quinta-feira, 21 de outubro de 2021

FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE

 


FEMININO SELVAGEM & CONTEMPORANEIDADE|02


A PRESENÇA DO FEMININO SELVAGEM NO PROJETO ENLUARADAS: 'SE ESSA LUA FOSSE NOSSA' E 'UMA CIRANDA DE DEUSAS'

 

 POR ISA CORGOSINHO

 

    Além das condições objetivas sociais, culturais e políticas, que impulsionam o atual fluxo da criação literária feminina, o resgate do feminino selvagem parece ser uma exigência nesses tempos de embrutecimento dos sentidos e deturpações dos espaços sagrados. A lua, com todas as significâncias herdadas de épocas atemporais na literatura, é uma metáfora-lugar que as organizadoras Marta Cortezão e Patrícia Cacau criaram, convite afetuoso às mulheres para que retirem seus escritos criativos das gavetas e ofereçam à Deusa Selene, que ocupem os espaços poéticos virtuais, como meios de acolhimento, circulação e publicação.  

    As temáticas são livres, mas é possível observar um fio sutil da potência norteadora da mulher selvagem nos processos criativos. O que vem a ser essa mulher selvagem? Segundo Clarissa Pinkola Estés[1], do ponto de vista arquetípico, bem como na tradição de contadoras de histórias, ela é a alma feminina, é a origem do feminino, envolve o ser alfa matrilinear.   Ela é tudo que for instintivo, tanto no mundo visível quanto no mundo oculto; pode-se nomeá-la de natureza básica, inata; na psicanálise, a partir de diversas perspectivas, de id, de Self, de natureza medial; na biologia seria chamada de natureza típica ou fundamental.  Nas mulheres que saem às ruas em protestos contra o feminicídio, os assassinatos de seus filhos, confrontando instituições autoritárias e repressivas, assumidamente patriarcais, sexistas e misóginas, está a mulher selvagem com a garra da coragem, é ela que se enfurece diante das injustiças.

    Mas em meio às lutas, entrega-nos os instrumentos de que precisamos e nos impulsiona a sermos multilíngues: fluentes no linguajar da paixão e erotismo, dos sonhos, da prosa e da poesia. A mulher selvagem desdobra-se em ideias, sentimentos, impulsos e recordações, é a que gira numa roda enorme, é a criadora dos ciclos. Podemos encontrá-la nas matas, nos rios, caminhando pelos subúrbios e praias, perambulando pelas cidades, guetos, vive entre as mulheres do campo, nas fábricas, nos escritórios, nas universidades, nas ruas, nos presídios e também entre as refugiadas. Ela está ali, mesmo nos momentos de longa depressão, pânico, solidão. Quando saem do exílio de si mesmas, as mulheres se lançam em voos livres, em leituras profundas, prazerosas, nos exercícios vigorosos dos processos de criação: resolvem aprender a dançar, cantar, pintar, plantar, desenhar e escrever novos sentidos para um mundo em exaustão.

    Na escuta atenta da interpretação, observamos que as questões da alma feminina estão subjacentes aos seus escritos criativos. As mulheres descobrem na arte da escrita a beleza como ato de resistência, e se postam em confronto à cultura que tenta esculpi-las num formato intelectual mais aceitável para os detentores do poder. A ambivalência da mulher selvagem constitui a força criadora que objetiva a recuperação e o resgate da potência psíquica da mulher. É ela que transforma suas obras em seres de linguagem autônomos e transformadores.

    O convite às mulheres a bailarem sob a potência lunar, significa considerar o uso de suas palavras como insubstituíveis instrumentos para abertura de passagens e reencontro com o nosso parentesco com o absoluto, com a nossa dimensão numinosa, misteriosa. Guiadas pelos ciclos lunares, podemos nos proteger de relacionamentos de qualquer natureza que se tornaram espectrais pela negligência, domesticação ou violência.     

    A ciranda com a deusas relembra o movimento de uma dança circular atemporal, que une as mãos e os corpos das mulheres, geralmente em torno de um ou mais elementos como o fogo, a água, as árvores etc. A ciranda nos convida a dançar com as nossas ancestrais, e elas nos ensinam que, por meio de seus corpos, as mulheres vivem muito de perto a natureza da vida-morte-vida, da natureza cíclica de tudo. O canto, proferido pelas mulheres em roda, são capazes de curar ferimentos profundos, são alentos mágicos que restauram os corpos. Dizem as mitologias que os mortos podem ser ressuscitados ou invocados por meio do canto. O canto com as deusas pode ser uma fonte misteriosa, que gera vida, criação. Segundo Pinkola, na literatura oral, diz-se que tudo que tem seiva tem canto.        

    Na companhia das Mulheres enluaradas e na Ciranda de deusas, encontramos alteridades complementares do feminino contemporâneo nas digitais poéticas, prismáticas formas e conteúdos apresentados em saraus, tertúlias, blogs, publicações virtuais e impressas.

    É para liberar nossa seiva criativa no fazer poético que a deusa amazonense Marta Cortezão e a deusa nordestina Patrícia Cacau nos convidam. Agradecidas e lisonjeadas, aceitamos o convite para bailar sob a lua a ciranda das deusas no processo criativo e edificante da poesia!      

    Deixo aqui um canto poético para bailarmos juntas. A mãe Terra e sua filha Natureza guiam essa ciranda de mulheres criativas. Eis aqui parte do pulsante legado do feminino selvagem que habita entre nós.         

           

Ciranda das Deusas líricas 

Para ouvir o podcast do poema, clique AQUI

Eu sou Gaia Gaia Gaia
de marré marré marré

Cantavam em roda
as deusas da Terra
descalças felizes
cheirando excitante rapé

Eu sou Pachamama
de marré marré marré

Respondiam as filhas da Baba Yaga
vestidas de peles
brincos de ossos
chales de teias giravam no afoxé!

Quero vossas filhas
mágicas humanas terráqueas
Lilith, Eva, Maria
Evoé!

A deusa Gaia acatava:
levem a epifânica Clarice, Tarcila, Pagu, Muylaert
Hilst vai na frente com falos, ondas de gozo, ouvindo Elis, Cássia Eller, Rita Lee na maré!

Não esqueçam Marielle que da luta nunca arredou pé!
Todas acolhidas no quarto de despejo de Carolina
com boa prosa, quente café!

Dou-lhe em troca, Baba dizia:
telúrica Cora, vertiginosa Isadora Duncan, cosmopolitas Ana Cristina e  Carla Camurati, acompanhada de Joaquina!

Entre também nessa roda, Adriana, meu Calcanhotto de Aquiles!
A roda sagrada das deusas 
girando plena e lírica

Eu de pobre muito rica
de marré marré marré
essas deusas me habitam
na lua rosa minguante cheia

Seja fria a pólis doente perversa feia
deito no colo delas
meu corpo exausto revigora
e a mente inquieta vagueia

As cordas do coração aceleram
e os olhos não mais pranteiam!

Isa Corgosinho
26/05/2021

 


[1] ESTÉS, Clarissa P. Mulheres que correm com lobos. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

 


 

 


5 comentários:

  1. Que riqueza de pensar, muita gratidão por mais mulheres com essa missão de despertar.
    É um texto vocacional..
    Prometo repetir a leitura várias vezes 🌹😘😘😘

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    Respostas
    1. Gratidão pelas palavras despertas, certamente uma iniciada de Selene. Beijos 💋

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  2. Texto lindíssimo, arrebatador em nossa alma selvagem. Obrigada Bel por sua grandiosidade!

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