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Maria Do Carmo Silva, arquivo da autora |
A
LITERATURA COMO FERRAMENTA ESSENCIAL DE HUMANIZAÇÃO: UM ENCONTRO DIALÉTICO
ENTRE AS OBRAS RECOMENDAÇÕES POÉTICAS, DE MARIA DO CARMO SILVA, E QUARTO
DE DESPEJO, DE CAROLINA MARIA DE JESUS Por Marta Cortezão
(...) a literatura é o sonho acordado das civilizações
(...) é fator indispensável de humanização (...). A literatura confirma e nega,
propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos
dialeticamente os problemas.
{Antônio Cândido}
Este artigo pretende mergulhar numa leitura
sobre o poder de humanização que a literatura é capaz de exercer aos ávidos olhos
leitores. Para esta viagem, embarco na leitura do livro Recomendações
Poéticas (Cogito Editora, 2021), onde a autora Maria do Carmo Silva –
professora, escritora, poeta de Mutuípe (BA) – a partir de sua escrita, nos
descortina um caleidoscópio de importantes reflexões sobre o caótico mundo em
que vivemos, mantendo sempre os olhos postos no horizonte das utopias e das esperanças
necessárias para as mudanças futuras, estas que urgem ações para a agoridade do
tempo presente, e que cujo ponto de
partida é a leitura. A epígrafe que abre o livro já nos aponta o caminho: “O conhecimento
liberta e promove o ser humano; a ignorância escraviza e aliena, tornando-o
limitado em suas próprias palavras e ações” (Pe. José Roberto da Silva Amaral).
E ainda, na apresentação do livro, a autora reforça estes questionamentos sobre
esta realidade que tanto a preocupa:
Em um mundo globalizado, onde os olhares e interesses
estão direcionados apenas para o capitalismo, voltados para o ter, o poder e a
ganância, o nosso cotidiano resume-se à correria em prol do materialismo,
dedicando um tempo mínimo para a leitura, ou muitas vezes não a incluindo na
nossa rotina. (p.13)
Refletindo sobre
estas primeiras páginas, chego ao ensaio Direito à Literatura,
escrito na década de 80 por Antônio Cândido, onde encontra-se a definição dos
conceitos de “bens compreensíveis” (“como os cosméticos, os enfeites, roupas
supérfluas”) e “bens incompreensíveis” que são “não apenas os que asseguram a
sobrevivência física em níveis decentes, mas que garantem a integridade
espiritual”. É neste segundo conceito de bens que o autor insere a arte e a
literatura, mas com ressalva, pois “só poderão ser consideradas bens
incompreensíveis segundo uma organização justa da sociedade se corresponderem a
necessidades profundas do ser humano, a necessidades que não podem deixar de
ser satisfeitas sob pena de desorganização pessoal, ou pelo menos de frustração
mutiladora” (CANDIDO: 2011, p. 174). Não tenho dúvida de que a
literatura é instrumento de transformação maior, sou prova disso, entretanto minha
angústia é constatar o caos – o descaso e desrespeito com a educação, a
literatura, a cultura, as artes, a ciência, a saúde e tudo o que sustenta um
país que pretende cuidar com seriedade de seu povo – e ainda as injustiças sociopolíticas
no Brasil que sucederam o fatídico golpe de 2016, revelando um Brasil onde a
aliança fascista ganha força e prospera descaradamente. Contudo é preciso
contemplar os “lírios dos campos”, mais que contemplá-los, potencializá-los em
sua força de semente, interessar-se pela “terra que o alimenta” e entender de
suas fragilidades para que eles floresçam na tão esperançada “primavera
política” de 30 de outubro.
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Arquivo da autora |
Para esta leitura
trago também o livro Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, no intuito de plasmar o
diálogo interior que me esteve muito presente durante a (re)leitura simultânea
das duas obras. Recomendações Poéticas está dividido em quatro partes
não intituladas, mas cada uma das partes se diferencia por uma temática
predominante. A Parte I, composta de 23 poemas, cuja epígrafe de
abertura é um trecho de Parabolicamará, letra de Gilberto Gil , “...Antes
mundo era pequeno / Porque terra era grande / Hoje mundo é muito grande /
Porque terra é pequena...”, poematiza sobre os povos originários, a História
pelo avesso, o Brasil multirracial, a voz negra das Afromemórias do Continente
África, o capitalismo que devora humanidades, mas, principalmente, sobre
dignidade humana, sonhos e esperança, porque desde o ano de 1500 sabemos que
onde há subalternização, também há luta, ainda que a história presente nos
livros didáticos nos tenha contado sempre a versão do colonizador:
Historicizando (pág. 26)
História evoca memórias, lutas e
resistências.
