quinta-feira, 12 de junho de 2025

TORNAR-SE ESCRITORA, POR MYRIAM SCOTTI

AVE, CRÔNICA|07

T O R N A R - S E   E S C R I T O R A

Por Myriam Scotti

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Vez em quando, perguntam como me tornei escritora. Na verdade, penso que desde a infância, quando escrevia poeminhas e diários para dissipar minhas angústias, apenas demorei a me sentir pronta. No livro “Só garotos”, a artista Patti Smith escreve sobre quando ainda era apenas uma menina: “lembro que me senti confinada diante da ideia de que nascemos em um mundo onde tudo já foi mapeado pelos outros antes.” Assim como ela, eu mesma costumava questionar as razões de certos comportamentos serem os únicos aceitáveis, se quisesse, no futuro, ser uma mulher bem-sucedida-respeitada. Feito produto em série, os objetivos: estudar, casar, ter filhos e envelhecer, representava a curva da vida ideal, como se todas as mulheres desejassem as mesmas coisas para si.

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Os primeiros anos de casada e a gravidez do primeiro filho me arremessaram para a realidade crua de ser mulher, de ser a responsável pela casa, por gerar a vida, de ser quem renuncia a si mesma em prol do pequeno ser desconhecido, de ser quem ama o marido que se faz sempre ausente, como escreveu Roland Barthes em seus fragmentos, exatamente o que de mim restou depois de me tornar mãe e experimentar cores intensas, que até então nunca desconfiara existir. A solidão-companhia, a inveja de assistir ao parceiro seguir em frente, sem que tivesse sido afetado pela chegada do filho, o descompromisso, o individualismo, ele próprio: a reprodução de tudo o que prometera não ser. “Volto já” era a frase mais escutada, enquanto eu tentava me recompor.


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Então, a redescoberta da literatura, aconteceu por causa do vazio, bem como a escrita da prosa e da poesia. Por não encontrar à minha volta algo ou alguém para me identificar, para me compreender, busquei nos livros as respostas para todas as questões que me rondavam, as quais não permitiam que eu seguisse em frente. As histórias soavam mais verdadeiras que a realidade à minha volta, onde as mulheres pareciam estar felizes-conformadas com suas escolhas. Mas elas não me representavam nem me acolhiam. Não à toa, as queixas das personagens se confundiam com as minhas e, assim, entreguei-me completamente à literatura, hoje o meu farol e filosofia de vida. 


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Arquivo da Autora
MYRIAM SCOTTI nasceu em Manaus, é formada em Direito pela Universidade Federal do Amazonas – UFAM; é mestre em literatura e crítica literária também pela PUC-SP; com curso de extensão em práticas de leitura e formação do leitor, pela PUC-SP. A partir de 2014, baseada nas experiências com seu primogênito Daniel, estreou como escritora de histórias infantis: O menino que só sabia dizer não (publicação independente); O menino que só queria comer tomate e Quando meu irmão foi embora? (editora Chiado); além do e-book “O menino que não queria dormir sozinho”. Em 2018, estreou na poesia com o título A língua que enlaça também fere (Editora Patuá). Em 2020, lançou um segundo livro de poesia sob o título Mulheres chovem (Editora Penalux), ano em que também venceu o prêmio literário da cidade de Manaus com o romance regional Terra Úmida, publicado em 2021 pela Editora Penalux. Em 2021 lançou o primeiro romance juvenil Quem chamarei de lar? (Editora Pantograf), o qual foi admitido pelo PNLD 2021 e foi escolhido como paradidático de várias escolas do Brasil, além de ter sido selecionado no edital “Minha biblioteca” de São Paulo 2022, onde constam mais de onze mil exemplares espalhados pelas bibliotecas da capital. Em 2024, lançou o livro de crônicas Tudo um pouco mal (Editora Patuá) durante a Festa Literária de Paraty (FLIP), o título é semifinalista do prêmio nacional Sabiá de crônicas. Também em 2024 foi convidada para os Festivais Literários de Araxá e Paracatu, ambas comandadas pelo produtor cultural Afonso Borges, onde explanou sobre literatura produzida por mulheres no Amazonas. Há três anos é curadora do Festival Literário do centro de Manaus (FLIC), promovido pelo produtor cultural João Fernandes, CEO do Centro Cultural Casarão de Ideias.

