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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: MINOTAURAS, POR LÍGIA SAVIO

[Arquivo pessoal da autora/Facebook]

PROCESSOS DE ESCRITA: MINOTAURAS 

POR LÍGIA SAVIO

Como não podia deixar de ser, a questão feminina vinha me instigando há muito tempo e me levando a escrever poemas sob esta tônica. Fui revisitando minha história e me dando conta do quanto fora oprimida pelo simples fato de ser mulher, mesmo usufruindo dos privilégios que tem uma mulher branca, letrada e que nunca viveu numa periferia, mesmo tendo trabalhado numa delas. Havia uma urgência em escrever sobre a minha trajetória, que era a de tantas mulheres como eu e apresentar, através da escrita, as minhas tentativas de libertação dos padrões patriarcais em que ainda vivemos.

O próprio fato de uma mulher escrever já é um ato de rebelião, considerando que a maioria dos escritores é do sexo masculino. Estudiosa da cultura grega, percebi o quanto ela fora dominada pelos homens. A própria mitologia grega representava um ponto de vista masculino e até misógino em suas histórias. Resolvi, então, ressignificar os mitos que sempre me encantaram. Assim, escrevi alguns poemas neste teor. Como exemplo, cito Re-mitológica: 

[Arquivo pessoal da autora/Facebook]
           É só do sal de Urano

que nasce a força erótica?

Foi esta a história que contaram.

Só os deuses-homens

gestavam o amor.

Mas Afrodite,

na concha

expele jorros

pelas pernas

criando palavras

                                                          de todos os sexos.


[Arquivo pessoal da autora/Facebook]

Assim escrevi Recado a Perseu, Antígona, Viagem ao Hades e outros poemas. Nesta linha, nasceu o livro Minotauras, meu mais recente livro solo de poemas, lançado em dezembro de 2022, em Porto Alegre, pela editora Casa Verde. Imaginei o monstro do labririnto como um ser feminino. Um ente execrado por todos, que deve permanecer escondido, pois oferece perigo e é temido por seu poder: não é isto o retrato das mulheres?

Há um poema no livro cujo título (Minha deia) faz um trocadilho com o nome da poderosa personagem Medeia e que finaliza assim, fazendo alusão à história desta mulher:


No ágon da vida

quero ser

a principal

a que imola

a que mata

a que foge 

no carro dos deuses.

não me peçam pra não latejar.

 

É o que pretendo para todas as mulheres com este livro. 

*--*  *--*  *--*   *--*

Para aquisição do livro entre em contato com Lígia Savio através de seu perfil do Facebook, clicando AQUI.

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Lígia Savio é gaúcha de Porto Alegre, participou de várias antologias do Mulherio das Letras. Em 2015, publicou seu primeiro livro solo de poemas, No Dorso da Palavra, em 2019, Fios de Aço e, em 2022, Minotauras.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: CONSTRUINDO VERSOS, POR RILNETE MELO

PROCESSOS DE ESCRITA: CONSTRUINDO VERSOS 

POR RILNETE MELO


Movida pelas pernas da sensibilidade poética e caindo no abraço provocador da nossa querida Marta Cortezão, eu trago o entrelaçamento do meu processo criativo, o qual tomado pela estesia das minhas inquietações, revelou-me “Construindo Versos”: O meu primeiro livro solo.

O título talvez não seja impactante, mas surgiu do ofício da criança que costurava sentidos com as cores do perceber. 

Desde a minha tenra idade eu carregava um olhar sensível e pujante sobre as coisas e as pessoas, e foi pelas rimas dos cordéis, lidos por minha avó paterna, à luz de lamparina, e pedalando a sua velha máquina de costura Singer, que nasceu a minha paixão pela poesia e a construção dos meus primeiros versos.

Tive uma infância feliz, subi em árvores, tomei banho de igarapé, corri atrás do tesouro no arco íris, brinquei com as bonecas do milho plantado pelas mãos do meu avô Tonho, tomei leite no curral, comi doce de pitanga e recitei versinhos para os meus pais, ainda não alfabetizada, subindo em uma cadeira e recebendo os seus aplausos.

