LEIA MUITO, MARIA! NÃO ESTAMOS SOZINHAS Maria Elizabete Nascimento deOliveira
Saímos de um estado que embora insatisfatório, embora
esmagador, estava estruturado sobre certezas. Isso foi ontem. Até então ninguém
duvidava do seu papel. Nem homens, nem muito menos mulheres. [...] Mas essa
certeza nós a quebramos para poder sair do cercado.
[Marina Colasanti]
Apresentamos a obra - Chão
Ancestral - de Margarida Montejano (2023), por intermédio de um recorte já
anunciado no título dessa reflexão ao evocar o título de três poemas da autora.
Ainda nesse viés, exibimos, na íntegra, essa tríade poética que ostenta a
figura feminina nas suas diversas facetas e nos impulsionam às trilhas de
emancipação e autoria de percursos.
LEIA
MUITO
leia muito.
Leia marx
leia cristo
leia paulo freire
leia poesia!
Reflita, discute, estuda
dispa-te da venda
que te nutre a cegueira
e destrava
tua língua
tuas florestas
tuas matas
teus rios
teus bichos
resgate a ti deste lugar onde te calaram
(Montejano, 2023, p.49)
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MARIA
tarde da noite Maria sai
enfrenta as ruas
os olhares de esgueio
o julgamento alheio
Maria sabe que a caminhada é longa
que há perigos à espreita
e, mesmo temendo, confia
endireita o tronco, respira fundo
floreia e segue
espanta o medo, segura a fé
enfrenta o mundo
sente na pele o preconceito, o machismo, a ignorância
sente no corpo a sede,
a fome, o cansaço
Maria segue
Maria resiste
Maria vence.
(Montejano, 2023, p. 75)
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NÃO
ESTAMOS SOZINHAS
somos uma rede e em rede enredadas estamos
somos uma, somos muitas somos intocáveis
quando ferem a mim ferem elas
quando ferem elas ferem a mim
sou-somos um fio da rede e quando desfiadas, integramos
outras
estamos “(entre)laçadas”.
(Montejano, 2023, p. 27)
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O poema Leia muito traz a força da voz imperativa que pode ser interpretada
como um apelo à leitura crítica e consciente que propõe a luta pela libertação
pessoal e social por meio do conhecimento e da reflexão crítica. Composto por
versos livres, sem rima ou métrica fixa, confere uma sensação de espontaneidade
e urgência, onde a ausência de pontuação sugere um fluxo contínuo de
pensamentos e de ideias.
O eu poemático evoca figuras
icônicas como Marx, Cristo e Paulo Freire, além de “poesia”. Cada um desses
nomes carrega uma simbologia de ideias e pensamentos que convidam à reflexão
sobre diferentes aspectos da vida: política, espiritualidade, educação e a arte
como expressão humana. Nos versos “Reflita, discute, estuda”,
há um chamado à ação intelectual, onde os verbos no imperativo incitam o leitor
a não ser passivo, mas a participar ativamente do processo de aprendizagem e
questionamento do seu lugar no mundo.
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A metáfora: “dispa-te da venda
que te nutre a cegueira” insinua a necessidade de remover a ignorância imposta,
que é nutrida pela falta de conhecimento ou pela aceitação passiva de
informações, fato que fortalece a ideia de que essa venda mantém a cegueira e
se constitui como um impedimento ao necessário entendimento e à liberdade.
Versos como: “destrava tua língua / tuas florestas / tuas matas / teus
rios / teus bichos” podem ser interpretados como um chamado para se reconectar
com a essência natural e original do ser humano ao contexto externo, conexão
vista como parte do processo de libertação e autoconhecimento.
Já o último verso: “resgate a ti deste lugar onde
te calaram” reforça a ideia de que a leitura e o conhecimento são ferramentas
poderosas para fortalecer a própria voz e identidade, que podem ter sido
silenciadas por forças externas ou internas ao longo do tempo. Assim, o poema é uma convocação à emancipação intelectual e
pessoal por meio da leitura e do pensamento crítico, onde a inclusão de figuras
históricas e literárias serve para ilustrar a diversidade de pensamentos que enriquecem
a compreensão do leitor sobre o mundo e sobre si mesmo; pois ler e refletir são
atos revolucionários que desatam as amarras da ignorância e da opressão,
permitindo uma reconexão mais profunda com a própria essência e com o entorno
natural.
