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quarta-feira, 30 de novembro de 2022

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO, POR JOCINEIDE MACIEL

Clique na imagem e baixe o I Tomo das Bruxas gratuitamente
 

ENLUARADAS: A POÉTICA DO ABRAÇO NO I TOMO DAS BRUXAS


POR JOCINEIDE MACIEL


O livro I Tomo das Bruxas: do Ventre à Vida, organizado por Marta Cortezão & Patrícia Cacau, é composto por três partes que relacionam às três condições necessárias para a liberdade: meu Corpo, minhas normas, meu Templo Sagrado; Dos Silêncios que ardem no fogo das injustiças e dos Prodígios da Palavra; Da chama Poética que abrasa o ventre Divino das Bruxas.

Ao percorrer a primeira parte da obra, o leitor poderá encontrar diversos eus poemáticos que se embrenham na perspectiva histórica sobre o lugar que a mulher ocupou/ocupa ao longo da história da humanidade, principalmente as mulheres que ousaram sonhar, pensar, e acima de tudo assumiram a autonomia dos seus corpos e de suas vozes “negra índia branca amarela/ sou mulher!/ [...] não me julgue pelo que vê/ ou pelo que tenho na bolsa/ respeite minha identidade biológica ou social/ esse lugar é meu e dele não abro mão!” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p.43).

O encadeamento dos poemas que compõem a segunda parte da obra permitirá o vislumbre da escrita feminina num olhar que transcende: “as obrigações imposta socialmente a mulher” e alcança a magnitude da alma humana, em um envolvente jogo de palavras em que o fazer poético e o existir se metaforiza “[...] Quando eu começar a escrever,/ a mulher que, até um dia,/ pelas janelas olhava,/ abrirá as portas que nunca/ lhes deveriam ter sido fechadas,/ E será, na vida, tudo aquilo/ que um dia havia desejado.” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 105).

A última parte do livro finaliza a grande roda, onde cada uma e todas têm o seu lugar, onde os corpos bailam aquecidos em volta da fogueira que elas acenderam para clarear os caminhos e as noites escuras, nos gritos eufóricos por liberdade de expressão, elas se fortalecem na compreensão de que as bruxas nunca andam sós, mas são povoadas por muitas, com diversas paragens, espaços em que a escrita é a única e necessária poção “[...] é tempo de origens/ e coreográficas travessias/ despojadas da carne/ expõe-se às fibras/ e a nada mais” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 192).

Destacamos a escrita da poeta, professora, doutora, crítica literária e pesquisadora Elizabete de Nascimento, que nessa coletânea nos agracia com dois poemas intitulados: Promessas do meu Patoá e Essa miserável, uma dobradinha perfeita, que repercute dois pontos essenciais na produção dessa obra de forma geral. No primeiro poema, compreendemos que a vida e a poesia são metaforizados pelo próprio sangue a correr na veia: “[...] Sangue, música torrencial dessa vida dissoluta, minha essência./ Você! Ah, você!?/ Você é minha melhor poesia,/ é quem sustenta as missivas da minha biografia”. (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 132) e o segundo reúne a força de todas as escritoras que se lançam à escrita, e que em suas condições de poetas anseiam pelo reencantamento do mundo: “[...] Essa miserável, que dá boca e orelha ao papel, que torna público o impublicável/ Ah! Essa miserável, a poeta, ainda tiro-a do anonimato e entrego-a à forca” (CACAU; CORTEZÃO, 2022, p. 133).

Que esse meu eco de leitura encontre com os ecos de outros leitores e promovam um alarde literário a fim de fortalecer, ainda mais, a escrita feminina contemporânea.

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Referência bibliográfica:

CORTEZÃO, Marta; CACAU, Patrícia (Org.). I Tomo das bruxas: Do Ventre a Vida. Juiz de Fora, MG: Editora Siano, 2022.

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Jocineide Catarina Maciel de Souza é Quilombola Pita Canudos, possui graduação em Letras (2009) e Mestrado em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso (2014). Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários PPGEL/UNEMAT (2021). Componente do Grupo de Pesquisa em Poesia Contemporânea de Autoria Feminina do Norte, do Nordeste e do Centro-Oeste do Brasil - GPFENNCO-UNIR/CNPQ. Professora de língua portuguesa, atuando como formadora no DRE/CEFAPRO em Cáceres/MT. Bolsista do Programa de Apoio à Pós-Graduação da Amazônia Legal Edital 013/CAPES. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Literatura Brasileira, atuando principalmente nos seguintes temas: literatura mato-grossense, historiografia literária, Literatura de Autoria Feminina, literatura e ensino, letramento literário, literatura afro-brasileiras e Poéticas orais. É membra fundadora (2017) do Coletivo de Mulheres Negras de Cáceres/MT.

 

domingo, 20 de novembro de 2022

FELIZ ANIVERSÁRIO CECÍLIA, POR FLAVIA FERRARI

 

                      POESIA NA REDE|08

FELIZ ANIVERSÁRIO, CECÍLIA
                                                                                                 Por Flavia Ferrari

   Escrevo este texto poucos dias depois do aniversário de Cecília Meireles. Poeta presente em minha vida desde a infância, não tinha reparado a intensidade de nossa conexão, a impressão dos seus versos no meu repertório, a saudade de relê-la. Tudo isso foi vivenciado nas últimas semanas, em que me debrucei sobre sua poética, sua história, vídeos declamando sua poesia, textos analisando sua obra, tendo como ponto de chegada a celebração dos seus 121 anos, junto à sua neta Fernanda Meireles em uma deliciosa live no Instagram.
    