É o registro de cotidianas
vivências.
O tempo permite realizar os
acontecimentos.
O ser humano é o sujeito-histórico
a todo o momento.
O passado? Deixa suas marcas e
memórias.
O presente? Revela mudanças na
humana trajetória.
E o futuro? Será constituído pelo
misto de histórias
que marcaram o passado, que marcam
o presente,
perpetuando a vida dos mais
diferentes grupos humanos,
reconhecendo e valorizando a labuta
da gente.
E no longe, ouço de
meu silêncio, com a voz de Gil, uma resposta cantante: “Esse tempo nunca passa
/ Não é de ontem nem de hoje / Mora no som da cabaça / Nem tá preso nem foge /
No instante que tange o berimbau, meu camará / Volta do mundo, camará / Mundo
dá volta, camará”. Venha, mundo, dê suas voltas e deixe o povo no topo da
pirâmide! “Que o teu povo possa tornar-se independente, / das mazelas sociais
que o desumanizam e o tornam indigente”. (poema Adversa Nação,
pág. 33). E a voz do eu poético se junta ao coro no poema:
Afromemórias (pág. 36)
Emergi das profundezas do Lago
Vitória.
As raízes do Baobá sustentaram a
minha história.
Os meus ancestrais resgataram a
minha memória.
A tribo, meu território, ressalta a
minha trajetória.
Sou afrodescendente!
Dos quilombos, remanescente!
Não renego a minha gente!
Dói em minha alma a escravidão que
a vida
De tantos irmãos fez deplorar!
Os senhores contemporâneos ainda
querem me acorrentar!
LIBERDADE é o meu lema! Tenho que
gritar!
Sou humana, sou negra! Sou filha da
Mãe África!
E em seus braços, eternamente
deixo-me por ela embalar!
Um poema-hino para
recitá-lo em oração, um poema para profundos questionamentos. Eis que me lembro
de Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, do que ela escreve em
seu diário, no dia 13 de maio de 1958:
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim.
É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos.
(...) Eu estava com dois cruzeiros. Pretendia comprar
um pouco de farinha para fazer um virado. Fui pedir um pouco de banha a Dona
Alice. Ela deu-me a banha e arroz. Eram 9 horas da noite quando comemos.
E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a
escravidão atual – a fome! (pág. 27)
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Carolina Maria de Jesus, fonte: Pinterest |
O fragmento “eu lutava contra a escravidão atual – a fome!”
é navalha na carne para os que param para sentir a dor alheia, ainda que não
tenham conhecido a “fome amarela” que conheceu Carolina. É a fome um quadro
lamentável que escraviza nações e que só cresce no Brasil atual, onde “Até o
feijão nos esqueceu. Não está ao alcance dos infelizes que estão no quarto de
despejo” (DE JESUS: 1970, p. 38) do Brasil invisibilizado. Outra passagem que me
parece dialogar com os versos “Sou
afrodescendente! / Dos quilombos, remanescente! / (...) Sou
humana, sou negra!
/Sou filha da Mãe África! /E em seus braços, eternamente deixo-me por ela
embalar!” é a seguinte:
...Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de
circos. Eles respondia-me:
─ É pena você ser preta.
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o
meu cabelo rústico. (...) Se é que existe reencarnação, eu quero voltar sempre
preta.” (pág. 58)
Duas vozes que
se confrontam num profícuo diálogo, uma do século XX, outra do século XXI. É o
Brasil a passos trôpegos sendo destapado, em verso e em prosa, mostrando-se o
quanto nos distanciamos do Brasil de nossos sonhos! Há um Brasil que caminha
com os olhos do colonizador, presumindo de uma branquitude que não tem lugar e
nem brasilidade/representatividade. Onde está nossa LIBERDADE? A entendemos
como instrumento imprescindível de luta para a construção de uma sólida
democracia? É urgente conhecer a História de nosso povo, é urgente “assumir
nossa cor-identidade, / Libertar-nos: da discriminação histórica, / Da
subalterna colonialidade. / Somos negros! / Negra é a cor da brasilidade”.