CARTA A QUEM DESEJA MEU SILÊNCIO

Por Cíntia Colares (Flor de Lótus)


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Na primeira vez que me violentaram, eu era uma menina.

E calei pelo medo e vergonha.

Na segunda vez que sofri violência, passei anos sofrendo um duro assédio moral e sexual num ambiente que deveria ser seguro. Apesar de ter sido aprovada num concurso para funcionária pública federal, morri um pouco a cada dia enquanto tentava sobreviver para garantir o sustento do meu filho.

Não calei, mas paguei caro por ousar denunciar velhas práticas e por não ceder ao assédio. Na terceira vez que sofri violência foi onde buscava construir outro mundo possível. Quando busquei voz e poder de decisão como os demais, ouvi que deveria me pôr no meu lugar.

O meu lugar e o de todos nós: pessoas negras, mulheres, indígenas é onde a gente quiser e reivindicar. É onde a vida acontece e está sendo decidida.

Nada mais sobre nós sem nós.

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Não me calo, não silencio, não dou manutenção ao que não quero que siga acontecendo. Meus gritos já denunciaram violência sexual, política, verbal, psicológica e até ameaças de agressão física que sofri e vão ficar na memória daquele contraditório espaço dito de luta. Ainda temos muito que lutar por equidade de gênero, raça e diversidade.

De minha parte, muitos gritos mais ainda serão ouvidos até que me escutem e me vejam estar presente nos espaços e nas decisões.

E nunca mais calarei.

Porque minhas dores gritam em mim até no silêncio. No olhar que fere, na boca que nos enxota.

Não estarei olhando do lado de fora e não estarei em silêncio do lado de dentro, fazendo apenas figuração para aliviar suas consciências.”

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Arquivo da Autora


Cíntia Colares (Flor de Lótus) é uma mulher preta cis, jornalista, poeta e coautora em coletâneas, antologias, revistas e sites de poesia. É ativista no antirracismo e mãe solo de um adolescente negro, morando na periferia de Porto Alegre/RS.


Obrigada por ler até aqui  “Sou Flor de Lótus🪷

segunda-feira, 9 de junho de 2025

ÀS VEZES AGENDO MEU CHORO

Por Cíntia Colares 


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Esses dias eu estava ouvindo aquela música que a letra diz: “Às vezes eu quero chorar, mas o dia amanhece e eu esqueço…”

Lembrei o quanto essa letra sempre me toca. 

Me veio a lembrança de quantas vezes quis chorar, mas…

Agora não…

estou na rua…

Agora não…

…não vou chorar na frente dessa pessoa…

(ainda que a pessoa esteja me dando todos os motivos para chorar)

Agora não…

deixa não ter ninguém por perto… 

Agora não...

não adianta chorar escondido…vai voltar com os olhos vermelhos…vão perceber…não fica bem…

Agora não…

Preciso buscar meu filho, preciso transmitir alegria quando nos reencontrarmos depois de passarmos o dia inteiro longe…

Agora não…

o ônibus tá lotado…alguém vai ver…

Agora não…

deixa chegar em casa…

Agora não…

deixa atender meu filho primeiro…

Agora não….

Espera meu filho não estar por perto…

Agora não…

Tomara que você durma logo, filho…

Agora não…

preciso tanto chorar, mas na tua frente não….

Agora não…

eu precisava tanto chorar hoje…está entalado…

Agora não…

Um novo dia vai começar. 

Preciso me levantar e não dá mais tempo pra chorar.

Os dias correm assim.

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Às vezes agendo meu choro e não compareço ao meu próprio evento, porque sempre tem algo ou muitos "algos" ao meu redor que não me permitem olhar para mim ou me sentir. 

Porque antes de pensar em mim, eu preciso dar conta, resolver, prevenir, ensinar, acolher, tratar, corrigir, aguentar, quebrar as molduras que insistem em tentar me enquadrar e preciso, principalmente, manter viva a crença de que valerá a pena lutar por mudanças, que é para eu não andar por aí morta em vida.