Os sentidos que eu costurava faltou tecido aos 9 anos de idade e os versos ficaram incompletos, tortos, xoxos e engavetados na escuridão, pois as mãos que me ofereceram hóstias,  tocaram meu corpo infantil sem meu consentimento  ,deixando marcas indeléveis.

Foram anos de silenciamento, dor  e interrupção criativa, mas no desvelamento do não -dito , aos 15 anos resolvi escrever textos poéticos no meu diário. 

Como se não bastasse o abrupto corte criativo, causado  pelo luto invisível da alma, perdi o meu querido diário em uma  viagem de ônibus do Maranhão para Natal-RN.

Pois bem, nunca tive o hábito de decorar meus escritos, então lá se foram meus segredos inconfessáveis e os versos que eu havia construído desde a infância. Em 1994, já casada e com um filho, adentrei o mundo virtual e compartilhei no site Recanto das letras alguns dos meus escritos, onde tive um bom feedback. Foi o início de uma batalha travada entre o desejo de cuspir palavras e a dor de engolir os ciúmes e o machismo (regados à traição) do meu marido.

Eu não queria parar, pois fervilhava em minhas veias o sangue poético, aquecendo minha pele feminina de inquietações. Por vezes, entre as trocas de fraldas, as conversas com as panelas, ou mesmo nos intervalos do trabalho, vinham os insights poéticos e eu registrava em um caderno (no meu campo de silêncio), onde a palavra tinha sede de grito.

Em 1996, engravidei do segundo filho e deixei também palavras grávidas, nas crônicas que escrevi na coluna do Jornal “O Potiguar” em Natal-RN, foi aí que percebi algo latente me cobrando audácia e coragem para prosseguir, pois com dois filhos e um casamento fracassado, eu dei minha “cara a tapa” e tirei as correntes das mãos, para representar a voz feminina e fazer valer a minha resistência aos estereótipos, e ao machismo que tentava me calar. 

Em meio a um relacionamento pedindo socorro, veio a separação, e com ela a sensação de liberdade invadindo meu cérebro e levando forças para atingir os meus objetivos. Retorno ao Maranhão, com dois filhos pré-adolescentes e na bagagem a coragem de uma mulher “sem eira nem beira”  e a força de uma mãe plantando sementes  e sonhando com grandes searas.

Para incentivar a formação dos meus filhos, veio a minha graduação no curso de Letras, embora tardia , mas chegou desatando os nós e criando  um vínculo marital com a palavra. Sim! Afiei a língua, cortei as amarras e crenças limitantes, soltei o verbo  e deixei os meus textos  voarem no mundo virtual, abrindo olhares e olheiros.  

Na vida, o que alavanca as realizações são as oportunidades e os recomeços, por isso ativei o modus operandi, e numa onda de “desvencilhamento”, me lancei no mercado editorial, através das antologias e concursos literários.

E veio a aproximação no distanciamento... Paradoxal, né?  Pois é, mas foi na pandemia que a poesia me abraçou com força! 

A pandemia foi um acontecimento planetário, inusitado e catastrófico, evidenciando a fragilidade da humanidade, mas exibindo a força da voz  feminina,  que como antídoto avançou no ambiente  on-line. Os coletivos literários femininos explodiram, exigindo que nós mulheres poetas, não deixasse esse momento sem palavras, então Juntei-me ao coletivo “Enluaradas” entre outros, e lancei-me ao desafio de ressignificar a dor, o medo e a falta do calor humano através da poesia. 

Em meio ao caos pandêmico, os impactos me serviram como dispositivos criativos, e como se quisesse tornar tangível  o confinamento,  deixei gestar    “Construindo Versos”, para oferecer ao meu leitor  as minhas inquietações humanas e femininas.

Um Spoiler do livro:


Combatentes

 

Removendo pedras

do solo endurecido, 

a ranger de dor,

atira no rabecão

pai, mãe, irmão... 

Os olhos tecem,

o rude engasgo

do invisível severo,

que não deixa velar.

Marcha para a rua vazia;

os combatentes,

a esperar a sorte tecer o troféu:

da fome,

do medo,

da dor,

ou do viver!   