(Ser negro, pág. 39). Somos indígenas, ribeirinhos, caboclos, somos
pretos, quilombolas. E para além das muitas e infinitas questões, somos pessoas,
somos seres humanos, somos um universo genético em que cabem todas as cores e todas
as vozes ancestrais.
A Parte II de Recomendações
Poéticas reúne 21 poemas. Neste capítulo são as águas que fluem, primeiramente,
na voz/letra de Guilherme Arantes: ...Água que nasce da fonte serena do
mundo / e que abre um profundo grotão. / Água que faz inocente riacho e deságua
/ na corrente do ribeirão. Água, um significante composto de apenas quatro
fonemas e que é um mar harmonioso de dicotomias semânticas porque abarca uma
amplidão de simbologias. Para Chevalier & Gheerbrant, no Diccionario
de los Símbolos,
Las significaciones simbólicas del
agua pueden reducirse a tres temas dominantes: fuente de vida, medio de
purificación y centro de regeneración. Estos tres temas se hallan en las
tradiciones más antiguas y forman las combinaciones imaginarias más variadas, al
mismo tiempo que las más coherentes.
(pág. 52)
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Arquivo pessoal de Maria do Carmo |
Neste capítulo
do livro, a água surge como “fonte de vida, meio de purificação e centro de
regeneração” da vida. É a matriz geradora, associada ao ciclo da vida, à mãe
natureza que nutre mundo e seres vivos; é o princípio, mas também o fim. São os
“espelhos naturais” destas águas que “refletem: / a face da mãe natureza / e a
diversidade de faces humanas” (Reflexos, pág. 46). Na escrita de Do
Carmo, a humanidade é parte da Natureza, destruí-la é também autodestruir-se; o
mesmo fogo que devasta o verde da floresta, “incendeia a alma dos pantaneiros”
(Devastação, pág. 52). As mesmas labaredas que lambem o solo para a
ganância do plantio da soja e do pasto para o gado são as mesmas que consumem a
alma humana e que deixam rastro de destruição, como revela o poema:
Descaso (pág. 53)
Labaredas consomem os biomas:
Amazônia, Cerrado, Pantanal.
Fumaça! Fogo! Paisagem
desfigurada.
Habitat animal assaltado pelas
chamas!
Espécies vegetais desmoronam
em cinzas.
Animais jazem esturricados.
O oxigênio sucumbe em meio à
poluição.
O fogo persegue os seres
vivos.
A devastação interroga o
coração humano.
O capitalismo, a ambição, a
indiferença
Provocam e aceleram a
combustão dos biomas!
A natureza geme as dores pela
queima dos seres.
Planeta Terra em caos!
Planeta consumido pelas
labaredas do descaso humano e social!
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Fonte: Pinterest |
No poema acima, se insurge uma
voz contra o descaso que se arvora pelo globo terrestre aos olhos cegos de um
atual (des)governo brasileiro, enquanto o “capitalismo, a ambição, a
indiferença / Provocam e aceleram a combustão dos biomas!”. Na atual
conjuntura, temos a natureza e a humanidade sendo envenenadas pela ganância. Em
Quarto de Despejo, Carolina Maria de Jesus reflete sobre suas angústias vividas
e sentidas na pele: “o que eu revolto é contra a ganância dos homens que
espremem uns aos outros como se espremesse uma laranja.” (pág. 41). E você, já
interrogou o seu “coração humano” acerca deste ganancioso “fogo (que) persegue
os seres” tão carentes de humanidade? Você, em algum momento, silenciou as
vozes do mundo para escutá-lo dentro de uma leitura intimista? Parou para
pensar sobre o quanto os discursos de ódio consomem o “coração humano”
impedindo-o de comover-se com as dores do mundo? De quanto se pode esvaziá-lo
de empatia ao não o alimentar com a frescura que o inspira a outros olhares,
apesar das agruras? Será que vale a pena justificar o descaso com o próprio
descaso? “A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está
enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos
fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia.” (DE JESUS: 1970, p.35). Mas
Carolina Maria de Jesus é inspiração, nunca se dá por vencida e sabe do poder
que pulsa das palavras: “Não tenho força física, mas minhas palavras ferem mais
do que espada” (pág. 43). Não permita que seu humano coração se enfraqueça,
alimente-o com o vermelho esperança para a Democracia pulsar viva e libertária.
