Prosa Epistolar/01
Por SabrinaDalbelo
Minha Sacerdotisa,
Tenho pensado em tudo o que ocorreu. Estou ciente de que passaste a viver em meio ao horror e no isolamento. Todavia, não posso deixar de reconhecer a mulher que eras. Creio que a fêmea desejável ainda exista por detrás desses muros petrificados que te cercam e por debaixo dessas serpentes perniciosas que te prendem à monstruosidade.
Persisto firme na minha decisão de condenar-te ao vazio, pois ainda não suporto que tanta beleza, como a tua, fosse conferida pelos deuses a uma mera mortal.
Poseidon começou a me falar de ti e eu não sei quem eu passei a odiar mais, se ele ou tu.
Não pude acreditar que vocês dois cederam à tentação justamente embaixo de meu próprio teto, na minha casa sagrada. Até aquele momento, tu me idolatravas, e ele me desejava. Pouco depois, eu já não tinha mais nada. Feriu-me a honra tamanha traição, sobremaneira porque banhada pelo suor carnal escorrido de ambos.
Lembro-me de Poseidon vangloriando-se de ti, de te ter nos braços, de apalpar tuas carnes e de afagar teus cabelos macios, enquanto preparava os mais vigorosos maremotos, enternecido por um entusiasmo jovial, fruto da lembrança dos momentos íntimos vividos contigo.
Enquanto me traías, eu seguia ocupada, mantendo-me imbatível nas guerras, até mesmo frente a Ares. Optei pela luta solitária e gloriosa. Coube a mim a virgindade perpétua, apesar de saber que sou bastante desejável para os homens e outros deuses.
Foi por isso que te tornei tão vingativa e rancorosa no que diz respeito aos machos, como eu própria sou. Foi por isso que te condenei a uma vida isolada e trágica. Eu queria que vivenciasse minha congênita falta de ternura.
Dolosamente, te penitenciei a não olhar, não acariciar, não presenciar mais nada. Tua sina é paralisar aquele que chegar a ti. Teu destino é viver rodeada de estátuas tão inertes quanto teu próprio coração gelado. Ou seria o meu?
Te condenei a nem mesmo “te” olhar, pois terás nojo e raiva todas as vezes que perceberes o quão horrenda tu te tornaste por fora, como sou por dentro.
Preciso contar-te mais uma coisa. Na tua cabeça abominável, o sangue de tua artéria esquerda é puro veneno, amargo, provocador de dor e petrificação. Contudo, o de tua artéria direita é um remédio divino, com propriedades de ressuscitar os mortos. Ironicamente, permanecerás bonita por dentro, mas nunca te atentarás de usar o remédio da vida. Quando te tornei isso, tu acabaste optando pelo medo e pela infelicidade. Tu, tomada de rancor, vejo agora, só te socorres do veneno que habita metade de ti.
Minha mensagem, por isso, cara Medusa, é para reconhecer que, como minha vingança ao assédio que aceitaste, tornei-te tão dura e fria como eu mesma, incapaz de reconhecer a própria vida que ainda conténs.
Para meu regozijo, saibas tu, nem mesmo terás acesso a esse relato, pois o mensageiro que mando para entregar-te é um homem e, fraco, cederá ao desejo de encarar-te, como todos aqueles que chegam até ti após atravessarem o reino dos mortos a bordo do barco de Caronte. Ele será mais um ornamento paralisado a tua porta, para te lembrar que tua vida estagnou.
Nunca saberás disso, mas haverá um mortal que te libertarás, no exato dia em que te decapitares. Somente ele terá acesso ao sangue da vida que escorre de ti, o qual será usado pelo bem da Grécia.
Desse dia em diante, Zeus me perdoará pelo que fiz contigo e eu voltarei ao Olimpo.
Eu nunca serei liberta, eu sei. Mas tu, Medusa, nunca serás bela novamente.
Resta a mim, agora, vendar meus olhos e carregar a Justiça nas costas, para nunca mais ter de presenciar tamanha insolência, como a tua, embora seja meu fardo olhar pelos mortais, eternamente.
Até nunca, minha Sacerdotisa.
Palas Atena.
* mensagem originalmente em grego dada pela Deusa virgem Atena, filha de Zeus, deusa da estratégia em batalha, das artes, da justiça e da habilidade, a um mensageiro mortal para ser entregue à Medusa. O homem, apesar de atravessar a Grécia, rumo à extremidade ocidental do mundo, foi petrificado à porta do covil da górgona, diante do seu olhar paralisante. Medusa nunca leu a carta.
Excelente, Sá, amei. Bjs
ResponderExcluirObrigada, Fernandinha.
ExcluirEsse conto nasceu para um desafio de contos epistolares, lá no nosso blog As Contistas.
Grande beijo!
Sabrina, parabéns, amei! Texto bem propício aos dias atuais em que o culto à beleza física virou moda substituindo os cuidados com a saúde física e mental. Quero conhecer os seus dois livros de poesias.
ResponderExcluirObrigada pela leitura e pelas palavras, Maria Rosa!
ExcluirFico muito feliz com seu interesse em meus poemas! Estou à disposição para qualquer coisa! Beijos
Agradeço muito à querida Marta por seu constante e incansável incentivo à literatura contemporânea escrita por mulheres.
ResponderExcluirMarta, teu trabalho é ótimo e importantíssimo!
Minha querida, que abraço lindo. Obrigada pelo seu apoio de sempre. Sua prosa epistolar é um encanto poético. Vamos juntas!
ExcluirMuito bom!
ResponderExcluir🤜❤🤛
ExcluirObrigada!
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