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Rilnete Melo é brasileira, maranhense, graduada em letras/espanhol, escritora, cordelista membro das academias ACILBRAS, ABMLP e AIML, participou de várias antologias nacionais e internacionais, autora do livro “Construindo Versos" e autora de cinco cordéis. 

sábado, 4 de fevereiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: KRENAK, O MENINO DOS BRAÇOS COMPRIDOS

 

PROCESSOS DE ESCRITA: KRENAK, O MENINO DOS BRAÇOS COMPRIDOS 

POR TERESA CRISTINA BENDINI

Meu oitavo Livro Infantil, "Krenak, o menino dos braços compridos", lançado em janeiro de 2022 pela editora Letra Selvagem, foi uma das muitas produções literárias espalhadas por todo o mundo, motivadas por uma catástrofe de dimensão incalculável: A Covid-19, que vitimou cerca de 700 mil brasileiros e outros tantos milhões pelo mundo.

Essas produções tornaram-se registros preciosos por falar de uma calamidade planetária. Contos, romances, poesias, crônicas e livros infantis como o meu, surgiram inspirados pela pandemia de Covid 19. Elas vão narrar os efeitos na pisquê humana, contando através dessa vasta produção, as mazelas causadas por ela  no mundo todo. Escrever esse texto foi como se eu me curasse, como se eu me libertasse do medo, da raiva contida, da desolação que me causou não poder ver meus filhos bem de perto, por não poder abraçá-los, senti-los fisicamente.  Enfim, senti que estava produzindo uma literatura para expressar a dor de uma humanidade inteira, toda ela vítima de uma doença desconhecida, que provavelmente só foi possível devido a um sistema econômico predatório, destruidor de biomas e ecossistemas. 

Krenak é um indiozinho, um curumim. Ele percebe que seus braços crescem, toda vez que tenta abraçar algo. Mas ele quer curar o mundo com seus abraços. Eu estava distante dos meus filhos, e sentia falta de abraçá-los. E essa dor não era somente a minha, era a de todas as mães, pais, parentes, amigos. Enfim, eu queria falar disso. Abraçar é uma experiência uterina, quando eu abraço meus filhos, é como se eu os devolvesse para o meu útero. Eu queria colocar todas as crianças nele, elas estavam assustadas, perdendo avós, tios, pais, irmãos. O útero é um local aconchegante. Eu quis inventar um lugar de calma, de utopia, de recomeço, de encantamento. Esse lugar era o abraço. Dessa constatação nasceu o texto. Mas também de uma questão importante: A questão ambiental. Ela me chegou através do pensamento de um ambientalista famoso. Ailton Krenak e seu livro "Ideias para adiar o fim do mundo". Um livro que eu considero crucial para se compreender a problemática ambiental do Brasil e do mundo. É uma leitura imperdível. Como estávamos isolados, o jeito foi se encher de livros, de música, de arte. Daquela que estava disponível. O livro de Ailton Krenak deu concretude ao meu. Seu pensamento cheio de argumentos, veio de encontro à minha sensação de indignação. Então o menino Krenak, é o próprio Ailton, que com seus bracinhos compridos, leva para o mundo sua mensagem curativa. O indiozinho também propõe no meu texto, um outro modelo de existência, já em andamento. Esse modelo se baseia na sabedoria indígena.

As ilustrações do livro são de Carolina Latorre

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Teresa Cristina Bendini é poeta, nascida em Taubaté, SP. Escreveu oito Livros Infantis e um de Poemas. Seu último Livro: "Krenak, o menino dos braços compridos", escrito durante a pandemia, faz alusão ao urgentíssimo texto: "Ideias para adiar o fim do mundo", do ambientalista e pensador indígena, Ailton Krenak.

terça-feira, 24 de janeiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: IN(-)VERSOS DO MEU VERSO, POR RITA ALENCAR CLARK


IN(-)VERSOS DO MEU VERSO - A SAGA DO LIVRO AZUL PERDIDO


           Quando recebi o chamado de Marta Cortezão ao presente projeto, de pronto lembrei do meu livro perdido por 25 anos, bodas de prata, portanto; mas para falar sobre ele precisaria retornar ao ponto de retomada da minha escrita, o que ocorreu quando estava concluindo minha pós-graduação em Literatura, Arte e Pensamento Contemporâneo na PUC-Rio, concluída no ano de 2008. Evidentemente, para receber o certificado, precisaria escrever a monografia, e aí estava todo o problema. Voltar a escrever.