Há uma natureza
que busca também regenerar a sua força interior através da beleza lírica, onde
a poesia transborda e escorre liquidamente pelos desvãos da alma, refrescando
os momentos de tristeza em que paramos para tomar fôlego, até porque também é
preciso tecer as próprias belezas para continuar (re)existindo, ainda que o mundo
exterior não seja tão animador:
Lição de pássaros (pág. 60)
A revoada de brancos pássaros
sobrevoa o Vale!
Num malabarismo sincronizado,
sobrevoa!
Despede-se da rotina diurna.
Proporciona alento aos
corações desanimados.
Transporta a noite em suas delicadas
asas.
Renova a esperança no coração
de outrem.
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Carolina Maria de Jesus, fonte: Pinterest |
A voz lírica observa a revoada, nela se ver refletida,
nela se sente renovada. A rotina diurna que envolve as vidas com seu torpor não
é capaz de vencer a utopia pelo cansaço repetitivo que pesa sobre todos nós.
Não é, porque a força da revoada atravessa os “corações desanimados” dando-lhes
alento. Voar com a mente, com a “revoada de brancos pássaros”, é suportar o
peso da “noite em suas delicadas asas”. Não é apenas a força física que
sustenta a luta, são os ideais, aqueles que germinam no pensamento e nascem
pelo desejo delirante das palavras que se encontram em revoada, convocando para
a retomada da luta. De Quarto de Despejo, trago o seguinte fragmento que
conversa com Lição de Pássaros:
...O céu é belo, digno de contemplar porque as nuvens
vagueiam e formam paisagens deslumbrantes. As brisas suaves passam conduzindo
os perfumes das flores. E o astro rei sempre pontual para despontar-se e
recluir-se. As aves percorrem o espaço demonstrando contentamento. A noite
surge as estrelas cintilantes para adornar o céu azul. Há várias coisas belas
no mundo que não é possível descrever-se. Só uma coisa nos entristece: os
preços, quando vamos fazer compras. Ofusca todas as belezas que existe.” (pág.
38)
O
trecho está carregado de poesia, a prosopopeia é a figura de linguagem
predominante: “as nuvens vagueiam”, as brisas conduzem “os perfumes das
flores”, o sol desperta e se recolhe pontualmente, “as estrelas cintilantes” adornam
o azul do céu. E de repente, na voz lírica marginalizada, a dura realidade
surge abruptamente e quebra a bela e poética sequência de imagens, ofuscando
toda e qualquer beleza e nos puxando para dentro desta realidade. Em ambos os
textos, as lições são provenientes das dores cotidianas e adversas, podemos
senti-las e nos emocionarmos com estas realidades diferentes – mas ao mesmo
tempo similares – que se entrelaçam em diálogos distantes no tempo. Cada
autora, a seu modo, vai costurando infinitos na cartografia dos muitos Brasis,
pois, como diz a poeta Do Carmo, “A vida é feita de contínuas andanças.” (Adaptação,
pág. 64), e são nestas andanças que se vislumbra um universo literário
construído, capaz de nos sacudir da cotidianidade e de nos tocar, em profundidade,
o mundo das emoções, transformando-nos. Para Antônio Cândido “Toda obra
literária é antes de mais nada uma espécie de objeto, de objeto construído; e é
grande o poder humanizador desta construção, enquanto construção” (pág.
177).
A Parte
III – composta por 12 poemas – se relaciona com profunda liquidez à Parte
II, a Natureza como matriz geradora desaguando em sua abrangência simbólica
das águas. Neste capítulo é a mulher, a mãe; é este “ser mulher” transportado
pelas águas para o centro do discurso poético. É a poeta Cora Coralina que
fornece a epígrafe: “...Eu sou aquela mulher / a quem o tempo muito ensinou. /
ensinou a amar a vida... / ...Acreditar nos valores humanos...”. No contexto semântico da mulher genitrix, Chevalier & Gheerbrant
afirmam
que el simbolismo de la madre se relaciona con el de la mar, como también
con el de la tierra, en el sentido que una y otra son otros tantos receptáculos
y matrices de la vida. El mar y la tierra son símbolos del cuerpo maternal. (…)
En
este símbolo de la madre se encuentra la misma ambivalencia que en el del mar y
la tierra: la vida y la muerte son correlativas. Nacer es salir del vientre de
la madre; morir es retornar a la tierra. La madre es la seguridad del abrigo,
del calor, de la ternura y el alimento; (pág. 674).
