quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: ASAS DO INAUDÍVEL EM LUZES DE VAGA-LUME, POR ELIZABETE NASCIMENTO

 



O PROCESSO CRIATIVO DE ASAS DO INAUDÍVEL EM LUZES DE VAGA-LUME 

 POR MARIA ELIZABETE NASCIMENTO DE OLIVEIRA


Bem disse a enluaradíssima Marta Cortezão (2023) ao nos provocar à escrita do processo de criação poética, é uma proposta simples, mas profunda e instigante. Sim! Profunda e instigante porque provoca a revirar o baú da memória e, esse baú, é composto de singularidades recheadas de sinestesia e profundidades. Gosto de pensar que as águas que percorrem as páginas do meu primeiro livro de poemas escorrem pelo meu corpo desde sempre porque trata-se de memórias que foram incorporadas em mim e residiram/residem no meu imaginário.

Desde a infância, embora de família pobre, sempre estive rodeada de livros escritos em diferentes gêneros discursivos, fator que contribuiu satisfatoriamente na minha trajetória porque amo estar entre a multidão contida nos livros; mas que podem ir aos passeios mais badalados pelas asas incontroláveis da imaginação criadora. Filha de um baiano que, mesmo semianalfabeto, adorava contar histórias de cordéis e de uma japonesa que, embora tenha feito apenas os anos iniciais, gostava de ler as revistas de fotonovelas, me vi desde muito cedo envolta em meio às personagens de ficção.

Fui uma criança um pouco solitária, mas feliz porque tive a oportunidade de correr no campo, subir em árvores, buscar laranja no pomar, tomar banho de cachoeira, brincar de amarelinha, chupar mangas, amoras e seriguelas no pé, jogar queimada, enfim, de vivenciar a infância com o que ela tem de banquete para ser degustado. Amava brincar com as cigarras e entre os vaga-lumes, pois morei por muito tempo na zona rural. Sou a filha mais nova de três, com diferença de nove anos de idade da minha irmã e dez anos do meu irmão; minha irmã se casou com dezesseis anos e meu irmão saiu de casa para trabalhar, ainda muito novo. Esse fator me aproximou ainda mais dos livros, pois era uma forma de me ver acompanhada. Quando adolescente, tive a oportunidade de ler muito romance, como: Sabrina e Julia. A solidão nos ajuda a observar com maior amorosidade a natureza e as belezas contidas no cosmo. Por muitas vezes, vi inúmeras constelações nas flores de um pé de flamboyant que havia no quintal da casa, lembro-me como se fosse hoje do banco de madeira e da rede de balanço, também, vermelha pendurada naquela árvore.

Os fragmentos da minha vida são importantes para fundamentar a afirmativa que o esboço de grande parte dos poemas que compõem a obra já estava guardado há algum tempo no meu imaginário, mas tomou formato escrito apenas no ano de 2015, após a aprovação no curso de doutoramento em estudos literários, em Tangará da Serra. A construção de uma casa se assemelha à produção de um livro, pois desde o alicerce ao acabamento final é preciso dispensar atenção e cuidado. Embora, às vezes, tenhamos a sensação de que tudo tenha surgido repentinamente, quando paramos para refletir o processo, percebemos que os tijolos foram construídos em nós desde sempre. Com isto, ressalto que quando me perguntam sobre o processo criativo, digo: aconteceu naturalmente! Porém, quando paro para uma ponderação mais profunda, vejo que sim e não, é um processo natural; mas resultado de uma maturação realizada dentro de mim, desde sempre.

O processo criativo de uma obra poética, na minha percepção torpe, nasce no corpo feito hera, rumina em nós até tomar proporções insustentáveis porque afeta nossos desejos e segredos recônditos, nos convocam a andarilhar pelo nosso mundo, também, na companhia de nossos avessos, ou seja, acionam o nosso lado dúbio, interno e externo. Não penso que se trata apenas de um desenvolvimento da mente e/ou da imaginação, mas, sobretudo, de um envolvimento, de uma constituição ímpar do ser no mundo. Eu cato aqui e acolá os badulaques que me constituem e, de certo modo, me construo com essas engrenagens. São elas que movimentam o meu mundo e, por isso, que tudo que sou, não pode ser igual, é singular; aciona uma essência que é só minha, que só pode correr, desse jeito, no meu corpo; mas pelas nuances do meu ser dialoga com o outro porque também sou constituída pelos outros e/outras coisas que partilham comigo do mundo.

Os textos nunca estão bons a ponto de serem publicados, mas se trata de uma análise que aos poucos cai por terra, porque a escrita, também, passa por um processo de amadurecimento, necessita brotar em algum momento, para se inaugurar. Quando falo em poesia, proponho de um jeito simples todo meu dialogar com o mundo e com as pessoas, de modo a formar uma constelação de vozes que reverberam em nós e quem sabe anunciam outra sociedade. Acho lindíssimas as diferentes formas com as quais as mesmas palavras cantam/escorrem em cada corpo.

Observei que a maioria das pessoas que adentra aos cursos de pós-graduação nas universidades fica muito solitária e tende a ter problemas emocionais devido à profunda carga de leitura teórica e produção de textos científicos. Assim, pensei que necessitava criar uma válvula de escape porque a maior promessa é direcionar a minha vida por um campo onde eu possa viver com responsabilidade e comprometimento todas as minhas dores e alegrias; pensando nisso criei um grupo de WhatsApp com algumas amigas, denominado Clube do Café e, posteriormente criamos o Facebook Aromas de Mulher com esse nome para nos encontrarmos, o objetivo era sair do espaço da academia para compartilhar outras coisas que fazem parte do cotidiano da mulher. Estes grupos ainda estão em vigor e contribuem significativamente para tornar a minha vida um pouco mais leve. Para além desses canais, destaco ainda que mantenho a página no Facebook Asas do Inaudível, criada por um leitor/amigo, onde publico outras produções autorais e recebo alguns feedbacks de leitores(as).