Em 2006, quando dei início ao curso, meu casamento estava entrando na primeira e grande crise, 10 anos de um casamento conturbado, mas, de alguma forma, feliz. Dois filhos pequenos e uma filha jovem adulta do primeiro casamento. Dava pra levar, no malabarismo emocional, no foco, atenção plena. Bem, resolvi que estava na hora de retomar minha carreira de escritora, renegada desde que se deu o sumiço do “livro de capa azul” como ficou conhecido na casa paterna. Sim, havia dado ao meu pai, escritor e poeta, a “boneca” datilografada para que fizesse as devidas correções, revisões etc. Ingenuamente, coisa que jamais me perdoei, não tirei cópia, numa era que não havia “nuvem”, nem arquivos de textos confiáveis… foi perdido entre os manuscritos tantos de meu pai quando a família mudou-se para um novo endereço. Nunca mais foi visto nem falado, o “livro azul da Rita” virou tabu, incômodo, inconveniente, prova viva da (des)organização acumulativa que imperava no seio familiar. Por anos não pude falar, tocar no assunto, tive que engolir o choro, “aguar o bom do amor” e seguir em frente. O pai, poeta, constrangido e vencido, nada dizia, sabia muito bem da minha dor, já tendo livro inédito perdido também…dor e desolação. Parei de escrever!

Foram anos de negação e isolamento, da escrita bem dizendo, porque a vida “de fora” bombava, explodia em aliterações, antíteses e plot-twists! Dez anos, especificamente, dez anos me recusando a escrever. Acho que por isso, depois da explosão da primeira crise conjugal, resolvi voltar a estudar, queria retomar de um ponto que julgava ser a minha grande recompensa, me reconhecer como escritora, afinal. Foram 18 meses de luta contra o machismo e a intolerância de meu marido, que entre sabotagens emocionais e ironias, alegava que jogava dinheiro fora com esse “cursinho de pintar porcelana”, como ele gostava de referir-se a minha especialização. Na verdade, tinha ciúmes, talvez uma ponta de inveja da minha coragem; por posse, queria-me recatada e do lar, eu queria correr com os lobos…assim fui levada pelo perigo, pela determinação e coragem. Morava na Barra, a PUC, na Gávea, tinha o Pires e o Baixo Gávea, tinha a liberdade de interagir fora da bolha. Todas as 3as. e 5as. estava lá, firme, não me deixei intimidar. A filha mais velha fazia Direito noturno, também na PUC, íamos juntas, uma farra deliciosa, inesperada, fazer faculdade junto com a filha! Não preciso dizer das brigas e confusões, armadas pelo marido possessivo, que precederam as minhas saídas de casa. Mas, com filhos cuidados, alimentados e supervisionados por uma eficiente babá, o mundo, naquelas noites de terça e quinta, era meu, só meu!

Fiz amizades intensas com colegas e professoras, deixei o medo de escrever de lado e me joguei nas narrativas, contei histórias, fiz poesia, li muito, descobri universos inexplorados e inóspitos, faz parte, não lemos apenas o que gostamos, fui confrontada, exigida, resgatada, enfim, quebrei a casca embrutecida que esmagava minha sensibilidade adormecida e rompi a crisálida.

Não raro precisava passar fins de semana imbuída em trabalhos acadêmicos, prazos e apresentações, numa dessas ocasiões já no final do curso, prestes a entregar a monografia, prestes a ter um “passamento”, como dizia minha avó quando queria nos assustar: “...fiquem quietos, parem de brigar, senão a mãe de vocês vai ter um passamento!”, entrei em pânico, achei que não daria conta diante às demandas, mas não tive o tal do “passamento”. Naquele estado catártico encontrei uma bolha de referência para respirar, lembrei de Clarice Lispector, estava lendo a sua biografia… lembrei, especificamente, da foto dela com a máquina de escrever no colo, o cinzeiro ao lado, a folha de papel engatilhada no rolo, o olhar lânguido e, imagino, o caos a sua volta! Vamos, eu disse a mim mesma, se ela conseguiu você também consegue! Para isso servem as referências, tinha que acreditar naquilo, era minha única chance. Terminei o manuscrito.