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Céu e mar, fonte: Pinterest |
Mas neste contexto ambivalente mar/terra, a força
criadora, a que fertiliza o mundo, é responsável por manter o equilíbrio do
mundo quando presente no coração humano “extremamente carente de Paz! / De Paz
interior, de paz no campo, de paz na cidade! / (...) O homem que ignora a Paz
caminha nas trevas. / Se a humanidade rejeita a paz, a violência sobre ela
impera” (Lição de Paz, pág. 69). A figura mulher-mãe-natureza inspira os
melhores sentimentos humanos, como a paz espiritual e canta aos quatro ventos que
“A semente do conhecimento brotará” (Crescendo e Empreendendo, pág. 73).
Entretanto, a ausência de “um abrigo seguro, de calor, de ternura e alimento”
adoece o mundo e os corações humanos e aproxima a humanidade de sua extinção
terrestre. A voz poética clama por um despertar deste mundo cego pela ganância
do capital:
Clamor da nossa gente! (pág. 77)
Gente brava! Gente brasileira!
Gente que sonha e luta por uma
“Pátria Ordeira”!
A Ordem e o Progresso são mera
teoria?
O clamor dos teus filhos não
te angustia?
Esta gente brasileira clama
por respeito e dignidade!
A desigualdade gera os
excluídos da sociedade!
Gente brava! Gente brasileira!
Gente que não apenas sonha!
Gente que cotidianamente
labuta!
Labuta por justiça e
igualdade!
Esta brava gente
clama por Independência e
chora as mazelas sociais!
Independência!
Usufruto dos Direitos que
deveriam ser para todos iguais!
A Ordem e o Progresso não
podem ser utopia!
A gente brava brasileira luta!
Luta por uma vida digna para
todos,
não apenas para uma minoria!
Gente brava! Gente brasileira!
Gente que luta, resiste e
persevera,
Na conquista da “Independência
Verdadeira!”
Nos deparamos com um queixoso clamor de uma voz lírica que
protesta pela desigualdade social e que sente todas as dores deste mundo
enfermiço. A voz de Carolina Maria de Jesus também se levanta contra estas
mazelas sociais sempre tão presentes nos nossos Brasis, sentenciando: “É
preciso conhecer a fome para saber descrevê-la (...) O Brasil precisa ser
dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome também é professora. Quem
passa fome aprende a pensar no próximo, e nas crianças” (pág. 26). A fome é
inegável, está no prato dos desamparados pelas políticas públicas, está nas
estatísticas diárias, está em cada esquina, nas ruas, nos semáforos,
sinalizando e escancarando um mundo decadente e desumano a nossos olhos. “E as
lágrimas dos pobres remove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os
poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa
as trajedias que os políticos representam em relação ao povo” (DE JESUS: 1970,
p. 47). A Literatura é esta trincheira
que se abre dentro de nós, em confronto com outras realidades e que tem o poder
de nos humanizar, já que a literatura “tira as palavras do nada e as dispõe
como um todo articulado (...). A articulação da palavra comunica-se ao nosso
espírito e o leva, primeiro, a se organizar; em seguida, a organizar o mundo.
(CANDIDO: 2011, p. 177).
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Arquivo da autora |
A Parte IV, último capítulo de Recomendações
Poéticas, composta de 30 poemas, se abre aos olhos leitores com a epígrafe
“Os poemas são pássaros que chegam / Não se sabe de onde e pousam / No livro
que lês. /quando fechas o livro, eles alçam voo...” (Mário Quintana). Neste
capítulo, há temas que tratam de momentos vividos na pandemia, mas o que
prevalece é a metapoesia. A autora usa o seu conhecimento sobre o fazer poético
para falar de poesia de seus mundos, assumindo-se poeta:
Universo Poético (pág. 83)
Instante é o tempo do poeta.
A vida do poeta é a poesia.
Sou poeta!
Edifico a poesia e nela
permaneço.
A poesia me tocou,
floriu o meu deserto interior.
Causou arrepio, temor, mas ao
livro chegou.
Sou poeta!
Escrevo, reescrevo,
expresso em verso meus mundos:
o interior e o exterior.