O segundo poema, intitulado: Maria apresenta uma narrativa sobre a
resistência e a perseverança de uma mulher chamada Maria. Trata-se de um poema escrito em versos livres, sem rima ou
métrica regular em que a linguagem é simples e direta contribui na intensidade
e na clareza da mensagem. A estrutura linear da narrativa poética acompanha a
trajetória de Maria e cria um efeito de progressão e movimento que permeia seu
cotidiano. O poema situa Maria em um momento específico do dia: “tarde da noite”,
horário que sugere um contexto de vulnerabilidade e perigo. Maria “enfrenta as
ruas / os olhares de esgueio / o julgamento alheio”, indica que sua jornada não
é apenas física, mas também social e emocional. Apesar dos perigos e do
julgamento, Maria continua: “mesmo temendo, confia / endireita o tronco,
respira fundo”. Destaca-se nesses versos a coragem de Maria que enfrenta seus
medos com determinação e com uma postura física que simboliza resistência.
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Maria sente “na pele o
preconceito, o machismo, a ignorância”. Esta tríade de opressões representa os
desafios sociais que muitas mulheres enfrentam diariamente e que cada dia está
mais evidenciado nas mídias e no contexto social. A menção ao “preconceito”, “machismo”
e “ignorância” indica uma crítica social e um reconhecimento das lutas de
gênero, no entanto, além das adversidades sociais, Maria também enfrenta
dificuldades físicas: “sente no corpo a sede, / a fome, o cansaço”. Assim,
destaca-se que a resistência de Maria é tanto física quanto emocional, ao mostrar
sua capacidade de superar múltiplas adversidades. Nesse viés, a mulher quando
fala, mesmo na voz de um eu poemático está, muitas vezes, a falar “de sua
própria tessitura verbal, algo tão vivo, frágil e poderoso como a própria vida
ali representada pela ficção”. (Coelho, 1993, p. 274).
O poema culmina com a afirmação
de que “Maria segue / Maria resiste / Maria vence”. Este desfecho é uma
celebração da força e da resistência de Maria que simboliza a superação de
todas as mulheres que enfrentam desafios similares. Trata-se de uma ode à força
e à resistência, especialmente daquelas que enfrentam preconceitos, machismo e
outras formas de opressão. A figura de Maria é emblemática e representa a luta
diária e a perseverança que muitas mulheres encarnam em suas vidas. A narrativa
do poema é simples, mas não simplista porque destaca a trajetória de Maria
desde a vulnerabilidade inicial até a superação. Cada verso acrescenta uma
camada à compreensão do leitor sobre a experiência de Maria que culmina em um
final que celebra a resiliência, a coragem e a resistência feminina e reconhece
os desafios que enfrenta em sua trajetória cotidiana em busca de um processo
evolutivo necessário e urgente. Evolução que como disse Nelly Novaes Coelho,
“[...] podemos resumir como o embate dialético entre o eu e o outro, entre a
unidade e a dispersão, entre o pensamento e a linguagem, ou em termos de forma
poética, entre o ‘discurso’ e a ‘escritura’”. (Coelho, 1993, p. 60).
O terceiro poema: Não estamos sozinhas explora a ideia da coletividade e da
interconexão entre mulheres ao destacar a solidariedade e a força que emergem
da união. Escrito em versos
livres, com uma estrutura compacta que reforça a ideia de união e interconexão,
o texto traz ainda a ausência de pontuação tradicional, como pontos finais, fator
que contribui para a fluidez da leitura e reflete a continuidade e a
interdependência das experiências femininas.
