POR MARIA ELIZABETE NASCIMENTO DE OLIVEIRA
Bem disse a enluaradíssima Marta
Cortezão (2023) ao nos provocar à escrita do processo de criação poética, é uma proposta simples, mas profunda e
instigante. Sim! Profunda e instigante porque provoca a revirar o baú da
memória e, esse baú, é composto de singularidades recheadas de sinestesia e
profundidades. Gosto de pensar que as águas que percorrem as páginas do meu
primeiro livro de poemas escorrem pelo meu corpo desde sempre porque trata-se
de memórias que foram incorporadas em mim e residiram/residem no meu
imaginário.
Desde a infância, embora de família
pobre, sempre estive rodeada de livros escritos em diferentes gêneros discursivos,
fator que contribuiu satisfatoriamente na minha trajetória porque amo estar
entre a multidão contida nos livros; mas que podem ir aos passeios mais
badalados pelas asas incontroláveis da imaginação criadora. Filha de um baiano
que, mesmo semianalfabeto, adorava contar histórias de cordéis e de uma
japonesa que, embora tenha feito apenas os anos iniciais, gostava de ler as revistas
de fotonovelas, me vi desde muito cedo envolta em meio às personagens de
ficção.
Fui uma criança um pouco solitária,
mas feliz porque tive a oportunidade de correr no campo, subir em árvores,
buscar laranja no pomar, tomar banho de cachoeira, brincar de amarelinha, chupar
mangas, amoras e seriguelas no pé, jogar queimada, enfim, de vivenciar a
infância com o que ela tem de banquete para ser degustado. Amava brincar com as
cigarras e entre os vaga-lumes, pois morei por muito tempo na zona rural. Sou a
filha mais nova de três, com diferença de nove anos de idade da minha irmã e
dez anos do meu irmão; minha irmã se casou com dezesseis anos e meu irmão saiu
de casa para trabalhar, ainda muito novo. Esse fator me aproximou ainda mais
dos livros, pois era uma forma de me ver acompanhada. Quando adolescente, tive
a oportunidade de ler muito romance, como: Sabrina
e Julia. A solidão nos ajuda a
observar com maior amorosidade a natureza e as belezas contidas no cosmo. Por
muitas vezes, vi inúmeras constelações nas flores de um pé de flamboyant que
havia no quintal da casa, lembro-me como se fosse hoje do banco de madeira e da
rede de balanço, também, vermelha pendurada naquela árvore.
Os fragmentos da minha vida são
importantes para fundamentar a afirmativa que o esboço de grande parte dos
poemas que compõem a obra já estava guardado há algum tempo no meu imaginário,
mas tomou formato escrito apenas no ano de 2015, após a aprovação no curso de
doutoramento em estudos literários, em Tangará da Serra. A construção de uma
casa se assemelha à produção de um livro, pois desde o alicerce ao acabamento
final é preciso dispensar atenção e cuidado. Embora, às vezes, tenhamos a
sensação de que tudo tenha surgido repentinamente, quando paramos para refletir
o processo, percebemos que os tijolos foram construídos em nós desde sempre.
Com isto, ressalto que quando me perguntam sobre o processo criativo, digo:
aconteceu naturalmente! Porém, quando paro para uma ponderação mais profunda,
vejo que sim e não, é um processo natural; mas resultado de uma maturação
realizada dentro de mim, desde sempre.
O processo criativo de uma obra
poética, na minha percepção torpe, nasce no corpo feito hera, rumina em nós até
tomar proporções insustentáveis porque afeta nossos desejos e segredos
recônditos, nos convocam a andarilhar pelo nosso mundo, também, na companhia de
nossos avessos, ou seja, acionam o nosso lado dúbio, interno e externo. Não
penso que se trata apenas de um desenvolvimento da mente e/ou da imaginação,
mas, sobretudo, de um envolvimento, de uma constituição ímpar do ser no mundo.
Eu cato aqui e acolá os badulaques que me constituem e, de certo modo, me
construo com essas engrenagens. São elas que movimentam o meu mundo e, por
isso, que tudo que sou, não pode ser igual, é singular; aciona uma essência que
é só minha, que só pode correr, desse jeito, no meu corpo; mas pelas nuances do
meu ser dialoga com o outro porque também sou constituída pelos outros e/outras
coisas que partilham comigo do mundo.
Os textos nunca estão bons a ponto de
serem publicados, mas se trata de uma análise que aos poucos cai por terra,
porque a escrita, também, passa por um processo de amadurecimento, necessita
brotar em algum momento, para se inaugurar. Quando falo em poesia, proponho de
um jeito simples todo meu dialogar com o mundo e com as pessoas, de modo a
formar uma constelação de vozes que reverberam em nós e quem sabe anunciam outra
sociedade. Acho lindíssimas as diferentes formas com as quais as mesmas
palavras cantam/escorrem em cada corpo.