A cidade onde moro, Cáceres/Mato Grosso, fica a aproximadamente 220 km de distância de Tangará da serra, também no MT, onde faria o doutoramento e na época grande parte da estrada não era pavimentada. Então, praticamente uma vez por mês, ficava uma semana em Tangará da Serra e, como as disciplinas do curso eram ministradas durante o dia, à noite aproveitava para ler textos poéticos e escrever com liberdade. A arte sempre esteve muito presente nas minhas ações, pois ela é quem me ajuda a observar as flores existentes no caminho, assim após a defesa da tese de doutoramento organizei na minha cidade um evento com a presença da poeta Luciene Carvalho. Nesse encontro, ela teve acessos a alguns dos meus rabiscos e me incentivou à publicação, minha primeira reação foi categórica, disse não; mas numa bela manhã de segunda-feira, recebi um telefonema da autora dizendo que o prefácio do livro estava pronto e começou a lê-lo. Minha reação foi chorar compulsivamente porque era um olhar repleto de sensibilidade e de carinho que não tinha como não ser encorajada à publicação. Encaminhei o esboço para a editora Carlini e Caniato, que fica localizada na capital do nosso estado – Mato Grosso - e essa se encarregou pela produção da capa e revisão geral. Assim, surgiu à obra impressa.

O livro impresso ficou pronto no início do período pandêmico – a terrível onda do vírus COVID-19  tirando a oportunidade do lançamento presencial. Confesso! Fiquei bastante triste, pois estava eufórica para partilhar com minhas amigas esse momento de alegria; mas logo pensei em uma alternativa, lancei o livro em formato on-line pelo canal Asas do inaudível em luzes de vaga-lume no youtube, creio que se trata do primeiro livro, em nosso estado, lançado virtualmente, ainda na aprendência para vencer a timidez em aparecer na tela do computador; mas foi uma experiência enriquecedora, para não dizer engraçada, inovadora e, dado o momento, necessária. Segue abaixo, dois poemas que compõem o livro:

O silêncio


Silêncio nunca é ausência.

É plenitude, criação fetal.

Às vezes, meigo,

embala o sono,

perfuma o sonho.

Outras, selvagem,

chega galopante,

tortura a mente,

espreme o cérebro,

arrasta-nos

do/para

o cativeiro,

companheiro de redenção.

 

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Manifesto


Onde estão as mulheres escritas

pela goiana Cora Coralina,

pela mineira Conceição Evaristo,

pela ucraniana-brasileira Clarice Lispector

e tantas outras que

escrevem e escreveram

com o sangue que jorrou de si?

Apagadas,

invisíveis,

sem valor...

Gritos sufocados no universo de papel,

mulher-esposa,

mulher-amante,

mulher-mãe,

mulher-sonhadora,

mulher-profissional,

mulher-sedutora,

mulher-mulheres.

Vivendo todas em uma.

Este ser múltiplo, original.

Avante! Abra as portas e as janelas,

respire o ar que, também, sai de suas entranhas.

Únicas,

desiguais.

Hoje, ao olhar o livro Asas do inaudível em luzes de vaga-lume (2019), com a identidade de pesquisadora em estudos literários, analiso que muitas questões poderiam ser repensadas se consideradas as convenções linguísticas e/ou a formatação estrutural dos textos. Mas, com o olho adoecido de poeta, sinto que não. Era exatamente assim que este livro saiu de dentro de mim e, com um vocabulário tão restrito, mas tão meu, ganhou asas com palavras que se metamorfosearam em poemas. Já com a visão heterogênea de professora, creio serem pássaros que voam livres à procura de porto e/ou de leitores sensíveis, capazes de olhar pela janela ao encontro dos mistérios do mundo. Como mulher, desejo que cada leitora sinta-se instigada a criar outros pássaros que se juntam em revoada ao meu e, com asas em movimento, redesenham na imensidão desse céu azul, a luz e a harmonia do voo coletivo, sempre a vislumbrar um horizonte possível. Atitude que poderá livrá-la das diversas formas de exílio existentes na alma feminina.

 


NASCIMENTO, Elizabete. Asas do inaudível em luzes de vaga-lume. Cuiabá: Carlini e Caniato editorial, 2019.

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Doutora em Estudos Literários, poeta, professora e mulher que sonha com equidade. Livros: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos. São Paulo: Paulinas (2012); Asas do inaudível em luzes de vaga-lume. Cuiabá/MT: Carlini & Caniato (2019), Sinfonia de Letras: acordes literários com Dunga Rodrigues. Paraná: Appris/2021. Professora, DRE-Cáceres/Mato Grosso-Brasil.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2023

VIVÊNCIAS POÉTICAS: ATIVISMO LITERÁRIO FEMININO, POR MARIA DO CARMO SILVA

 


VIVÊNCIAS POÉTICAS|02


REFLEXÕES SOBRE O ATIVISMO LITERÁRIO FEMININO NA CONTEMPORANEIDADE



Somos parte de uma sociedade contemporânea permeada por um grande contingente de mulheres escritoras de diferentes etnias e classes sociais, que se lançam no universo da escrita, e por meio desta, descrevem seus sonhos e anseios pessoais e sociais revestidos de prosa e/ou de poesia, com o intuito de sensibilizar o coração humano, provocar reflexões e a partir desta sensibilização e deste refletir, suscitar um despertar para um novo ciclo literário, buscando a superação de todo tipo de preconceito e censura historicamente construídos em relação às produções literárias de autoria feminina.