No meio desse turbilhão cotidiano, até eu conseguir algum tempo pra mim, o choro já empedrou por dentro e me endureceu também por fora.

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Sou Cíntia Colares, sou Flor de Lótus 🪷

segunda-feira, 2 de junho de 2025

"ESCAPA PELOS DEDOS COMO AREIA", POR MEIRE MARION

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PALAVRA FRACA

Por  Meire Marion

Coração se divide em dois

Duas partes que eram uma

Através de uma carta gelada e sem vida

Tudo o que compartilhamos foi desfeito.

 

A tristeza me atinge intensamente

Duro como uma pedra pesada

Amor não é uma palavra forte o suficiente.

Agora, quem vai me dar um ombro?

 

Tentando compreender onde tudo deu errado

Escapa pelos meus dedos como areia

Enquanto as chamas em meu coração queimam, queimam, queimam

O rádio toca uma música da nossa banda favorita

 

Lágrimas encharcaram meu travesseiro enquanto tentei dormir

Dormi profundamente no abismo tão profundo.

Um lembrete de como ações são mais fortes que palavras.


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Arquivo da autora


Meire Marion é professora de inglês, língua e literatura, escritora e poeta. É diretora da UBE (União Brasileira de Escritores), responsável pelo Prêmio Cláudio Willer de poesia. Têm sete livros para crianças publicados pela Editora Scortecci. É colunista da Revista Voo Livre de literatura. Também participa de diversas antologias com poemas e contos.

sexta-feira, 23 de maio de 2025

ENQUANTO AS HORTÊNSIAS FLORESCEM, HELIENE ROSA

A ROSA E O JARDIM

Por Marta Cortezão[1]

 

O poema se faz sozinho

Na leveza do sentimento

[Poesia do mo(vi)mento, Heliene Rosa]

 

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Os versos, semeados pelas mãos que lavram sentimentos no solo branco e solitário do papel, brotam fertilizados pela beleza artística da palavra ritmada que perfuma com poesia e dá viço aos estados de essência cultivados no jardim poético de Heliene Rosa. É a leveza harmônica, presente na essência do Belo, que perfuma cada poema em sua unicidade e sensibilidade, pois é essa Beleza o pano de fundo deste jardim de Rosa, assim como da palavra bailarina que, sempre em movimento, molda a forma de cada verso-flor para manifestar-se ao mundo exterior sensível, bem diante dos olhos passantes do(a) leitor(a) que param a contemplar, extasiados, diverso jardim.

Esta voz do Feminino Rosa, que levanta seu canto, neste livro-jardim Enquanto as hortênsias florescem, é a voz que embala a poesia próspera e pura que vem do chão! É a voz clareira da alma que sonha flores, “em miríades de cores” e distribui esperança pelo caótico mundo em que vivemos, ainda que as palavras sejam escassas e os caminhos tortuosos: “Enquanto as hortênsias florescem / No jardim / palavras me traem / palavras me faltam / me perco de mim (...) Enquanto as hortênsias florescem / Em miríades de cores / Sobre folhas e haste / Enfeitando o jardim”.


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É a voz da ancestralidade que se consolida na força da intelectualidade de Rosa, que, primeiramente, descolonizou seu jardim, para só então partilhar as sementes férteis pelo mundo. Como aperitivo, desfrutemos do fragmento do poema Dindinha, no qual escutamos a voz sábia e selvagem que muito ensina: “com ela aprendi: que na vida, / Nem tudo é do jeito que a gente quer / Mas ninguém deve duvidar / da força e do poder / De uma mulher!” Rosa, imersa na força de sua africanidade, solta a voz para dizer das dores que atravessam suas vivências, mas ela escreve para consolidar sua existência, que também é a nossa. O poema Servidão dialoga com as muitas histórias de vida tecidas nestes versos: “Em algum canto, / Sonhos de amor roubados/ E soluços, silenciados. (...) E a dança dos séculos, / Sofistica a crueldade; / Exploração naturalizada...(...) / Como arrancar do poema / Esse refrão?”. As reviravoltas dos versos de Rosa, em meio à polifonia de vozes femininas, se encarregam de trazer a resposta, que vêm com o vento da coletividade, onde o sopro é de verde esperança e de otimismo, porque somos mulheres de luta e de sonhos: “lutamos juntas agora, / E não podemos retroceder! / Pois já dizia o poeta, / Quem sabe faz a hora / Não espera acontecer!” E assim meus olhos de leitora, ao contemplarem tão belo jardim, vão se emocionando neste amor pulsante que me abraça, poeticamente, como no poema Labirinto, onde “frenética dança / Aquece-me a esperança / E reinvento o mapa / Desenho novos caminhos / Para o meu labirinto particular.”   