[arquivo da autora-com os pais]
Naquele ano, 2008, meu pai ainda estava bem e ajudou-  me com algumas partes do texto, na verdade achei um meio de resgatar uma história que era dele também, afinal o título do meu ensaio/monografia era “Milton Hatoum - Um breve olhar pelo Oriente-Amazônico”, a narrativa travava um diálogo entre "Relato de um certo oriente" de M. Hatoum e a obra “A casa do tempo” de outro poeta Amazônico chamado Jorge Tufic também, como Hatoum, de origem Libanesa. Essa busca e reminiscências ocuparam muitas das nossas tardes, a alforria concedida pelo marido que me deixava em paz, era uma brisa suave que invadia minha existência naqueles momentos…ríamos, meu pai e eu, das histórias contadas por Tufic, história de juventude, ambos eram amigos-irmãos, saíram de Manaus juntos aos 20 e poucos anos para descobrir o mundo, pelo bem e pelo mal, pela poesia de certo, fizeram história e hoje são Imortais da Academia Amazonense de Letras. Em contrapartida, contava-lhe das aulas que havia tido com Milton Hatoum na UFAM, em uma Manaus dos anos 80. Ele, empolgado, só dizia: “mas minha filha, isso é uma obra de criação… tem que ser publicado!” – Calma pai, ainda preciso concluir a monografia…e tirar 10! Não sabíamos, mas esse foi nosso último momento juntos, inteiros, vibrantes, onde a poesia que corria nas nossas veias vazava para o papel, derradeiramente. Ele se foi em 2011, mas desde 2009 a vida drenava-lhe as forças do corpo, o mal de Parkinson tirou-lhe o prazer da escrita à mão, assim como o prazer daqueles 3 chopes à beira mar. Tirei 10, concluí a “pós” e o livro foi publicado pela editora do Tufic, que cheio de gratidão, providenciou tudo. Não teve lançamento, a doença dele agravou-se, idas e vindas ao hospital, cirurgias delicadas, tudo foi feito…ele se foi levando os últimos versos de um soneto inacabado, uma quadra de decassílabos, ditados em transe pelo efeito da morfina…transcendeu.

Rita Alencar Clark com Milton Hatoum/arquivo autora

Rita A. Clark e filhos/arquivo autora

Voltei a escrever com fúria e dor, fiz versos para rasgar o peito, mutilar a dor, enfrentar a besta nos olhos! Nada podia me parar agora, nem eu mesma. O casamento acabou, os filhos salvaram-se de ver o pior, mas eu não, vi a fúria do homem possuidor e possuído, quase perdi a vida e a razão. Saí de casa com os hematomas, no corpo e na alma, mas levando o que era mais valioso, os filhos, os livros e os gatos, intactos.

Hoje, 12 anos após esses eventos, ainda sinto um torpor pela agressão sofrida em alguma parte recôndita do meu corpo, de vez em quando ela grita, para me acordar, me sacudir. Para não me acomodar.

Lembram do “livro de capa azul” lá do começo? Ele reapareceu durante a pandemia…minha irmã, resolveu abrir caixas de documentos em busca de algo importante e ele saltou do limbo de onde se encontrava, para este espaço/tempo, vindo de algum multiverso. Postou no grupo: “Achei o livro perdido da Rita!” - Obrigada, paizinho!

O livro de capa azul tem título: “In(-)versos do meu verso", título forjado a quatro mãos, antes de viajar pelo incognoscível. Ele foi revisado, atualizado e agora espera a hora de ser publicado, após longa viagem. Despeço-me desta viagem, agradecendo sua companhia, com dois poemas do meu livro-tesouro azul:


Espelho De Alice

 

Um dia tive um sonho

Cavalo solto, crinas ao vento

Luz de luar, luar de sangrar

A guiar-me trôpegos os pés

Bosques meus, tendas minhas

 

Escudo de Perseu oblíquo

Noite travestida de sol

Bocas em notas noturnas

Espelho invertido de Alice.

 

Quem vem me buscar?

Sequestrei-me do sonho

Crime inafiançável, hediondo

Forasteiro de além-pátria!