Neste expansivo e atual universo literário, edificado por mulheres escritoras contemporâneas, há inúmeros desafios cotidianos, entre eles alguns como: difundir e promover a própria produção literária, conquistar um expressivo público leitor, prosseguir produzindo textos dos mais variados gêneros, e ainda, apesar de todos os entraves, despertar e encorajar novas escritoras para fortalecer a caminhada coletiva. Nesta perspectiva é essencial unir forças, construir um elo literário onde nós, mulheres escritoras, possamos sentirmo-nos fortalecidas e motivadas. É com este intuito que nos reinventamos e inovamos o universo literário, construindo pontes entre autoras e leitoras através de coletivos, antologias, blogs e canais virtuais a fim de que o nosso “fazer literário feminino” encontre um lugar de destaque na cena literário-contemporânea.

Estas mulheres escritoras, verdadeiras “Ativistas Literárias”, possuem um carisma “fraterno-literário”, nos segurando pelas mãos, formando uma ciranda e nos tornando deusas do universo literário, universo que ultrapassa as fronteiras geográficas, fazendo com que nos reconheçamos como “Deusas literárias da contemporaneidade” e levando-nos a assimilar que este mérito não se deve apenas a publicação de livros, mas sobretudo ao reconhecimento e à valorização do SER ESCRITORA — que independentemente do gênero literário com o qual nos identificamos, da nossa trajetória literária e da importância das nossas produções para as gerações do presente e do futuro — ultrapassam as páginas de um livro e toca o mais profundo do ser.

A produção deste texto surgiu da observação da vivência literária de uma escritora contemporânea, MARTA CORTEZÃO[1] que com maestria encanta o universo literário, nos acolhendo, valorizando e difundindo as nossas produções que constituem o universo literário feminino.



[1] Marta Cortezão é escritora e poeta. Possui publicações em antologias nacionais e internacionais. Livros de poesia publicados: “Banzeiro manso” (Porto de Lenha Editora, 2017), “Amazonidades; gesta das águas” (Penalux, 2021), Zine “Aljavas para Cupido” (2022) e, no prelo, “meu silêncio lambe tua orelha” (Toma Aí Um Poema Editora, 2023). Colunista da Revista Literária Voo Livre. Idealizadora das Tertúlias Virtuais (Prêmio APPERJ/2021), do blog Feminário Conexões e, em parceria com Patrícia Cacau, do Projeto Enluaradas.

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Maria do Carmo Silva é professora, poeta e escritora. Autora dos livros de poesias: "Retalhos de Vivências" e "Recomendações Poéticas". Tem participação em diversas Antologias Poéticas. Colunista no site de notícias Tribuna do Recôncavo. Integrante do Coletivo Mulherio das Letras.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2023

ATENÇAO, VEM AÍ O II FLENLUA – FESTIVAL LITERÁRIO ENLUARADAS/2023!

 


II FLENLUA – FESTIVAL LITERÁRIO ENLUARADAS/2023

 POR MARTA CORTEZÃO


Nos dias 13, 14 e 15 de janeiro acontece o 2º Festival Literário Enluaradas (II FLENLUA/2023) para celebrar o lançamento coletivo da Coletânea Enluaradas III: I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, coletânea que encerra a Trilogia Enluaradas. A transmissão será realizada pelo canal Youtube Banzeiro Conexões. Acompanhe nossa programação nos links abaixo:

13/Jan/SEXTA-FEIRA - Abertura - 14h (Brasília) - 18h (Madri): https://youtu.be/4S0CetPIBng

13/Jan/SEXTA-FEIRA - Mesa 1 - 17h (Brasília) - 21h (Madri): https://youtu.be/m7dad6Xs1Yc

14/Jan/SÁBADO - Mesa 2 - 10h (Brasília) - 14h (Madri): https://youtu.be/zXX0OfTHSsc 

14/Jan/SÁBADO - Mesa 3 - 13h (Brasília) - 17h (Madri): https://youtu.be/yuiOjXYzO38 

14/Jan/SÁBADO - Mesa 4 - 15h (Brasília) - 19h (Madri): https://youtu.be/H0eA2hFHXUg 

14/Jan/SÁBADO - Mesa 5 - 18h (Brasília) - 22h (Madri): https://youtu.be/qVnSnseWhKQ 

15/Jan/DOMINGO - Mesa 6 - 13h (Brasília) - 17h (Madri): https://youtu.be/mIl-PBAphCo 

15/Jan/DOMINGO - Mesa 7 -15h (Brasília) - 19h (Madri): https://youtu.be/p3MNiVOmQJw 

15/Jan/DOMINGO - Desfecho - 18h (Brasília) - 22h (Madri): https://youtu.be/yQr0F3X5Z9U 

Para ver as postagens dos cards, clique AQUI.

O Projeto Enluaradas iniciou suas atividades literárias quando publicou seu primeiro edital em janeiro de 2021, convocando escritoras e poetas para divulgar e promover a escrita de autoria feminina contemporânea. Este primeiro momento suscitou uma série de encontros virtuais entre autoras e o surgimento de inúmeros projetos individuais que foram se entrelaçando nesses encontros virtuais para logo resultarem em outros novos projetos.