Arquivo da autora
Caro(a) leitor(a), é neste jardim florido, cultivado em Terra-Mãe, “Nossa Nave-Terra, nosso lar, / Corpo coletivo ancestral”, onde Árvores, “em suas entranhas / Rios internos deságuam / nas raízes que sustentam o mundo”, que convido você a adentrar. Entre sem medo, aqui as palavras nos lavam a alma em rios de Feminiscências, onde “Universos se fundem / Centelham faíscas divinas / Das entranhas da Terra”. Aqui há Pássaros que “habitam o céu / Tingem-no de plumagens coloridas / E rasgam o azul/ Intrépido voo” com “Seu canto flecha / Endereçado ao infinito”. Aqui, no Jardim da Poeta Heliene Rosa, há uma aventura fantástica de dança ritmada de doce e engajada poesia que se apresenta ao mundo! Entre em contato com a autora, adquira o seu exemplar e boa leitura!

Leitura de poemas de Enquanto as hortênsias florescem, por Marta Cortezão:




[1] Para contratar resenhas literárias entre em contato via e-mail martabartez@gmail.com

ROSA, Heliene. Enquanto as hortências florescem. Uberlândia (MG): Editora Subsolo, 2023.

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Arquivo da autora
Heliene Rosa, natural de Patos de Minas, Minas Gerais, é uma escritora, professora e pesquisadora dedicada às poéticas femininas. Mestre em Linguística e doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Heliene é uma voz ativa na militância pelas causas das mulheres e da negritude. Articulista no Blog Feminário Conexões e integrante de diversos coletivos femininos, fundou, em 2016, o GELIPLIT (Grupo de Estudos em Língua Portuguesa e Literaturas), com o propósito de promover a formação continuada de professores de Língua Portuguesa e Literatura.

Com uma carreira marcada pela coordenação de projetos literários e pedagógicos, Heliene foi premiada no Oitavo Concurso Nacional pela Igualdade de Gêneros com uma sequência didática voltada à escrita, envolvendo estudantes do Ensino Básico. É coautora em diversas coletâneas nacionais e internacionais e organizadora de antologias literárias e acadêmicas. Em sua produção autoral, destaca-se com os livros Enquanto as hortênsias florescem (2023) e Literatura é território: poéticas femininas indígenas em movimento (2024).

domingo, 18 de maio de 2025

POESILHA, DOS PEQUENOS TRATADOS DO COTIDIANO, DE DALVA LOBO

POESILHA: UMA VIAGEM POÉTICA DE REDENÇÃO

Por Marta Cortezão[1]



[1] Para contratar resenhas literárias entre em contato via e-mail martabartez@gmail.com

 

quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és

(José Saramago, O Conto da Ilha Desconhecida)


Capa livro Poesilha / Arquivo da autora
A leitura de Poesilha: dos pequenos tratados do cotidiano, de Dalva Lobo, conectou-me com a “ilha desconhecida” de Saramago. Na citação acima, temos um diálogo do homem que solicita um barco ao rei e a mulher da limpeza que toma a decisão de seguir seu destino, em busca da ilha desconhecida. A mulher que limpava o palácio, abria as portas, fez a sua escolha:

Pensou ela que já bastava de uma vida a limpar e a lavar palácios, que tinha chegado a hora de mudar de ofício, que lavar a limpar barcos é que era a sua vocação verdadeira, no mar, ao menos, a água nunca lhe faltaria. O homem nem sonha que, não tendo ainda sequer começado a recrutar os tripulantes, já leva atrás de si a futura encarregada das baldeações e outros asseios, também é deste modo que o destino costuma comportar-se conosco, já está mesmo atrás de nós, já estendeu a mão para tocar-nos o ombro, e nós ainda vamos a murmurar (...)

