Além das condições objetivas
sociais, culturais e políticas, que impulsionam o atual fluxo da criação
literária feminina, o resgate do feminino selvagem parece ser uma exigência
nesses tempos de embrutecimento dos sentidos e deturpações dos espaços
sagrados. A lua, com todas as significâncias herdadas de épocas atemporais na
literatura, é uma metáfora-lugar que as organizadoras Marta Cortezão e Patrícia Cacau criaram,
convite afetuoso às mulheres para que retirem seus escritos criativos das
gavetas e ofereçam à Deusa Selene, que ocupem os espaços poéticos virtuais,
como meios de acolhimento, circulação e publicação.
As temáticas são livres, mas é
possível observar um fio sutil da potência norteadora da mulher selvagem nos
processos criativos. O que vem a ser essa mulher selvagem? Segundo Clarissa
Pinkola Estés[1], do ponto de vista
arquetípico, bem como na tradição de contadoras de histórias, ela é a alma
feminina, é a origem do feminino, envolve o ser alfa
matrilinear. Ela é tudo que for instintivo, tanto no mundo
visível quanto no mundo oculto; pode-se nomeá-la de natureza básica, inata; na
psicanálise, a partir de diversas perspectivas, de id, de Self, de natureza
medial; na biologia seria chamada de natureza típica ou
fundamental. Nas mulheres que saem às ruas em protestos contra o
feminicídio, os assassinatos de seus filhos, confrontando instituições
autoritárias e repressivas, assumidamente patriarcais, sexistas e misóginas,
está a mulher selvagem com a garra da coragem, é ela que se enfurece diante das
injustiças.
Mas em meio às lutas, entrega-nos
os instrumentos de que precisamos e nos impulsiona a sermos multilíngues:
fluentes no linguajar da paixão e erotismo, dos sonhos, da prosa e da poesia. A
mulher selvagem desdobra-se em ideias, sentimentos, impulsos e recordações, é a
que gira numa roda enorme, é a criadora dos ciclos. Podemos encontrá-la nas
matas, nos rios, caminhando pelos subúrbios e praias, perambulando pelas
cidades, guetos, vive entre as mulheres do campo, nas fábricas, nos
escritórios, nas universidades, nas ruas, nos presídios e também entre as
refugiadas. Ela está ali, mesmo nos momentos de longa depressão, pânico,
solidão. Quando saem do exílio de si mesmas, as mulheres se lançam em voos
livres, em leituras profundas, prazerosas, nos exercícios vigorosos dos
processos de criação: resolvem aprender a dançar, cantar, pintar, plantar,
desenhar e escrever novos sentidos para um mundo em exaustão.
Na escuta atenta da interpretação,
observamos que as questões da alma feminina estão subjacentes aos seus escritos
criativos. As mulheres descobrem na arte da escrita a beleza como ato de
resistência, e se postam em confronto à cultura que tenta esculpi-las num
formato intelectual mais aceitável para os detentores do poder. A ambivalência
da mulher selvagem constitui a força criadora que objetiva a recuperação e o
resgate da potência psíquica da mulher. É ela que transforma suas obras em
seres de linguagem autônomos e transformadores.
O convite às mulheres a bailarem
sob a potência lunar, significa considerar o uso de suas palavras como insubstituíveis
instrumentos para abertura de passagens e reencontro com o nosso parentesco com
o absoluto, com a nossa dimensão numinosa, misteriosa. Guiadas pelos ciclos
lunares, podemos nos proteger de relacionamentos de qualquer natureza que se
tornaram espectrais pela negligência, domesticação ou
violência.
A ciranda com a deusas relembra o
movimento de uma dança circular atemporal, que une as mãos e os corpos das
mulheres, geralmente em torno de um ou mais elementos como o fogo, a água, as
árvores etc. A ciranda nos convida a dançar com as nossas ancestrais, e elas
nos ensinam que, por meio de seus corpos, as mulheres vivem muito de perto a
natureza da vida-morte-vida, da natureza cíclica de tudo. O canto, proferido
pelas mulheres em roda, são capazes de curar ferimentos profundos, são alentos
mágicos que restauram os corpos. Dizem as mitologias que os mortos podem ser
ressuscitados ou invocados por meio do canto. O canto com as deusas pode ser
uma fonte misteriosa, que gera vida, criação. Segundo Pinkola, na literatura
oral, diz-se que tudo que tem seiva tem
canto.
Na companhia das Mulheres
enluaradas e na Ciranda de deusas, encontramos alteridades complementares do
feminino contemporâneo nas digitais poéticas, prismáticas formas e conteúdos
apresentados em saraus, tertúlias, blogs, publicações virtuais e impressas.
É para liberar nossa seiva criativa
no fazer poético que a deusa amazonense Marta Cortezão e a deusa nordestina
Patrícia Cacau nos convidam. Agradecidas e lisonjeadas, aceitamos o convite
para bailar sob a lua a ciranda das deusas no processo criativo e edificante da
poesia!
Deixo aqui um canto poético para
bailarmos juntas. A mãe Terra e sua filha Natureza guiam essa ciranda de
mulheres criativas. Eis aqui parte do pulsante legado do feminino selvagem que
habita entre nós.
Ciranda das Deusas líricas
Para ouvir o
podcast do poema, clique AQUI.
Eu sou Gaia Gaia Gaia
de marré marré marré
Cantavam em roda
as deusas da Terra
descalças felizes
cheirando excitante rapé
Eu sou Pachamama
de marré marré marré
Respondiam as filhas da Baba Yaga
vestidas de peles
brincos de ossos
chales de teias giravam no afoxé!
Quero vossas filhas
mágicas humanas terráqueas
Lilith, Eva, Maria
Evoé!
A deusa Gaia acatava:
levem a epifânica Clarice, Tarcila, Pagu, Muylaert
Hilst vai na frente com falos, ondas de gozo, ouvindo Elis, Cássia Eller, Rita
Lee na maré!
Não esqueçam Marielle que da luta nunca arredou pé!
Todas acolhidas no quarto de despejo de Carolina
com boa prosa, quente café!
Dou-lhe em troca, Baba dizia:
telúrica Cora, vertiginosa Isadora Duncan, cosmopolitas Ana Cristina e
Carla Camurati, acompanhada de Joaquina!
Entre também nessa roda, Adriana, meu Calcanhotto de Aquiles!
A roda sagrada das deusas
girando plena e lírica
Eu de pobre muito rica
de marré marré marré
essas deusas me habitam
na lua rosa minguante cheia
Seja fria a pólis doente perversa feia
deito no colo delas
meu corpo exausto revigora
e a mente inquieta vagueia
As cordas do coração aceleram
e os olhos não mais pranteiam!
Isa Corgosinho
26/05/2021
[1] ESTÉS, Clarissa P. Mulheres
que correm com lobos. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.
Que riqueza de pensar, muita gratidão por mais mulheres com essa missão de despertar.
ResponderExcluirÉ um texto vocacional..
Prometo repetir a leitura várias vezes 🌹😘😘😘
Gratidão pelas palavras despertas, certamente uma iniciada de Selene. Beijos 💋
ExcluirTexto lindíssimo, arrebatador em nossa alma selvagem. Obrigada Bel por sua grandiosidade!
ResponderExcluirBeijos no coração!
ExcluirCléssia
Que saudade de você! Beijos 💋
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