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Maria Carolina de Jesus, fonte: Pinterest |
Para o eu lírico, a escrita e a leitura são os dois lados de
uma mesma moeda. Lavrar a palavra é uma viagem pelo silêncio do “deserto
interior” e pelo universo das emoções até chegar ao livro; é o trabalho
paciente de escrever e reescrever seus “mundos: / o interior e o exterior”. É
buscar o tempo para a construção e organização da palavra no complexo universo
da literatura de caráter contraditório mas humanizador, ou naquilo que humanizador
porque aprofunda-se no contraditório (CANDIDO: 2011, p.176). A força
transformadora da literatura transborda em Quarto de Despejo: “Enquanto
as roupas corava eu sentei na calçada para escrever” (pág. 16); ¨Li um pouco.
Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção
do homem” (pág. 18); “É que eu estou escrevendo um livro, para vendê-lo. Viso
com esse dinheiro comprar um terreno para eu sair da favela” (pág. 20). “Todos
tem um ideal. O meu é gostar de ler” (pág. 23). Em ambas as autoras, a escrita
e a leitura são prioritárias apesar das dificuldades diárias. Podemos dizer que
para além da leitura, o ato de escrever também é uma forma de empatizar com o
mundo ao redor, criando possibilidades e agindo por meio delas no mundo através
de releituras intimistas. Através da escrita, Carolina pôde realizar o sonho de
sair da favela do Canindé, atual Marginal Tietê de São Paulo.
Do Carmo, no poema abaixo, chama a atenção para as muitas
possibilidades de leituras de mundo. Para alcançá-las é preciso deixar corpo e
mente a postos para a prática da leitura diária e de compromisso, pois ler é
mais que uma ação, é uma necessidade orgânica:
Multileituras (pág. 88)
Leio com a mente.
Leio com os olhos.
Leio com o coração.
Leio com a razão.
Leio nas entrelinhas.
Leio com emoção.
Leio sob a luz do sol ou da
lua.
Leio na penumbra da escuridão.
Leio refletindo sobre o
cotidiano dos seres.
Leio a vida na sua diversidade
e amplidão!
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Maria do Carmo Silva, arquivo pessoal |
O poema Multileituras traz o desfecho destas minhas
andanças pela escrita de Maria do Carmo, em Recomendações Poéticas, e de
Carolina Maria de Jesus, em Quarto de Despejo, pois, nas obras destas duas
autoras, eu também (re)escrevo-me e (re)leio-me e “Leio a vida na sua
diversidade e amplidão”, agarrando-me à força humanizadora, presente naquilo
que afirma Antônio Cândido sobre este justo e necessário “direito à literatura”:
Entendo aqui por humanização
(...) o processo que confirma no homem aqueles traços que reputamos essenciais,
como o exercício da reflexão, a aquisição do saber, a boa disposição para com o
próximo, o afinamento das emoções, a capacidade de penetrar nos problemas da
vida, o senso da beleza, a percepção da complexidade do mundo e dos seres, o
cultivo do humor. A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na
medida em que nos torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a
sociedade, o semelhante (pág. 180).
Mas
não posso ir embora sem antes louvar e agradecer a resistência e existência do
povo nordestino, orgulho brasileiro, apropriando-me, para isso, do fragmento do
poema Identidade Nordestina (pág. 34), da autora Maria do Carmo Silva:
O Nordeste existe, insiste e resiste!
O Nordeste é o meu quinhão!
Nordestino sou de coração!
Não aceito discriminação!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ARENDT,
Hanna. La Pluralidad del mundo. [libro digital]. Barcelona: Penguin Random House Grupo Editorial, 2019.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia.
[livro digital]. São Paulo: Editora Cultrix, 1977.
CANDIDO, Antônio. Vários Escritos. [Organização
do próprio autor]. São Paulo: Duas Cidades, 4ª edição, 2011.
CARMO, Silva do. Recomendações Poéticas. Salvador:
Cogito Editora, 2021.
CHEVALIER, J. & GHEERBRANT, A. Diccionario de los Símbolos. Barcelona: Editorial Helder, 1986.
DE JESUS, Maria Carolina. Quarto de Despejo – Diário
de uma Favelada. 90º Milheiro, Edição Popular, 9ª ed., 1970.
ECO, Humberto. Os limites da interpretação.
Pérola de Carvalho [Trad.]. [livro digital]. São Paulo: Perspectiva, 2015.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias.
Milton Japiassu [Tradução e organização]. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1990.