Essa busca necessária e humana pela sabedoria que está nas pequenas coisas da vida, no cotidiano, é o que de fato nos faz abrir os olhos para o que a vida nos ensina. Para Sócrates, “só é útil o conhecimento que nos torna melhores”. Eis a essência da busca pela “ilha desconhecida” que também verseja na poética de Dalva Lobo.

No prefácio, Vanderlei Barbosa, afirma que a literatura de Dalva Lobo “aguça os cinco sentidos: amplia a visão, dilata as pupilas, provoca aromas, oferece sabores, toca corpo-alma” (p.11). É um tratado de celebração da vida onde se pode escutar a melodia de fundo que inspira a alma a seguir a viagem, porque “é necessário sair da ilha para ver a ilha, que não nos vemos se não nos saímos de nós, se não saímos de nós próprios”. Assim que o poema-convite convoca:

ESTÁ ABERTA A SESSÃO! (p.15)

Que entrem os loucos, os poetas e os errantes.

E se algum bêbado quiser, que entrem também e se embriague,              

               de vinho, de poesia e de tudo o que for bom para

               a alma.

E os “cansados do ócio amargo” de Mallarmé,

                sentem-se à mesa com Rimbaud, Pessoa, Rosa,

                Leminski e outros.

A quem tem sede, sejam servidas taças de vinho,

A quem tem fome, uma lauta refeição ao gosto poético,

Neste banquete há lugar para todos,

Desde que loucos, poetas e errantes, 

                Porque neles reside a sabedoria de quem ama a vida,

                a beleza e a virtude!

                                                  Um brinde!

Contracapa Poesilha
Arquivo da autora
Há lugar para todos, mas é preciso estar faminto e sedento pelo novo, pelo diferente, pela pluralidade e, especialmente, desvencilhar-se das amarras do egoísmo para ter olhos fidedignos e enxergar, com coerência e ética, “a beleza e a virtude”. A poética de Poesilha é uma viagem de redenção. Há uma Ítaca perdida dentro de cada um de nós. Enfrentamos diariamente toda espécie de obstáculos para encontrar nossa Ítaca, somos o fiel arquétipo do errante Ulisses nos enfrentando aos próprios monstros marinhos, criados pelo próprio medo que nos impede de enxergar o desconhecido. E quantas vezes nos perdemos da rota? E quantas vezes a ilusão da falsa felicidade nos desvia do que, de fato, nos é essencial para a vida? Por que desviamos o olhar dos olhos que refletem a nossa própria existência?

Poesilha (p.19)

Na poesilha encontrei um espasmo de luz e uma conta feita

das pérolas dos olhares sem fim.

Foi suficiente para desfilar na passarela da vida.

Um brinde à vida, ao amor, à amizade, aos desafios.

Um eterno brinde ao brilho que reluz de cada olhar.

2ª orelha de Poesilha
Arquivo da autora
Tudo o que precisamos para enfrentar os obstáculos da viagem está dentro de cada um de nós. E não adianta fugir às tempestades, aos maremotos, se são eles que ensinam como lidar com a noite que “chega para todos”, mas “a tela, / plácida, espera o toque que virá / quando a noite findar // Serão os dedos, os pincéis. / E a paleta de cores, / a vida mesma”.  E há sempre uma aurora trazendo a celebração de um novo dia! Há que aceitar as fraquezas e vestir-se com a força que vem delas, pois a “vastidão que nos cobre como um deserto, / faz-nos inocentes de nossos crimes não cometidos (...) // Fugimos, então às nossas regras, tentando não perceber / que nos tornamos cúmplices de nós mesmas no momento em / que nos deixamos envolver pela doce sensação da liberdade que, / num átimo de segundo, / transforma-se em vastidão!”.

