dá vida. Há uma inquietação à mostra, remetendo à dualidade matéria x espírito, também uma característica da Escola Literária Barroca. O verso traz em si um fingimento, lembrando Fernando Pessoa, quando diz que o poeta é um fingidor. A autora tenta se enganar, tenta fingir que não se importa em saber se há ou não animação de outro corpo físico por um mesmo espírito. Se o espírito que dá vida inteligente ao seu corpo presente já lhe animou a vida em outro corpo em uma vida pretérita. Embora a autora cite Carlos Drummond, o fato de privilegiar o tempo presente lembra uma das características de Gregório de Matos Guerra, que também privilegiava o momento, o tempo presente, o carpe diem. Citar Carlos Drummond, nesse contexto poético, também se justifica, uma vez que, por ser este renomado escritor brasileiro o poeta da escavação do real, trouxe em seus poemas uma de suas mais reveladas preocupações: o impasse entre o homem e o mundo, a realidade interior e exterior, o mundo objetivo e o subjetivo, o sonho e a realidade.

4) Se a espiritualidade

     simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância.

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

Isso me incomoda.

 

Analisando os versos citados, encontramos: 

a)    Figura de contraste antítese: céu/inferno, anjos e demônios.

b)    Expressão de dualidade: céu e inferno, anjos e demônios.

c) Cultismo ou gongorismo: se a espiritualidade simbolizada em céu/inferno, anjos/demônios.

d) Feísmo. Sentimento de inferioridade. Não se sentir elevada, digna da espiritualidade: sou reles.

e)    Morbidez em relação aos aspectos elevados da espiritualidade: fome

f)  Manifestação de indignidade perante o comportamento dos que se dizem defensores da espiritualidade: injustiças, ganância.

g)  Contradição perante a fome e a injustiça, ostentação de muitos que usam a espiritualidade para enriquecimento e galgar a fama de líder: ganância.

h) Figura de linguagem hipérbole, uma afirmação exagerada para acentuar o sentimento de incômodo que a inquietação causa: sim, mil vezes sim.  Isso me incomoda.

i)     Expressão de perplexidade diante da vida e do mundo: Ostentação. Sim, mil vezes sim. Isso me incomoda. 

j)      Contrastante jogo de ideias, caracterizando o conceptismo ou quevedismo: Se a espiritualidade/ simbolizada em céu/inferno/ anjos e demônios/ é algo elevado/ sou reles/ fome, injustiças, ganância/ Ostentação.../ Sim, mil vezes sim/ Isso me incomoda. 

4) Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Estes versos apresentam o segundo exemplo de um discurso já dito. A autora menciona Murilo Mendes e, embora não cite trechos do poema Solidariedade, a ele faz referência na tentativa da possibilidade de ser ela também, como o poeta expressa em seus versos, solidária com pessoas e fatos que se caracterizam por apresentarem naturezas díspares. A contradição e a dualidade se encontram presentes na obra de Murilo Mendes, que procurou conciliar de tal maneira o sagrado e o profano, a ponto de se tornar conhecido como o poeta místico e cósmico. Esse viés literário também o fez criar um conceito particular de religiosidade, para que pudesse mostrar um processo de dilaceração do seu próprio Eu em conflito.

A autora gostaria de ter escrito Solidariedade, nos termos em que Murilo Mendes escreveu, para que pudesse expressar o sentimento de alteridade, mostrando o quanto seria capaz de ser solidária às pessoas com quem presume também se contrapor, seja por razões sociais, culturais ou morais. E assim, o ser humano conduz a vida, espelhando-se no outro, com vontade de ter as atitudes do outro. Acontece que, ao manifestar o desejo de realizar o que o outro já efetivou, ele declara sua própria leitura de vida em relação ao evento já efetivado pelo outro. Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2006 [1979], p. 383, grifo do autor) afirma que “O eu se esconde no outro e nos outros, quer ser apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro, livrar-se do fardo do eu único (eu-para-si) no mundo”. O outro é e será sempre um amparo ou, podemos mesmo dizer, um espelho, para ver o nosso próprio eu.

5) Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Estes versos apresentam uma dualidade com versos já mencionados. A autora, no início do poema, demonstra claramente não querer se preocupar com assuntos que se relacionam com a dualidade matéria x espírito. No entanto, mostra, nestes versos, que está predisposta a se conectar com espíritos sofredores, ainda que não os veja. Quando menciona “seres invisíveis, nossos semelhantes”, a autora deixa nas entrelinhas acreditar na existência do espírito que dá vida ao corpo humano, aceitando e acreditando que, após o desencarne, muitos desses espíritos ficam vagando, sofrendo as punições que lhes são cabíveis. Mais uma vez, encontramos nestes versos, a característica inerente à natureza humana de se apoiar no comportamento do outro para manifestar seus próprios desejos, seus idênticos propósitos. 

6) Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...” 

