quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - ENCERRAMENTOS DE TEMPO... Por Rosangela Marquezi



CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA
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 ENCERRAMENTOS DE TEMPO


POR ROSANGELA MARQUEZI






Foto: arquivo pessoal da autora / 2022.
Presa em um calendário que não condiz com meu tempo de ser. Eis a sensação que tenho em períodos que antecedem o fim e o nascer de tempos estipulados em folhinhas de almanaque. Em muitos momentos da vida, tudo que eu queria era não ver o tempo passar, nessa marcação arbitrária que inventaram sem nos consultar. Sinto, às vezes, que inícios e finais de tempo são apenas imposições de um sujeito ou de vários sujeitos que, não satisfeitos em simplesmente deixarem a vida fluir, resolveram inventar um calendário e nele nos prenderam.

O calendário não entende (e não aceita) que tem momentos na vida que tudo o que queremos ser é a Carolina, do Chico Buarque, aquela moça que não viu o tempo passar na janela, mesmo que, lá fora, uma rosa tenha morrido, uma festa tenha acabado, um barco tenha partido... Simples assim, como se pudéssemos cruzar o espaço-tempo ao ritmo da canção de Maria Bethânia e Zeca Pagodinho: “Deixa a vida me levar / Vida leva eu / Deixa a vida me levar / Vida leva eu”;

(Mas não! A vida urge urgente e cortante, cheia de rimas engraçadinhas para nos desviar a atenção do incerto mundo aberto!)

E corremos. Como formigas que perderam a direção do formigueiro. E voamos. Como mariposas seduzidas pela brilhante luz que as distraem do seu destino. E isso tudo para que, no dia primeiro de janeiro, novamente nos encontremos na linha de partida da corrida da vida.

Felizes os que conseguem cruzar a linha do tempo e não se quedam ao fim anual da jornada. Felizes os que entendem que calendários são arbitrários e vivem o tempo perfeito do momento presente. Para esses, há esperança. Para os desencantados, não sei...

O que sei é que esta minha rabugice logo passa, pois sei que nada melhor do que um tempo – sim, tempo – atrás do outro, com uma folguinha para respirar, para que tudo volte ao seu (in)devido lugar. E porque sei disso é que lhes digo que esta reflexão não é sobre desesperança, mas esperança-certeza de que, como tão bem ilustrou Heráclito de Éfeso, se ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, seremos novas mulheres e novos homens a cada segundo desta vida!!

E isso é transcender a existência! É também acreditar que todos as estações se fazem e refazem dentro de cada um de nós, passageiros efêmeros desse breve espaço-tempo de um bater de asas de uma borboleta que é a nossa história.

Seja feliz!



DICAS DA SUSTÂNCIA


1. Ouça Carolina, de Chico Buarque, e entenda que nem sempre precisamos estar atentos ao passar do tempo! A canção ficou em terceiro lugar no II Festival Internacional da Canção Popular (FIC), em 1967. Ouça AQUI!

2. Leia Como parar o tempo, do escritor inglês Matt Haig. É uma leitura bem instigante sobre a jornada de um homem, Tom Hazard, que, por causa de uma alteração genética, não envelhece da mesma forma que os seres humanos normais. Dessa forma, ele perpassa séculos da nossa história... O livro discute questões como imortalidade e como tudo vai se repetindo neste mundo... Paixões, medos, angústias, guerras. O livro foi publicado aqui no Brasil em 2017, pela Harper Collins. 

Eu fui pessoas que odiei e pessoas que admirei. Fui divertido e chato e feliz e infinitamente triste. Já estive do lado certo e do errado da história. 

3. Ouça a música Sobre o tempo, do Pato Fu, lançada no álbum Foi gol de quem?, de 1995. É uma música que, mesmo não tendo uma letra que nos faça profundamente refletir, nos faz dançar ao sabor do tempo... Uma delícia. Ouça AQUI!

4. Veja o quadro Persistência da memória (1931), do pintor surrealista Salvador Dalí. Se for possível, visite o Museu de Arte Moderna da Nova York (MoMA) e veja-a ao vivo! Se não puder realizar este passeio, a conheça a partir do site do MoMA (https://www.moma.org/collection/works/79018! Com seus tradicionais relógios “derretendo”, a pintura de Dalí traz um cenário onírico, que faz um diálogo, talvez, com a Teoria da Relatividade, de Einstein, além de trazer a ideia de que o tempo passa sem que possamos controlá-lo. É uma pintura que merece ser vista e pensada!

Foto: reprodução da Internet


5. Deguste o poema Seiscentos e sessenta e seis, do poeta alegretense Mario Quintana, publicado originalmente no livro Esconderijos do tempo (1980), no qual o autor traz a ciência da inexorabilidade do tempo...

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…
Quando se vê, já é 6ª feira…
Quando se vê, passaram 60 anos!
Agora, é tarde demais para ser reprovado…
E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,
eu nem olhava o relógio
seguia sempre em frente…

E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas.

6. Leia Em busca do tempo perdido (1913-1927), um clássico da literatura mundial, escrita por Marcel Proust. São sete livros nos quais o autor, a partir de um momento em que degusta uma Madeleine, mergulhada no chá, começa a lembrar da infância e vai nos trazendo uma gama imensa de personagens, que acabam se encadeando em diferentes histórias na França da Belle Époque. No último volume, O tempo redescoberto, o narrador por fim percebe que só poderá trazer o passado de volta a partir de sua escrita, entendendo então sua vocação: escrever um grande romance. Uma das traduções aqui para o Brasil foi feita por diferentes tradutores, entre eles os famosos poetas Mario Quintana (volume 1 a 4); Manuel Bandeira (volume 5), junto com Lourdes Sousa de Alencar; e Carlos Drummond de Andrade (volume 6); O volume 7 foi traduzido pela importante crítica literária Lúcia Miguel Pereira.

7. Corra a uma boa panificadora e coma uma deliciosa Madeleine, famoso biscoito em forma de concha, originário da região de Lorraine, na França.

Foto: reprodução da Internet


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Rosangela Marquezi
[foto arquivo pessoal da autora]
Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação, mas aprendente de novos olhares por opção... Nas horas vagas, escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal.

Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017).

14 comentários:

  1. FERNANDA PEREIRA MEDEIROS16 de dezembro de 2022 às 21:04

    Perfeita, sem defeitos. Professora Rô, suas palavras e dicas são um abraço demorado no coração de nós ansiosos com esse correr do tempo que nos é imputado nesses começos e fins arbitrários! Obrigada!

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  2. Amiga..difícil decidir o que é melhor...tua cronica ou as dicas ao final dela..vc é e escreve maravilhosamente perfeita .

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  3. Ro, que delícia de crônica e quantas dicas maravilhosas! Amei!

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  4. O que sei: Sou sua fã! História e Literatura hão de registrar seus escritos!
    Mais, não digo: desnecessário!

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  5. Amiga, muito orgulhosa de suas poesias!

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  6. Belíssima crônica! Uma receita perfeita para as festanças de um tempo que precisa de calorias!

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