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Nos versos: “somos uma rede e em
rede enredadas estamos” nos reportam imediatamente a metáfora central do poema:
a rede que simboliza a conexão entre as mulheres e sugere que estão
intrinsecamente ligadas, que suas vidas e experiências estão interconectadas. Em:
“somos uma, somos muitas / somos intocáveis” há uma dualidade que destaca a
individualidade de cada mulher, mas também a força coletiva que representam. O
termo: “intocáveis” insinua uma força inquebrável quando estão unidas.
Já nos versos: “quando ferem a
mim ferem elas / quando ferem elas ferem a mim” enfatiza a empatia e a
solidariedade mútua; onde a dor de uma é sentida por todas, instigam a pensar
em como as experiências individuais de sofrimento são compartilhadas e
reconhecidas coletivamente. Em: “sou-somos um fio da rede e quando desfiadas,
integramos outras” alude que mesmo quando uma mulher é prejudicada ou
enfraquecida (“desfiada”), ela encontra força e apoio na rede, integrando-se em
outras conexões e renovando-se na/pela coletividade.
O termo: “entrelaçadas” reforça
a ideia de que as mulheres estão firmemente ligadas umas às outras. A forma
como a palavra é apresentada — “(entre)laçadas” — sugere uma camada adicional
de significado e enfatiza que tanto a união, quanto a complexidade das relações
destacam a força da coletividade e a importância da solidariedade. A metáfora
da rede é central para a compreensão das experiências femininas e simboliza a
interconexão e a interdependência de suas lutas cotidianas.
A estrutura do poema, com versos
curtos e a ausência de pontuação tradicional, contribui para a sensação de
continuidade e interligação ao refletir a própria natureza das conexões
descritas. Cada verso adiciona uma nova dimensão à metáfora da rede, de modo a
aprofundar a compreensão do leitor sobre a complexidade e a força da união
feminina. A ideia de que as mulheres estão unidas em uma rede de apoio mútuo é
central. A solidariedade é apresentada como uma fonte de força e de resiliência
ao mostrar que a dor e a luta de uma são compartilhadas por todas. Esses
elementos reforçam a ideia de que quando uma mulher é afetada, a rede de apoio
permite a renovação e a continuidade da luta, sobretudo, ao despontar a
resiliência coletiva, mesmo diante das adversidades.
Ao enlaçarmos essa tríade
poética destacamos os quão interconectados precisam estar os aspectos focais apresentados
nestes textos líricos na existência da figura feminina, primeiro pela
necessidade de estarmos conscientes da árdua tarefa de construirmos rupturas
por entre esse sistema econômico, político e cultural que sempre privilegiou a
casta masculina; segundo pela necessária batalha para conhecer a nós, mulheres,
nesse percurso que até pouco tempo foi delineado por homens e terceiro pela consciência
do lugar que estamos a erigir e da necessidade da feitura desse lugar ser
realizado no coletivo, no entrelaçar de mãos pungentes e, também, femininas. Desse
modo, reafirmamos “a eterna tarefa dos poetas: ‘pensar o mundo’ e nunca pactuar
com qualquer forma de poder arbitrário que aprisione ou esmague a liberdade de
pensar, falar e agir de todos” (Coelho, 1993, p. 95).
Referências
COELHO, Nely Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo:
Siciliano, 1993.
MONTEJANO, Margarida. Chão Ancestral. Fotografias de André Montejano. Curitiba: Eu-i,
2023.
XAVIER, Elódia. Tudo no feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.
Margarida Montejano é natural de Mogi
Guaçu, SP. Reside em Paulínia, SP. É doutora em Educação, funcionária pública
municipal em Campinas. Poeta e escritora. Autora dos livros de contos "Fio
de Prata", 1ª ed., Scenarium Livros Artesanais em 2022, reed. pela Ed. Siano
em 2023 e, do livro de poemas “Chão Ancestral”, Ed. TAUP em 2023.
Elizabete Nascimento é Doutora em Estudos Literários. Autora das obras: A
Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos (2012); Asas do
Inaudível em Luzes de Vaga-lume (2019); Sinfonia de Letras (2021); Granada
(2023). Identidade mais sublime nessa vida: vovó do Samuel e da Alícia;
acredita que o amor é infinito.