Mais uma vez a intertextualidade se faz presente no texto de Márcia Machado que traz a voz de Guimarães Rosa para manifestar a dor que pode sentir em relação à dor do outro. Há uma atitude responsiva em relação à dor alheia, uma atitude que carreia em si mesma o desgosto pelo acontecido e o desengano causado pelo desencanto que o turbilhão de sofrimento causa nas pessoas.

O simples fato de que eu, a partir do meu lugar único no existir, veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça, o fato de que também para mim ele existe - tudo isso é alguma coisa que somente eu, único, em todo o existir, em um dado momento, posso fazer por ele: um ato do vivido real em mim que completa a sua existência, absolutamente profícuo e novo, e que encontra em mim somente a sua possibilidade (BAKHTIN, 2010a [1920], p. 98).

Esse sentimento pode ser uma demonstração do impulso de alteridade que nos faz ver o outro, sentir o que se passa com o outro, até mesmo nos colocar no lugar do outro, mesmo sabendo que trazemos a marca da nossa unicidade e que o lugar que ocupamos na existência é único.

7) Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

Estes versos se iniciam com um alerta: não vale fingir que não nos apercebemos do sofrimento alheio. Não apenas isto. Não vale fechar os olhos para encobrir o que não admitimos como certo, coerente e preciso para validar os princípios que regem a conduta correta e pertinente de uma vida saudável e salutar. O jogo de palavras “para quê olhos se vê e não repara” denota a contradição, a antítese que, muitas das vezes, limita o comportamento humano para uma aceitação, uma acomodação. Encontramos nestes versos mais uma característica das poesias barrocas: o cultismo ou gongorismo. Ao mesmo tempo, o joga de ideias denota o conceptismo. 

8) A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

Estes versos enfatizam que, embora se confirme a unicidade do ser, ninguém consegue viver as experiências da vida, sozinho, considerando tão somente seus próprios defeitos, suas próprias qualidades. “Não encarar o mito de Narciso” significa não ficar apaixonado por sua própria beleza, pelo seu próprio eu físico. Narciso, personagem da mitologia grega, filho deus de Cefiso e da ninfa Liríope, por ser apaixonado por sua própria beleza física, tornou-se o símbolo da vaidade, o que no mundo de hoje, tem induzido a sociedade ao culto da beleza, levando muitas pessoas a um transtorno obsessivo pela própria imagem corporal. Quanto ao verso “vivendo em torno do meu próprio umbigo”, ainda que não aceitemos, no mundo da vida, a nossa unicidade se faz presente em nossos atos, o que é confirmado por Bakhtin (2010 a [1920], p.43), quando observa que o “ato da atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas”. A nossa própria unicidade nos remete às dualidades, às contradições.

9) boa, má?

certa, errada,

ora sim, ora não . 

“Boa, má; certa, errada; ora sim, ora não” são versos que refletem justamente o que é o espírito não totalmente evoluído, mesmo quando não se encontra no plano da erraticidade. Somos bons ou maus, dependendo do contexto, da situação e das pessoas com quem convivemos. Para alguns, muitas das nossas ações são tidas como boas; para outros, podem ser a causa de uma ferida que deixou marcas. Temos atitudes certas e outras também erradas, em determinados momentos de nossa vida. Como somos seres inconclusos, a nossa inconclusibilidade nos pode remeter, dependendo do nosso nível de discernimento, para o acerto ou para o erro. Ora acertamos, ora erramos e essa avaliação se constata com as possíveis interações que realizamos com o outro em nossas experiências de vida.   A nossa preocupação em saber como os outros nos definem é que nos fazem, na maioria das situações, saber quem somos nós, como nós estamos e como nos vemos. Com base nessa concepção, Bakhtin (2006 [1979], p. 341) observa que “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro”. Sem o outro, sem a interação o outro para mim e eu para o outro, se torna mais difícil termos um nível de consciência do nosso próprio eu.

9) antíteses me (in)definem...  

Somos seres dualísticos? Nossa persona, o retângulo ou o quadrado de nossa máscara se deixa ilustrar por antíteses?  Essa resposta é facilmente encontrada, quando estamos em um grupo de amigos e perguntamos sobre como consideram ou veem a personalidade de uma pessoa. As respostas são as mais divergentes possíveis. Neste verso, a autora, após mostrar vários aspectos que se contrastam, se coloca como uma antítese, uma pessoa que se revela por meio de contradições e que, ao mesmo tempo, permanece como uma incógnita, porque nem mesmo as antíteses conseguem defini-la completamente. Somos assim: seres incompletos, seres inconclusos. E essa nossa incompletude faz com que nossas ações nem sempre permaneçam com as mesmas intenções, com os mesmos propósitos.

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal.Trad. do russo por Paulo Bezerra.5ª.ed.São Paulo:Martins Fontes, 2006 [1979].

BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Alberto Faraco. São Carlos: São Paulo: Pedro & João Editores, 2010a [1920].


 




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