Durante a primeira coletânea Se Essa Lua Fosse Nossa, fomos nos dando conta da importância do projeto que cada vez mais assumia características de um movimento literário em crescente atuação. Na segunda coletânea Uma Ciranda de Deusas, o movimento continuou suas ações literárias virtuais voltadas para pensar e repensar o “fazer poético” como tantas vezes nomeamos nas discussões abordadas nos encontros virtuais do Nas Teias do Poema. No texto escrito para o Nas Teias Do Poema II: das escrevivências que nos habitam, eu trazia para discussão alguns questionamentos:

Pensar as teias do “fazer poético” é também refletir sobre os abismos que habitam nossas escrevivências (termo criado por Conceição Evaristo para referir-se à sua literatura) que aqui tomamos de empréstimo, a suas devidas proporções, a fim de falar de como nós, autoras contemporâneas do coletivo Enluaradas, vivenciamos o duplo processo de nossa escritura: a vida que cada uma escreve com base em suas vivências, e a forma como o mundo se abre/apresenta a cada uma de nós através de outros olhares e suas particularidades. Que escrevivências se manifestam nestas teias? Que versos conectarão estas teias de cada “fazer poético”? Há um novelo interno que alimenta estes teares? (Marta Cortezão, 23/07/2021)

Foram encontros muito produtivos que nos fizeram pensar sobre que lugar, nós mulheres, pretendíamos seguir ocupando: se a daquela que escreve e esconde tudo na gaveta por vergonha do que “fiscais da crítica literária” venham a dizer, ou se daquela que se assume escritora e se responsabiliza por pensar sobre a própria escrita literária, sem esperar suposta “aprovação” de quem se diga ou se assuma capacitado para tal função.

E, por fim, nossa terceira coletânea que integra esta Trilogia Enluaradas, o I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida. Nesta produção, avançamos ainda mais no que já vínhamos realizando, no que diz respeito ao movimento literário. É notório que nossa escrita tornou-se mais robusta, pois nossa autoestima se fortaleceu durante o processo de dialética da caminhada literária, apesar dos tropeços e das muitas dificuldades do trajeto. “Eis nossa poção mágica: outrar-se para poetizar a vida”, afinal “já não somos aquele ser de tanta estranheza, aquele ‘gato sem rabo’ de outrora, porque a poética metamorfose nos permitiu ser a loba que corre desejosa de juntar-se às outras lobas”[1]. Saímos da nossa zona de conforto, mergulhamos na nossa História, abraçamos nossa ancestralidade e toda a força sagrada que nos faz sujeitos ativos, a fim de contribuir para a crescente visibilidade da escrita de autoria feminina contemporânea do século XXI. O I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, em seu primeiro capítulo, destaca as “três condições necessárias para a Liberdade: meu Corpo, minhas Normas, meu Templo Sagrado”; é o corpo a matéria fundamental de compreensão dos espaços público e privado e de seus inúmeros papéis que assume dentro de uma determinada sociedade. Nesse apartado da coletânea, erguemos as vozes, em coro, para deixar claro que somos conscientes da historicidade contida em nossos corpos, uma historicidade “física, estética, política, ideal e material”, capaz de desconstruir “as idades da vida, as aparências (com destaque para os cabelos, evidências nítidas dos códigos sociais envolvidos nas construções do feminino), o sexo, a maternidade e a submissão (repressões, estupros coletivos e “institucionalizados”, prostituição, assédio sexual, violência doméstica).” (PERROT, 2007;10).

Gerda Lerder, em seu livro A criação do Patriarcado[2], nos alerta sobre a importância de conhecer sobre a História de Mulheres, e observa o seguinte:

o sistema patriarcal só funciona com a cooperação das mulheres, adquirida por intermédio da doutrinação, privação da educação, da negação das mulheres sobre sua história, da divisão das mulheres entre respeitáveis e não respeitáveis, da coerção, da discriminação no acesso a recursos econômicos e poder político, e da recompensa de privilégios de classe dada às mulheres que se conformam. As mulheres participam no processo de sua subordinação porque internalizam a ideia de sua inferioridade. Como apontou Simone de Beauvoir: “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos.

A afirmação de Gerda Lerder vem dialogar com o que diz bell hooks, no livro O feminismo é para todo mundo[3], quando esta, no capítulo A sororidade ainda é poderosa, afirma que

A sororidade feminista está fundamentada no comprometimento compartilhado de lutar contra a injustiça patriarcal, não importa a forma que a injustiça toma. Solidariedade política entre mulheres sempre enfraquece o sexismo e prepara o caminho para derrubar o patriarcado. É importante destacar que a sororidade jamais teria sido possível para além dos limites de raça e classe se mulheres individuais não estivessem dispostas a abrir mão de seu poder de dominação e exploração de grupos subordinados de mulheres. Enquanto mulheres usarem poder de classe e de raça para dominar outras mulheres, a sororidade feminista não poderá existir por completo.

É evidente que a saída é a solidariedade política entre mulheres, é o que o Enluaradas tem perseguido sempre em todas as suas ações literárias. Somos conscientes também que é preciso dialogar sobre as teorias feministas sem os velhos estereótipos criados pelo patriarcado, os quais achincalham e inferiorizam a luta das mulheres. É urgente entender como reproduzimos o sistema patriarcal, e como reforçamos sua doutrina. Estamos em desconstrução, e precisamos manter todos os sentidos à flor da pele. Avante, poetas!

TODOS OS E-BOOKS DAS COLETÂNEAS PODEM SER ENCONTRADOS AQUI



[1] Prefácio. Coletânea Enluaradas I: Se Essa Lua Fosse Nossa. Marta Cortezão, Patrícia Cacau (Org.). Duisburg (NRW-Alemanha): Ser MUlherArte Editorial, 2021, 381 p.

[2] LERNER, Gerda. A criação do patriarcado: história da opressão das mulheres pelos homens; tradução Luiza Sellera. Versão digitalizada. São Paulo: Cultrix, 2019, p.18.

[3] HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tentos, 2018, p. 16.

sábado, 7 de janeiro de 2023

MULHERES INDÍGENAS EM DESTAQUE, POR EUNICE TOMÉ

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POR EUNICE TOMÉ

Começamos o ano ganhando um Ministério no novo governo, o dos Povos Indígenas, sendo empossada Sônia Guajajara, líder e ativista indígena, reconhecida por sua influência no movimento pelos direitos de seu povo no Brasil. Ela é do Maranhão, que habita as matas da Terra Arariboia. Com voz muito influente, faz parte do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas e já levou denúncias às Conferências Mundiais do Clima (COP) e ao Parlamento Europeu. Membro do PSOL, em 03 de outubro passado, ela se torna a primeira indígena a ser eleita deputada federal pelo estado de São Paulo, com 156.966 votos, agora deixando essa função para presidir o ministério.