Desistir da viagem nunca será a solução. A solução é atender o chamado de olhar para dentro de si e seguir em busca da “ilha desconhecida”, porque “entre mim, meu corpo e a Via Láctea / [todo caminho é possível]”. Faça chuva ou faça sol, “entre as pedras existem vários caminhos / e nós escolhemos, sempre”, porque viver é tomar decisões, é sair do palácio, como a “mulher da limpeza”, que escolheu o seu barco para ir em busca da ilha desconhecida e não titubeou em revelar-se ao desconhecido:

A mulher da limpeza não se conteve, Para mim não quero outro, Quem és tu, perguntou o homem, Não te lembras de mim, Não tenho ideia, Sou a mulher da limpeza, Qual limpeza, A do palácio do rei, A que abria a porta das petições, Não havia outra, E por que não estás tu no palácio do rei a limpar e a abrir portas, Porque as portas que eu realmente queria já foram abertas e porque de hoje em diante só limparei barcos, Então estás decidida a ir comigo procurar a ilha desconhecida, Saí do palácio pela porta das decisões,

Dalva Lobo
Arquivo da autora
A mudança é um processo invasivo, mas necessário para nossa própria evolução. Entender nossos processos sem ter todas as respostas é o mais normal do mundo, porque ninguém tem todas as respostas: “Não responda, não tenha pressa, / O tempo é um caos e o caos é o silêncio que grita sufocado” dentro de nós para nos fazer seguir adiante, mesmo com o medo por fiel companheiro. A poeta convoca os acomodados à ação:

Os acomodados que se mudem (p.36)

 

Mudem de alma,

Mudem de pele.

 

Mudem de casa,

Mudem de planeta.

 

Apenas mudem.

 

E se não for possível mudar

de alma

de pele

de casa

de planeta

Mudem apenas o desejo de mudar,

Sabendo do risco perene das mudanças sem fim a que estamos,

graciosamente, condenados.

Arquivo da autora
E com o passar do tempo, aquelas mudanças tão temidas se tornam nossos melhores acertos, são elas que florescem no desértico barco que cruza o infinito em busca da ilha desconhecida, a que habita em nós, os próprios sonhos, os próprios desejos, o próprio humano ser em processo de conhecimento contínuo. Somos o barco vagando no infinito, enfrentando as tempestades, mas também disfrutando da paleta de cores da vida, porque durante o percurso da viagem, o próprio barco se fez ilha conhecida, floresceu, deu frutos, se fez terra vistosa e à vista dos que nos acompanham na viagem, como no conto da “Ilha Desconhecida”, onde a caravela transformou-se numa “floresta que navega e se balanceia sobre as ondas, uma floresta onde, sem saber-se como, começaram a cantar pássaros, deviam estar escondidos por aí e de repente decidiram sair à luz, talvez porque a seara já esteja madura e é preciso ceifá-la.”. Tudo o que precisamos está dentro de nós, pois somos uma imensidão divina, ainda quando tudo for deserto, haverá o cacto e haverá a beleza da flor para colorir a imensidão nos tons de rosa:

Despedida de Poesilha (p.50)

Às vezes povoamos o deserto

Outras vezes, ele nos povoa.

Não sei exatamente porque essa imagem está em minha mente

Suspeito que há um deserto sondando

                     a existência e imprimindo sua marca.

Mas o rastro não se apagará quando dançar ao sabor do

vento,

porque o vento também, meu amigo,

                    habita o deserto e passa por ele, assim

                    como a chuva e o sol.

Só tenho certeza de uma coisa:

O sol, a chuva e o vento que passam por este deserto

Têm a certeza secular de que marcas impressas,

                     ainda que estejam sob a força da

                     natureza, permanecem.

Por isso, não nos esquecemos jamais de quem amamos

Nenhuma distância é suficiente para apagá-la de nossa vida.

O tempo é testemunha,

Mais do que remédio, ele nos lapida a alma.

Poucas pessoas deixam marcas tão enraizadas.