 

Busquei-me entre os espelhos

Sem me encontrar em nenhum

Estilhaços de mente-cuore

Cinzas de amor destratado

 

E já me tardo na dor...

Vazio de bocas e vozes

Bar aberto, copos vazios

Peitos outrora plenos e meus

Hoje negro e frio acepipe.

* _ *  * _ *  * _ *  

 

Lágrimas na chuva

 

Lá fora

os ventos levantam

Árvores e rios, levam embora

Pedaços de troncos e plásticos vazios

Escoam nossos dejetos os ventos vadios

Lá fora

o frio úmido da solidão

Varre corpos e veias expostos pelo

Caminho encharcado; roupas, calçadas, encostas ocas,

Destratados corações e bocas.

 

E eu aqui, dentro de mim,

Quente e acomodada em meu silêncio

Transbordando em aflição no suave

Encosto de almofadas macias.

Penso... Penso e me incomodo!

Estou sendo poupada de quê?

Para quê? Tenho pena, sim pena!

É triste ter pena, ter pena e compaixão

Não me elevam a posição superior!

Tenho pena de tudo que não faço,

Do meu medo, de não me envolver,

De me conformar...

Tenho tanto medo de ter pena de mim!

 

Lá fora

os ventos sopram fortes ainda

Já arrebataram esperanças e vidas

Já destruíram pontes que ligavam

Caminhos a caminhos de volta.

Lá fora a água que dá origem

Lava e leva embora gente aos cacos,

Destinos interrompidos deixando

Vidas em pedaços como um grande

Quebra cabeças desfalcado,

Rejeitado a sua própria sorte.

 

Lá fora,

como aqui dentro,

Um caos se instala de súbito

E eu sozinha, em silêncio,

Recosto-me no escuro e meto-me

Numa viagem metafísica

De Alice alucinada e real,

E deixo-me ir, em lágrimas,

Encontrar o sono do desassossego.

 * _ *  * _ *  * _ *  

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Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

PROCESSOS DE ESCRITA: ASAS DO INAUDÍVEL EM LUZES DE VAGA-LUME, POR ELIZABETE NASCIMENTO

 



O PROCESSO CRIATIVO DE ASAS DO INAUDÍVEL EM LUZES DE VAGA-LUME 

 POR MARIA ELIZABETE NASCIMENTO DE OLIVEIRA


Bem disse a enluaradíssima Marta Cortezão (2023) ao nos provocar à escrita do processo de criação poética, é uma proposta simples, mas profunda e instigante. Sim! Profunda e instigante porque provoca a revirar o baú da memória e, esse baú, é composto de singularidades recheadas de sinestesia e profundidades. Gosto de pensar que as águas que percorrem as páginas do meu primeiro livro de poemas escorrem pelo meu corpo desde sempre porque trata-se de memórias que foram incorporadas em mim e residiram/residem no meu imaginário.

Desde a infância, embora de família pobre, sempre estive rodeada de livros escritos em diferentes gêneros discursivos, fator que contribuiu satisfatoriamente na minha trajetória porque amo estar entre a multidão contida nos livros; mas que podem ir aos passeios mais badalados pelas asas incontroláveis da imaginação criadora. Filha de um baiano que, mesmo semianalfabeto, adorava contar histórias de cordéis e de uma japonesa que, embora tenha feito apenas os anos iniciais, gostava de ler as revistas de fotonovelas, me vi desde muito cedo envolta em meio às personagens de ficção.

Fui uma criança um pouco solitária, mas feliz porque tive a oportunidade de correr no campo, subir em árvores, buscar laranja no pomar, tomar banho de cachoeira, brincar de amarelinha, chupar mangas, amoras e seriguelas no pé, jogar queimada, enfim, de vivenciar a infância com o que ela tem de banquete para ser degustado. Amava brincar com as cigarras e entre os vaga-lumes, pois morei por muito tempo na zona rural. Sou a filha mais nova de três, com diferença de nove anos de idade da minha irmã e dez anos do meu irmão; minha irmã se casou com dezesseis anos e meu irmão saiu de casa para trabalhar, ainda muito novo. Esse fator me aproximou ainda mais dos livros, pois era uma forma de me ver acompanhada. Quando adolescente, tive a oportunidade de ler muito romance, como: Sabrina e Julia. A solidão nos ajuda a observar com maior amorosidade a natureza e as belezas contidas no cosmo. Por muitas vezes, vi inúmeras constelações nas flores de um pé de flamboyant que havia no quintal da casa, lembro-me como se fosse hoje do banco de madeira e da rede de balanço, também, vermelha pendurada naquela árvore.