Além de seu ativismo político, Sônia Guajajara tem formação acadêmica - estudou Letras e Enfermagem e pós-graduação em Educação Especial.

Sônia é uma das referências para os povos indígenas, em especial para as mulheres, e a sua ascendência já vem de longe. No ano passado, 2022, ela foi convidada a compor o Álbum Biográfico “Guerreiras da Ancestralidade”, do Mulherio das Letras Indígenas, como uma das inspiradoras às 63 escritoras indígenas, que fazem parte dessa antologia. Uma obra de 200 páginas, onde cada qual apresenta sua vivência e um texto poético de suas autorias. A apresentação do Álbum foi feita pela premiada escritora santista Maria Valéria Rezende, uma das fundadoras do coletivo Mulherio das Letras.

Sônia Guajajara

O lançamento da obra foi no mês de novembro/22, na cidade João Pessoa, durante o V Encontro Nacional do Mulherio das Letras, com a presença de muitas representantes. Para mim, além de ter tido contato pessoal com essa nova safra de escritoras, foi surpreendente conhecer suas histórias de vida, antes mesmo do lançamento, uma vez que tive o privilégio de fazer a revisão geral do livro.

Esse mesmo Álbum será lançado aqui em Santos, em fevereiro, com a presença de algumas autoras, provavelmente na Estação Cidadania. Quem sabe, a ministra Guajajara possa vir prestigiar, mais uma vez, as guerreiras combatentes da sua ancestralidade e nos brindar com o brilho de seus ideais e de sua trajetória em prol do seu povo e do meio ambiente.

Lançamento no V Encontro Mulherio Nacional/Nov/2022


Eva Potiguara é indígena do contexto urbano, Doutora em Educação, professora de Artes do curso de Pedagogia, escritora e poeta, contadora de histórias, artista visual e audiovisual (clips), ilustradora, produtora cultural da EP PRODUÇÕES. É membro de várias academias de Letras no Brasil e na Europa. Articuladora do Mulherio das Letras Indígenas e do coletivo indígenas do contexto urbano no RN / INDURN. Livros publicados: “Do casulo à borboleta”, “Gatos diversos” e Abyayala Membyra Nenhe'gara,"Cânticos de uma filha da Terra" (2022).



Vanessa Ratton é jornalista, poeta, autora infanto juvenil, professora de teatro, Especialista em Teatro Brasileiro e Psicopedagogia e Mestre em Comunicação e Semiótica. Integra o Movimento Mulherio das Letras, tendo organizado a I e II Coletâneas poéticas Mulherio das Letras e a Coletânea internacional Mulherio pela Paz, em parceria com Alexandra Magalhães Zeiner, da Associação de Mulheres pela Paz Fraun für Frieden. Com o pseudônimo Tatá Bloom, é autora de Um ratinho que não gostava de queijo (Editora Multifoco), Um vizinho muito especial (e-book Kindle), Uma menina detetive e a máfia italiana (Editora Trejuli). Fonte: Ruído Manifesto.

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Eunice Tomé é santista, jornalista, mestre em Comunicação pela USP, escritora, poeta, haicaísta e promotora cultural. Possui oito livros publicados, incluindo contos, artigos, crônicas, poesias e haicais. No ano de 2020, apesar e até devido à pandemia, desenvolveu um projeto denominado Sarau em Casa com Pratas da Casa, onde divulgou 80 poetas locais da Baixada Santista, declamando suas poesias e resumindo um histórico. 



sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: UM AMOR DE VÉSPERA, POR RILNETE MELO



N A    T R I L H A    D O    F E M I N I N O|06

UM AMOR DE VÉSPERA

                                                                                                                  POR RILNETE MELO


Era véspera de Natal. Ela entrara na igreja com o pé direito e o lado esquerdo do cérebro pedindo que orasse para esquecer aquela paixão fulminante, que quase conseguiu abrir a armadura que ela usava desde o término do seu casamento. Ainda não havia deletado as últimas mensagens do WhatsApp e logo que sentou-se, abriu a pequena bolsa nude e retirou o celular para mais uma vez certificar-se da sua decepção.

Ali estavam as últimas palavras de Raí e o soco no estômago que Nely tomara naquela tarde em que tomava café, na cozinha do hospital, com os amigos de trabalho.

— Sabe Nely, nunca existiu... Você é maravilhosa, mas...

Naquele dia Nely saiu da mesa, deixando a fatia de bolo de abacaxi no prato (seu bolo preferido) e os sonhos de um novo relacionamento jogados no espaço. Correu para o quarto de repouso do hospital e abraçada ao travesseiro chorou, enxugou as lagrimas e falou baixinho pra si mesma que as lágrimas de hoje regariam o futuro de amanhã. Havia lido o livro “O segredo” de Rhonda Byrne e acreditava no poder do universo, costumava usar mantras e apostou no “Tenho tudo ao meu redor, se não foi com esse será com um melhor”.

Já havia se passado dois meses, acreditava que aquele momento na igreja iria lhe fazer bem, então deletou todas as mensagens e ajoelhou-se em oração. A igreja estava cheia, lá fora o céu estava carregado de nuvens cinzentas, mas fazia calor lá dentro e ela mudou para um banco próximo ao ventilador. Havia um clima de Natal por ali, luzes coloridas cintilavam no altar, adolescentes com gorros de papai Noel entoavam “Noite Feliz” regidas por um maestro que acenava a batuta em gestos mágicos, dando o ar da graça aos coristas. Crianças fantasiadas de duendes e outros personagens natalinos se agrupavam esperando a hora da apresentação no palco.