                       Pouquíssimas deixam rastros indeléveis.

 A natureza que cumpre seu ciclo.

O rastro,

O raso,

O profundo.

Tudo é deserto agora,

Mas no deserto também floresce o cacto

E entre seus espinhos

                     a flor delicada colore a imensidão de rosa.

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Para adquirir o livro Poesilha basta entrar em contato com a autora através de suas redes sociais ou pelo email dalvalobo48@gmail.com 

LOBO, Dalva. Poesilha: dos pequenos tratados do cotidiano. Juiz de Fora (MG): Editora Siano, 2022.

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Arquivo da autora
Dalva Lobo, doutora em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM) e Pós-Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), tem poemas publicados na Coletânea Enluaradas II Uma Ciranda de Deusas; na Revista Literária "Travessias Literárias, no Facebook; no blog 'Feminário Conexões' e no 'Banzeiro Conexões'. Participou do canal N'outras Palavras (Youtube) com seus poemas e prosas poéticas e do I FLENLUA- Festival literário. Autora da obra "Catatau: dos labirintos da linguagem à criação de ambiências sonoras", é membro da Academia Lavrense de Letras (Lavras-MG). A paulistana, que reside atualmente em Lavras-MG, leciona na Universidade Federal de Lavras (UFLA) onde coordena o Grupo de Pesquisa Intersignos (Literatura, Linguagem, Tradução Intersemiótica e Formação Docente). É membro do GEP Teoria Crítica e Educação (UFSCar/UFLA), e sua pesquisa visa ao diálogo entre a literatura, as poéticas da linguagem e as performances de leitura. 


terça-feira, 13 de maio de 2025

PARA SE DIZER ANTIRRACISTA É PRECISO AGIR***, POR CÍNTIA COLARES

Por Cíntia Colares 

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Chega o mês de maio e então todos lembram de falar sobre questões raciais em função da data da falsa abolição. Depois vem novembro e aí sim o frenesi aumenta. Depois parece que a gente deixa de existir. Parece que as mudanças na sociedade racista em que vivemos deixam de ter urgência novamente. Então chega marco do outro ano já. Todo dia 8 de março recebemos muitas mensagens de feliz dia da Mulher. 

Quando explicamos que essas não são datas ou mês lúdicos e sim de luta e reflexões, ainda somos taxadas de 'desmancha prazeres': "custava sorrir e agradecer?" Nessa pergunta, faltou nos dizer: e silenciar... e manter tudo como está. Pois não silencio. Falo cotidianamente contra essas estruturas que tentam nos oprimir e manter os privilégios do patriarcado e da branquitude em dia.

De março a março são negadas oportunidades a mulheres negras porque ainda esperam que a gente ocupe apenas posições de subserviência. Em outras palavras, nos tratam como se não pudéssemos desempenhar funções intelectuais ou de liderança e tivéssemos um perfil engessado para somente servir.

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Esses dias li um comentário que me chamou atenção. O comentário dizia que falas sobre situações de racismo não traziam nenhuma surpresa nos dias de hoje. A pessoa contava que já havia decidido de uns tempos pra cá ser antirracista e que, inclusive, é preciso agir urgentemente. Fiquei pensando sobre. 

Sabe, relatos de situações de racismo me surpreendem. Mesmo eu sendo uma mulher negra, ou seja, vivenciando situações de racismo desde criança, ainda assim as falas de outras pessoas negras e a maneira como alguns autores descrevem a engrenagem de como o racismo e o pacto da branquitude acontecem no cotidiano me surpreendem.

Sabe porque me surpreendem? 

Porque fico me interrogando: como essas situações ainda se reproduzem?

Como não foi visto ainda que é preciso agir para combater situações tão desumanizantes? 

Como algumas pessoas passam a vida toda sem se dar conta de uma desigualdade tão gritante como se fosse normal nos verem majoritariamente em situações de subserviência no mercado de trabalho, por exemplo, uma situação que todos vivenciam e não tem como não ver a desigualdade de posições. 