Os fragmentos da minha vida são importantes para fundamentar a afirmativa que o esboço de grande parte dos poemas que compõem a obra já estava guardado há algum tempo no meu imaginário, mas tomou formato escrito apenas no ano de 2015, após a aprovação no curso de doutoramento em estudos literários, em Tangará da Serra. A construção de uma casa se assemelha à produção de um livro, pois desde o alicerce ao acabamento final é preciso dispensar atenção e cuidado. Embora, às vezes, tenhamos a sensação de que tudo tenha surgido repentinamente, quando paramos para refletir o processo, percebemos que os tijolos foram construídos em nós desde sempre. Com isto, ressalto que quando me perguntam sobre o processo criativo, digo: aconteceu naturalmente! Porém, quando paro para uma ponderação mais profunda, vejo que sim e não, é um processo natural; mas resultado de uma maturação realizada dentro de mim, desde sempre.

O processo criativo de uma obra poética, na minha percepção torpe, nasce no corpo feito hera, rumina em nós até tomar proporções insustentáveis porque afeta nossos desejos e segredos recônditos, nos convocam a andarilhar pelo nosso mundo, também, na companhia de nossos avessos, ou seja, acionam o nosso lado dúbio, interno e externo. Não penso que se trata apenas de um desenvolvimento da mente e/ou da imaginação, mas, sobretudo, de um envolvimento, de uma constituição ímpar do ser no mundo. Eu cato aqui e acolá os badulaques que me constituem e, de certo modo, me construo com essas engrenagens. São elas que movimentam o meu mundo e, por isso, que tudo que sou, não pode ser igual, é singular; aciona uma essência que é só minha, que só pode correr, desse jeito, no meu corpo; mas pelas nuances do meu ser dialoga com o outro porque também sou constituída pelos outros e/outras coisas que partilham comigo do mundo.

Os textos nunca estão bons a ponto de serem publicados, mas se trata de uma análise que aos poucos cai por terra, porque a escrita, também, passa por um processo de amadurecimento, necessita brotar em algum momento, para se inaugurar. Quando falo em poesia, proponho de um jeito simples todo meu dialogar com o mundo e com as pessoas, de modo a formar uma constelação de vozes que reverberam em nós e quem sabe anunciam outra sociedade. Acho lindíssimas as diferentes formas com as quais as mesmas palavras cantam/escorrem em cada corpo.

Observei que a maioria das pessoas que adentra aos cursos de pós-graduação nas universidades fica muito solitária e tende a ter problemas emocionais devido à profunda carga de leitura teórica e produção de textos científicos. Assim, pensei que necessitava criar uma válvula de escape porque a maior promessa é direcionar a minha vida por um campo onde eu possa viver com responsabilidade e comprometimento todas as minhas dores e alegrias; pensando nisso criei um grupo de WhatsApp com algumas amigas, denominado Clube do Café e, posteriormente criamos o Facebook Aromas de Mulher com esse nome para nos encontrarmos, o objetivo era sair do espaço da academia para compartilhar outras coisas que fazem parte do cotidiano da mulher. Estes grupos ainda estão em vigor e contribuem significativamente para tornar a minha vida um pouco mais leve. Para além desses canais, destaco ainda que mantenho a página no Facebook Asas do Inaudível, criada por um leitor/amigo, onde publico outras produções autorais e recebo alguns feedbacks de leitores(as).