A igreja apresentava na sua arquitetura elementos decorativos de estilo neoclássico, tal como Nely que buscava superar o passado. A sensação era a de que algum espírito natalino, ou mesmo papai Noel poderia aportar por ali, pois tudo era mágico como nos cenários de filmes infantis.

Talvez tudo aquilo conseguiria apagar o acontecimento dos últimos dias, então resolveu entregar-se aquela magia e deixar a frustração para trás. Acomodou-se no banco e sorriu com entusiasmo para uma garotinha de cabelos cacheados e pele morena, que vestia um vestido vermelho de saia plissada, o que lhe fez lembrar de um episódio triste da infância, onde trajava uma roupa semelhante àquela, logo expulsou aqueles pensamentos, que lhe causara trauma e deu uma olhada no folheto da liturgia.

Nely observava o movimento dos fiéis na igreja e os casais que entravam de mãos dadas e por um instante pensou em Raí. Distraiu -se com um senhor vestido de papai Noel distribuindo presentes para as crianças que faziam a maior festa, logo despertou com a presença de um homem ao lado que lhe observava há bastante tempo. Ele cumprimentou-a, era simpático e educado e aparentava ter alguns tempos de vida a mais que ela, parecia ser solitário, pois durante o sermão do padre comentou que não gostava do Natal, uma vez que sempre comemorava sozinho. Nely ficou comovida, mas manteve-se calada.

O padre celebrou a missa, houve uma pequena peça teatral e a bênção final. Nely dirigia-se para a porta de saída quando o homem tocou em seu ombro e pediu o número do seu telefone. Ela hesitou, mas tomada por empatia e comoção cedeu. Já estava a caminho de casa quando espantou-se com a buzina de um carro, e aquele cavalheiro da igreja com toda gentileza lhe oferecendo carona. Estranhamente, mesmo sem conhecê-lo aceitou. Não se incomodou com os prováveis mexericos ou mesmo o receio do estranho. Abandonou-se ao carisma que emanava daquele sorriso fácil e foi. Ao entrar no carro, ele se apresentou, chamava-se Peter, era divorciado, economista aposentado e, como ela, era devotado de fé. Estava uma noite linda e a lua cheia, enamorando o firmamento, dava o ar da graça. No vidro do carro refletiam os pisca-piscas das lojas e residências, e o azul dos olhos de Peter refletia no retrovisor, roubando por vezes o olhar distante de Nely. Durante o percurso trocaram algumas palavras, e ela gostou do jeito culto, respeitoso e cheio de sabedoria com que ele dirigia o diálogo.

Saíram para um passeio na praia.

Nely era divorciada, casou-se jovem, criou os filhos sozinha, carregava consigo um certo ar de independência e resistência ao machismo e aos estereótipos impostos pela sociedade, porém percebia que a solidão não era sua boa companheira.

Gostou da companhia de Peter.

A orla marítima era bem distante do mar, mas dava para ouvir o barulho das ondas. A calçada colorida era harmônica com o azul do mar, havia uns quiosques rústicos e convidativos para um drink a dois. Caminharam por muito tempo e optaram por um boteco com cobertura de sapê, acabamentos coloniais e música ao vivo. Era pequeno e aconchegante, escolheram uma mesa de frente para o mar, havia pouca luz, apenas arandelas artesanais nas colunas e samambaias penduradas. A brisa tocava em Nely, como se acariciasse sua alma e sussurrasse em seu ouvido que para sentir é necessário fazer sentido.

A mão masculina tocou a sua e ela sentiu que o calor humano era bem melhor que o frio da solidão, embora gostasse da sua liberdade. Peter entregou o coquetel Sex on the beach em suas mãos e com a outra mão acariciou a nuca de Nely que sentiu um calor percorrer todo o seu corpo, dando-lhe a certeza que já estava enamorada. Ao som de How deep is your love de Bee Gees, os dois saíram para a pista de dança e os corpos colados encontraram os lábios, que sem entenderem que o céu é o limite, abandonaram as línguas no céu da boca.

Saíram os dois em direção ao mar. O sol já soltava seus primeiros raios. Vento e areia misturavam-se nos corpos abandonados, liberando endorfina. Ele apertou sua mão implorando que ficasse para sempre, ela respondeu baixinho: Nunca mais estarás sozinho, Feliz Natal!

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

terça-feira, 20 de dezembro de 2022

PROCESSOS DE ESCRITA: VARIADOS POEMAS, POR CAROLLINA COSTA

 

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PROCESSOS DE ESCRITA: VARIADOS POEMAS DE CAROLLINA COSTA


POR CAROLLINA COSTA


Gestar e parir não é tarefa fácil, quer sejam filhos, projetos ou... Livros. Diferente dos meus outros dois livros — O Singular do Dual, que foi um livro mais montado do que propositalmente escrito, e 30 Dias 30 Poemas, que foi um desafio poético que criei para mim mesma —, Variados Poemas foi um livro que me surgiu através das músicas “Carcará”, na voz de Maria Bethânia, e “Compasso”, de Angela Ro Ro, cada uma com sua marcação e em seu momento particular. É um livro dividido, porém não separado, em três partes, que apesar de temáticas são como três artérias que irrigam as páginas de um único livro com versos pulsantes em uma mesma harmonia.

Capa de Variados Poemas

Meio Bethânia, meio Ro Ro, Variados tem seu embrião no meu poema “Memórias”, que compõe a primeira parte do livro. Escrevi esse poema de sobressalto, ao me deparar com um vídeo no Instagram da música “Carcará”, cantada por Maria Bethânia ainda jovem. Até então eu só conhecia a música na voz de Nara Leão, mas a profundidade da voz de Bethânia logo no início da música me transportou diretamente para os caminhos da minha ancestralidade paterna, sendo meu pai nascido no interior da Bahia, porém criado no Rio de Janeiro. Não sei muitas histórias porque, como digo em um dos meus poemas dessa primeira parte, “sofrimento a gente só quer esquecer” e ficam as histórias deduzidas pelas cicatrizes que vez ou outra dão o ar da graça.