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Será que uma vida inteira não se perguntaram o porquê disso? Ou quiseram acreditar que era normal porque era cômodo não pensar sobre seus privilégios e dá trabalho se mexer para agir contra esses absurdos? 

A nós, pessoas negras, eram negadas oportunidades e voz nos espaços de decisão, mas e as pessoas brancas que sempre tiveram acesso aos melhores estudos, livros, debates sobre a sociedade e ainda assim não pensaram sobre isso e não agiram contra uma vida inteira? 

A mim sempre espanta. Desde sempre não consigo ver a desumanização de alguém e ficar impávida. E assim criei meu filho para sempre pensar em que mundo vive, com quem convive em sociedade e como estão sendo tratadas as pessoas nessa sociedade. 

Ter esse olhar que humaniza já teria despertado ações antirracistas há décadas, séculos, mas há pessoas que passam a vida sem nos ver. Somos desumanizados desde que jogaram nossos antepassados aqui. 

O racismo nunca deixou de existir, apenas se adaptou a cada época. Então cada vez que ouço um relato de racismo me surpreende que as pessoas brancas ainda tenham a coragem de praticar tantas desumanidades. 

É por conta desse olhar, que nos desumaniza, que a gente ainda passa por situações de racismo, nossos filhos passarão, nossos pais passaram e nossos netos ainda sentirão essas dores. 

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Perceba a carga de cada relato de racismo que você ouvir ou ler. Cada relato é sobre oportunidades que nos são tiradas pelas características da nossa pele, cabelo, nariz, enfim por existirmos. Esses relatos são sobre as consequências dessa perversa invisibilização das pessoas negras e de tudo o que vivemos desde que nossos ancestrais foram sequestrados de África e jogados aqui para exploração de nossa força e anulação de nossa condição humana. 

Hoje não é na senzala que nos prendem, mas basta ler o Pacto da Branquitude de Cida Bento e outras tantas obras que analisam a sociedade em que vivemos para saber onde ainda nos prendem e de que forma ainda açoitam nossa pele. 

Essa situação não começou agora e nem de uns tempos pra cá. Situações de racismo são vivenciadas de maneira escancarada desde sempre. E no entanto, às vezes, leva uma vida para as pessoas brancas pararem para pensar o que acontece conosco há séculos e o que podem fazer para combater? 

Por isso o slogan “Vidas Negras Importam”. Não quer dizer que outras vidas não importam. É uma afirmação que tenta construir a narrativa de que nossas vidas importam, porque cotidianamente a branquitude nos diz que não importamos. É como se o que fazem conosco não estivesse sendo feito com seres humanos. 

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Se a gente der sorte, um dia vem o estalo que é preciso falar sobre a desumanização e apagamento que tentam fazer conosco. Até lá, via de regra, nas situações de racismo, a vítima se insurge sozinha e ainda tentam taxá-la de exagerada, barraqueira, vitimista ou paranóica. 

Quando nos dizem que não tinham pensado antes em tudo isso que a gente passa durante a vida toda, às vezes, a sensação que dá é que a gente não existia para essas pessoas. Por isso, eu sempre me surpreendo com as falas. Me surpreendo, me indigno e me pergunto: como as pessoas brancas "não viram" o racismo antes e que era urgente agir? O racismo não começou a existir de uns tempos para cá. Essa urgência não é de hoje. Quando cada um de nós que está lendo essa reflexão agora nasceu, essa urgência já existia.

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***Este é um artigo de opinião e não necessariamente representa a linha editorial do blog Feminário Conexões.

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Cíntia Colares (Flor de Lótus),mulher preta cis, jornalista (Mtb 11082), poeta, ultimamente anda se expressando em forma de crônicas e contos também. Coautora em coletâneas, antologias, revistas e sites de poesia, coletivos como o Enluaradas e 20 Poemas Para Novembro. Ativista no antirracismo, mãe solo de um adolescente negro, mora na periferia de Porto Alegre/RS. @jornalistacintiacolares 

"Escrevo para buscar me aquilombar com mãos e vozes para desconstruir o que está posto na sociedade em que vivemos e construir o que precisamos para termos direito a oportunidade de viver com dignidade e não apenas sobreviver."



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