A cidade onde moro, Cáceres/Mato Grosso, fica a aproximadamente 220 km de distância de Tangará da serra, também no MT, onde faria o doutoramento e na época grande parte da estrada não era pavimentada. Então, praticamente uma vez por mês, ficava uma semana em Tangará da Serra e, como as disciplinas do curso eram ministradas durante o dia, à noite aproveitava para ler textos poéticos e escrever com liberdade. A arte sempre esteve muito presente nas minhas ações, pois ela é quem me ajuda a observar as flores existentes no caminho, assim após a defesa da tese de doutoramento organizei na minha cidade um evento com a presença da poeta Luciene Carvalho. Nesse encontro, ela teve acessos a alguns dos meus rabiscos e me incentivou à publicação, minha primeira reação foi categórica, disse não; mas numa bela manhã de segunda-feira, recebi um telefonema da autora dizendo que o prefácio do livro estava pronto e começou a lê-lo. Minha reação foi chorar compulsivamente porque era um olhar repleto de sensibilidade e de carinho que não tinha como não ser encorajada à publicação. Encaminhei o esboço para a editora Carlini e Caniato, que fica localizada na capital do nosso estado – Mato Grosso - e essa se encarregou pela produção da capa e revisão geral. Assim, surgiu à obra impressa.

O livro impresso ficou pronto no início do período pandêmico – a terrível onda do vírus COVID-19  tirando a oportunidade do lançamento presencial. Confesso! Fiquei bastante triste, pois estava eufórica para partilhar com minhas amigas esse momento de alegria; mas logo pensei em uma alternativa, lancei o livro em formato on-line pelo canal Asas do inaudível em luzes de vaga-lume no youtube, creio que se trata do primeiro livro, em nosso estado, lançado virtualmente, ainda na aprendência para vencer a timidez em aparecer na tela do computador; mas foi uma experiência enriquecedora, para não dizer engraçada, inovadora e, dado o momento, necessária. Segue abaixo, dois poemas que compõem o livro:

O silêncio


Silêncio nunca é ausência.

É plenitude, criação fetal.

Às vezes, meigo,

embala o sono,

perfuma o sonho.

Outras, selvagem,

chega galopante,

tortura a mente,

espreme o cérebro,

arrasta-nos

do/para

o cativeiro,

companheiro de redenção.

 

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Manifesto


Onde estão as mulheres escritas

pela goiana Cora Coralina,

pela mineira Conceição Evaristo,

pela ucraniana-brasileira Clarice Lispector

e tantas outras que

escrevem e escreveram

com o sangue que jorrou de si?

Apagadas,

invisíveis,

sem valor...

Gritos sufocados no universo de papel,

mulher-esposa,

mulher-amante,

mulher-mãe,

mulher-sonhadora,

mulher-profissional,

mulher-sedutora,

mulher-mulheres.

Vivendo todas em uma.

Este ser múltiplo, original.

Avante! Abra as portas e as janelas,

respire o ar que, também, sai de suas entranhas.

Únicas,

desiguais.

Hoje, ao olhar o livro Asas do inaudível em luzes de vaga-lume (2019), com a identidade de pesquisadora em estudos literários, analiso que muitas questões poderiam ser repensadas se consideradas as convenções linguísticas e/ou a formatação estrutural dos textos. Mas, com o olho adoecido de poeta, sinto que não. Era exatamente assim que este livro saiu de dentro de mim e, com um vocabulário tão restrito, mas tão meu, ganhou asas com palavras que se metamorfosearam em poemas. Já com a visão heterogênea de professora, creio serem pássaros que voam livres à procura de porto e/ou de leitores sensíveis, capazes de olhar pela janela ao encontro dos mistérios do mundo. Como mulher, desejo que cada leitora sinta-se instigada a criar outros pássaros que se juntam em revoada ao meu e, com asas em movimento, redesenham na imensidão desse céu azul, a luz e a harmonia do voo coletivo, sempre a vislumbrar um horizonte possível. Atitude que poderá livrá-la das diversas formas de exílio existentes na alma feminina.

 


NASCIMENTO, Elizabete. Asas do inaudível em luzes de vaga-lume. Cuiabá: Carlini e Caniato editorial, 2019.

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Doutora em Estudos Literários, poeta, professora e mulher que sonha com equidade. Livros: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos. São Paulo: Paulinas (2012); Asas do inaudível em luzes de vaga-lume. Cuiabá/MT: Carlini & Caniato (2019), Sinfonia de Letras: acordes literários com Dunga Rodrigues. Paraná: Appris/2021. Professora, DRE-Cáceres/Mato Grosso-Brasil.

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