Apesar de ter sido trazido por “Carcará”, o poema “Memórias” também fala da minha ancestralidade materna, vinda do interior de Portugal. Essa conexão entre minhas duas ancestralidades no poema não surgiu à toa, visto que foram dois “interiores”, cada um com sua penúria, buscando uma nova vida em uma nova cidade ou país que me trouxeram até aqui. Quando terminei o poema junto com a música eu sabia que ainda faria algo com ele, só não sabia o quê. Então o guardei.

Algum tempo depois, ouvindo a rádio JB FM, tocou a música “Compasso”, de Angela Ro Ro, enquanto eu fazia alguma coisa no computador. Lembro que larguei o que estava fazendo e, já com alguns poemas soltos que escrevi desde o “Memórias”, escolhi o título do que seria meu novo livro de poemas, Variados Poemas. Estreei um novo caderninho de poemas e, a partir dali comecei a escrever intencionalmente para o livro. De início pensei apenas no que eu queria levar para esse livro: ancestralidade e processos de escrita. Eram dois temas que estavam me transpassando com frequência e de forma intensa na época, há uns três anos atrás.

Foram dois anos de escrita. Nem tudo que eu escrevia era pensando no livro — até porque também escrevia crônicas, microcontos, e os trabalhos da faculdade —, mas boa parte dos poemas eu escrevia intencionalmente para ele. Se eu gostasse, guardava, se não, deixava esquecido ou colocava na internet se achasse mais ou menos. Enquanto “Carcará” deu o pontapé para a primeira parte do meu livro sem que eu soubesse, “Compasso” me apresentou de cara a visualização de um livro completo, um livro que não era apenas feito de memórias, mas que unia os vários passados que não vivi com o presente que está constantemente em criação e o devir da potência criativa que é o motor de todo escritor, criador, artista. “Compasso” trouxe a linha que faltava na costura da obra para que eu também me visse representada no que escrevia, sem ser apenas uma narradora de memórias.

Ao buscar espelhar meus processos criativos na minha escrita, senti a necessidade de uma terceira parte no livro, e foi quando comecei a pensar na estrutura que se tornou a forma final: dividido em três partes, com poemas em inglês e português. Sou formada em Letras: Português-Inglês e professora de língua inglesa, o que faz com que eu tenha um grande contato com o idioma e muitas vezes crie textos em inglês por conta disso. Por um tempo estive imersa nos poemas de Emily Dickinson e no livro Walden, de Henry David Thoreau e deles tirei a terceira parte do livro — que, ao organizar as partes, ficou sendo a segunda — e a maioria dos meus poemas em inglês estão nela.

Ancestralidade, natureza e angústia criativa. Essa é a ordem na qual dividi o livro. Nem todos os poemas têm título, então coloquei uma pequena marcação em espiral no fim da página correspondente ao fim de cada poema para marcá-los, mas nada impede que o leitor as ignore e monte poemas novos. Espirais são círculos que voltam a um mesmo ponto por caminhos diferentes, talvez esse movimento possa inspirar leituras.

A capa também foi um processo criativo meu, mas pensada só depois do livro já montado. A lótus, uma flor que cria suas raízes na lama e floresce em água limpa, na cor vermelha é entendida como símbolo da compaixão por algumas culturas orientais. Pintei de forma simples em uma tela com tinta a óleo porque não sou nenhuma profissional de artes plásticas, mas também quis trazer certa simplicidade e autenticidade criando uma ilustração com minhas próprias mãos para o meu livro, como já tinha feito com O Singular do Dual. Penso na compaixão que a natureza tem com seus ciclos e na compaixão que precisamos ter tanto com nossas memórias quanto com nosso presente. De alguma forma a compaixão também transpassa esses versos.

Capa de Variados Poemas

Mesmo depois do livro escrito, ainda fiquei um ano pensando se publicaria ou não e como publicaria. Decidi publicar na primavera desse ano de forma independente pela plataforma da Amazon e da UICLAP, já disponível para todos que quiserem adquirir seu exemplar. Do tanto que todo esse processo me trouxe, desejo que o devir desses versos, desde a capa até a última folha, possa incentivar à busca de possibilidades nos (com)passos de cada leitor. Abaixo, deixo o meu poema “Memórias”, que foi como tudo começou:

Memórias

É o sangue do sertão que corre nas veias

O solo quente e infértil

A memória da fuga pelo sol

Da trajetória errônea que só quem não tem destino sabe viver

 

Aquela memória juntou com a vinha fria da segunda guerra

A benção de comer o que se planta

Mas também não saber como vai ser na próxima estação

 

A memória da roupa rasgada

Da fuga pela promessa de uma nova terra

A junção do imigrante de país com o estrangeiro de cidade

 

Dois interiores que se encontraram

E juntos formaram

O arcabouço de memórias

E as centenas de histórias

Que passaram de parto em parto

Até parirem

A mim

 

Link para o livro na Amazon

Link para o livro na UICLAP

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Carollina Costa é licenciada de Letras: Português-Inglês pela UFRJ e atua como professora de língua inglesa e escritora. É autora dos livros de poemas O Singular do Dual e 30 Dias 30 Poemas. Faz parte do coletivo de escritores Ecos Poéticos.


quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

SUSTÂNCIA - SOBRE ENCERRAMENTOS DE TEMPO, POR ROSANGELA MARQUEZI



Foto: arquivo pessoal da autora / 2022.