Observei que a maioria das pessoas que adentra aos cursos de pós-graduação nas universidades fica muito solitária e tende a ter problemas emocionais devido à profunda carga de leitura teórica e produção de textos científicos. Assim, pensei que necessitava criar uma válvula de escape porque a maior promessa é direcionar a minha vida por um campo onde eu possa viver com responsabilidade e comprometimento todas as minhas dores e alegrias; pensando nisso criei um grupo de WhatsApp com algumas amigas, denominado Clube do Café e, posteriormente criamos o Facebook Aromas de Mulher com esse nome para nos encontrarmos, o objetivo era sair do espaço da academia para compartilhar outras coisas que fazem parte do cotidiano da mulher. Estes grupos ainda estão em vigor e contribuem significativamente para tornar a minha vida um pouco mais leve. Para além desses canais, destaco ainda que mantenho a página no Facebook Asas do Inaudível, criada por um leitor/amigo, onde publico outras produções autorais e recebo alguns feedbacks de leitores(as).
A cidade onde moro, Cáceres/Mato
Grosso, fica a aproximadamente 220 km de distância de Tangará da serra, também
no MT, onde faria o doutoramento e na época grande parte da estrada não era
pavimentada. Então, praticamente uma vez por mês, ficava uma semana em Tangará
da Serra e, como as disciplinas do curso eram ministradas durante o dia, à
noite aproveitava para ler textos poéticos e escrever com liberdade. A arte
sempre esteve muito presente nas minhas ações, pois ela é quem me ajuda a
observar as flores existentes no caminho, assim após a defesa da tese de
doutoramento organizei na minha cidade um evento com a presença da poeta
Luciene Carvalho. Nesse encontro, ela teve acessos a alguns dos meus rabiscos e
me incentivou à publicação, minha primeira reação foi categórica, disse não;
mas numa bela manhã de segunda-feira, recebi um telefonema da autora dizendo
que o prefácio do livro estava pronto e começou a lê-lo. Minha reação foi
chorar compulsivamente porque era um olhar repleto de sensibilidade e de
carinho que não tinha como não ser encorajada à publicação. Encaminhei o esboço
para a editora Carlini e Caniato, que
fica localizada na capital do nosso estado – Mato Grosso - e essa se encarregou
pela produção da capa e revisão geral. Assim, surgiu à obra impressa.
O livro impresso ficou pronto no início do período pandêmico – a terrível onda do vírus COVID-19 – tirando a oportunidade do lançamento presencial. Confesso! Fiquei bastante triste, pois estava eufórica para partilhar com minhas amigas esse momento de alegria; mas logo pensei em uma alternativa, lancei o livro em formato on-line pelo canal Asas do inaudível em luzes de vaga-lume no youtube, creio que se trata do primeiro livro, em nosso estado, lançado virtualmente, ainda na aprendência para vencer a timidez em aparecer na tela do computador; mas foi uma experiência enriquecedora, para não dizer engraçada, inovadora e, dado o momento, necessária. Segue abaixo, dois poemas que compõem o livro:
O silêncio
Silêncio nunca é ausência.
É plenitude, criação fetal.
Às vezes, meigo,
embala o sono,
perfuma o sonho.
Outras, selvagem,
chega galopante,
tortura a mente,
espreme o cérebro,
arrasta-nos
do/para
o cativeiro,
companheiro de redenção.
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Manifesto
Onde estão as mulheres escritas
pela goiana Cora Coralina,
pela mineira Conceição Evaristo,
pela ucraniana-brasileira Clarice Lispector
e tantas outras que
escrevem e escreveram
com o sangue que jorrou de si?
Apagadas,
invisíveis,
sem valor...
Gritos sufocados no universo de papel,
mulher-esposa,
mulher-amante,
mulher-mãe,
mulher-sonhadora,
mulher-profissional,
mulher-sedutora,
mulher-mulheres.
Vivendo todas em uma.
Este ser múltiplo, original.
Avante! Abra as portas e as janelas,
respire o ar que, também, sai de suas entranhas.
Únicas,
desiguais.
Hoje, ao olhar o livro Asas do inaudível em luzes de vaga-lume (2019), com a identidade de pesquisadora em estudos literários, analiso que muitas questões poderiam ser repensadas se consideradas as convenções linguísticas e/ou a formatação estrutural dos textos. Mas, com o olho adoecido de poeta, sinto que não. Era exatamente assim que este livro saiu de dentro de mim e, com um vocabulário tão restrito, mas tão meu, ganhou asas com palavras que se metamorfosearam em poemas. Já com a visão heterogênea de professora, creio serem pássaros que voam livres à procura de porto e/ou de leitores sensíveis, capazes de olhar pela janela ao encontro dos mistérios do mundo. Como mulher, desejo que cada leitora sinta-se instigada a criar outros pássaros que se juntam em revoada ao meu e, com asas em movimento, redesenham na imensidão desse céu azul, a luz e a harmonia do voo coletivo, sempre a vislumbrar um horizonte possível. Atitude que poderá livrá-la das diversas formas de exílio existentes na alma feminina.
NASCIMENTO, Elizabete. Asas do inaudível em luzes de vaga-lume. Cuiabá: Carlini e Caniato editorial, 2019.
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