SUSTÂNCIA/03


 SOBRE ENCERRAMENTOS DE TEMPO


POR ROSANGELA MARQUEZI


Presa em um calendário que não condiz com meu tempo de ser. Eis a sensação que tenho em períodos que antecedem o fim e o nascer de tempos estipulados em folhinhas de almanaque. Em muitos momentos da vida, tudo que eu queria era não ver o tempo passar, nessa marcação arbitrária que inventaram sem nos consultar. Sinto, às vezes, que inícios e finais de tempo são apenas imposições de um sujeito ou de vários sujeitos que, não satisfeitos em simplesmente deixarem a vida fluir, resolveram inventar um calendário e nele nos prenderam.

O calendário não entende (e não aceita) que tem momentos na vida que tudo o que queremos ser é a Carolina, do Chico Buarque, aquela moça que não viu o tempo passar na janela, mesmo que, lá fora, uma rosa tenha morrido, uma festa tenha acabado, um barco tenha partido... Simples assim, como se pudéssemos cruzar o espaço-tempo ao ritmo da canção de Maria Bethânia e Zeca Pagodinho: “Deixa a vida me levar / Vida leva eu / Deixa a vida me levar / Vida leva eu”;

(Mas não! A vida urge urgente e cortante, cheia de rimas engraçadinhas para nos desviar a atenção do incerto mundo aberto!)

E corremos. Como formigas que perderam a direção do formigueiro. E voamos. Como mariposas seduzidas pela brilhante luz que as distraem do seu destino. E isso tudo para que, no dia primeiro de janeiro, novamente nos encontremos na linha de partida da corrida da vida.

Felizes os que conseguem cruzar a linha do tempo e não se quedam ao fim anual da jornada. Felizes os que entendem que calendários são arbitrários e vivem o tempo perfeito do momento presente. Para esses, há esperança. Para os desencantados, não sei...

O que sei é que esta minha rabugice logo passa, pois sei que nada melhor do que um tempo – sim, tempo – atrás do outro, com uma folguinha para respirar, para que tudo volte ao seu (in)devido lugar. E porque sei disso é que lhes digo que esta reflexão não é sobre desesperança, mas esperança-certeza de que, como tão bem ilustrou Heráclito de Éfeso, se ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, seremos novas mulheres e novos homens a cada segundo desta vida!!

E isso é transcender a existência! É também acreditar que todos as estações se fazem e refazem dentro de cada um de nós, passageiros efêmeros desse breve espaço-tempo de um bater de asas de uma borboleta que é a nossa história.

Seja feliz!



DICAS DA SUSTÂNCIA


1. Ouça Carolina, de Chico Buarque, e entenda que nem sempre precisamos estar atentos ao passar do tempo! A canção ficou em terceiro lugar no II Festival Internacional da Canção Popular (FIC), em 1967. Ouça AQUI!

2. Leia Como parar o tempo, do escritor inglês Matt Haig. É uma leitura bem instigante sobre a jornada de um homem, Tom Hazard, que, por causa de uma alteração genética, não envelhece da mesma forma que os seres humanos normais. Dessa forma, ele perpassa séculos da nossa história... O livro discute questões como imortalidade e como tudo vai se repetindo neste mundo... Paixões, medos, angústias, guerras. O livro foi publicado aqui no Brasil em 2017, pela Harper Collins. 

Eu fui pessoas que odiei e pessoas que admirei. Fui divertido e chato e feliz e infinitamente triste. Já estive do lado certo e do errado da história. 

3. Ouça a música Sobre o tempo, do Pato Fu, lançada no álbum Foi gol de quem?, de 1995. É uma música que, mesmo não tendo uma letra que nos faça profundamente refletir, nos faz dançar ao sabor do tempo... Uma delícia. Ouça AQUI!

4. Veja o quadro Persistência da memória (1931), do pintor surrealista Salvador Dalí. Se for possível, visite o Museu de Arte Moderna da Nova York (MoMA) e veja-a ao vivo! Se não puder realizar este passeio, a conheça a partir do site do MoMA (https://www.moma.org/collection/works/79018! Com seus tradicionais relógios “derretendo”, a pintura de Dalí traz um cenário onírico, que faz um diálogo, talvez, com a Teoria da Relatividade, de Einstein, além de trazer a ideia de que o tempo passa sem que possamos controlá-lo. É uma pintura que merece ser vista e pensada!

Foto: reprodução da Internet


5. Deguste o poema Seiscentos e sessenta e seis, do poeta alegretense Mario Quintana, publicado originalmente no livro Esconderijos do tempo (1980), no qual o autor traz a ciência da inexorabilidade do tempo...

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

6. Leia Em busca do tempo perdido (1913-1927), um clássico da literatura mundial, escrita por Marcel Proust. São sete livros nos quais o autor, a partir de um momento em que degusta uma Madeleine, mergulhada no chá, começa a lembrar da infância e vai nos trazendo uma gama imensa de personagens, que acabam se encadeando em diferentes histórias na França da Belle Époque. No último volume, O tempo redescoberto, o narrador por fim percebe que só poderá trazer o passado de volta a partir de sua escrita, entendendo então sua vocação: escrever um grande romance. Uma das traduções aqui para o Brasil foi feita por diferentes tradutores, entre eles os famosos poetas Mario Quintana (volume 1 a 4); Manuel Bandeira (volume 5), junto com Lourdes Sousa de Alencar; e Carlos Drummond de Andrade (volume 6); O volume 7 foi traduzido pela importante crítica literária Lúcia Miguel Pereira.

7. Corra a uma boa panificadora e coma uma deliciosa Madeleine, famoso biscoito em forma de concha, originário da região de Lorraine, na França.

Foto: reprodução da Internet


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Rosangela Marquezi
[foto arquivo pessoal da autora]
Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação, mas aprendente de novos olhares por opção... Nas horas vagas, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal.


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