    Cecília me faz ter a certeza de que é possível dialogar verdadeiramente com a poesia. As inquietações de ordem existencial, filosófica, social e política encontram ideias, caminhos e até uma boa conversa lendo a obra de Cecília.

   No dia de seu aniversário, 7 de novembro, muitos poetas fizeram homenagens a ela nas redes, mencionando versos, estrofes, poemas que me encantavam a cada leitura. A beleza da leitura dos bons poemas reside justamente na surpresa de sua releitura. É como se à memória o poema pudesse ser repetido como se fosse sempre a primeira vez, preservando aquele assombro da descoberta de um significado até então inexistente em nossa consciência.

    Em um exercício de formar minha própria antologia de seus poemas, me senti como uma apanhadora de estrelas no firmamento; o que escolho tem relação mais com a proximidade e a oportunidade de estar perto do que propriamente a estrela em si, pois tudo brilha!

  Deixo aqui um poema que escolhi para a “minha antologia de Cecília”, mas que também foi compartilhado por algumas pessoas na celebração de seu aniversário.

 

Inscrição


Sou entre flor e nuvem,

estrela e mar.

Por que havemos de ser unicamente humanos,

limitados em chorar?

 

Não encontro caminhos

fáceis de andar

Meu rosto vário desorienta as firmes pedras

que não sabem de água e de ar.

 

E por isso levito.

É bom deixar

um pouco de ternura e encanto indiferente

de herança, em cada lugar.

 

Rastro de flor e estrela,

nuvem e mar.

Meu destino é mais longe e meu passo mais rápido:

a sombra é que vai devagar.

 

Poema Inscrição de Cecília Meireles livro Mar Absoluto e Outros Poemas (1945)

 

                Finalizo com um belíssimo poema feito em homenagem a Cecília Meireles, de Nic Cardeal, um passeio pelas obras e suas belezas na companhia de Nic:

 

CECÍLIA

 

Hoje tu vês bem melhor¹, eu sei!

Espectros²?

Nunca mais³... ou, quem sabe... que importa?

Tuas mãos já se abriram ao infinito⁴

e podes ver o Mar Absoluto⁵ em tua eternidade!

 

Já não te fazes em solombra⁶:

não há mais nenhuma tristeza por causa da morte,

os mistérios, o tempo, as memórias, mesmo a solidão,

passaram...

Teu corpo, que te foi dado em pai e mãe

e em todos os que te fizeram⁷

em retrato natural⁸

ou em doze noturnos⁹,

também passaram...

 

Tu és a aeronauta¹⁰ que escolheu o seu sonho¹¹

e viveu a viagem¹²,

fazendo-te de ti mesma o poema dos poemas¹³!

Não. Não foste um sonho a realizar¹⁴,

foste a própria vida:

vaga música¹⁵ que se fez à imagem do mar¹⁶,

sem perder a sina da terra!

 

Tu sabes: não terminaste!

Agora vês com os teus [próprios] olhos¹⁷

que o que se diz e o que se entende¹⁸

nem sempre está no mesmo lugar!

Não há lugar... nem tempo,

o que há são as baladas para El-Rei¹⁹ para sempre entoadas...

Porque agora tu és o cântico dos cânticos²⁰

e te pões em tudo, como Deus²¹!

 

(Nic Cardeal*, poema participante da antologia 'Memorial Cecília Meireles  - Homenagem em Poesia', São Paulo: Selo Editorial Independente, 2021, p. 85/86 e 109/110)

 

Referências:

(1) “(...) Mas tu verás melhor...” (excerto do Cântico XXVI, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981).

(2) Espectros, Cecília Meireles, livro de 1919.

(3) Nunca mais... e poema dos poemas, Cecília Meireles, livro de 1923.

(4) “(...) E abre as tuas mãos sobre o infinito. (...)” (excerto do Cântico XXV, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981).

(5) Mar absoluto e outros poemas, Cecília Meireles, livro de 1945.

(6) Solombra, Cecília Meireles, livro de 1963.

(7) “Não digas: Este que me deu corpo é meu Pai. / Esta que me deu corpo é minha Mãe. / Muito mais teu Pai e tua Mãe são os que te fizeram/Em espírito. (...)” (excerto do Cântico XXIV, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981). 

(8) Retrato natural, Cecília Meireles, livro de 1949.

(9) Doze noturnos da Holanda, Cecília Meireles, livro de 1952.

(10) O aeronauta, Cecília Meireles, livro de 1952.

(11) Escolha o seu sonho, Cecília Meireles, livro de 1964.

(12) Viagem, Cecília Meireles, livro de 1939.

(13) Nunca mais... e poema dos poemas, Cecília Meireles, livro de 1923.

(14) “Não faças de ti/Um sonho a realizar. (...)” (excerto do Cântico XXIII, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981).

(15) Vaga música, Cecília Meireles, livro de 1942.

(16) “(...) Faze-te à imagem do mar. (...)” (excerto do Cântico XXII, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981).

(17) “(...) Tu verás com os teus olhos. / Em sabedoria. / E verás muito além.” (excerto do Cântico XXI, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981).

(18) O que se diz e o que se entende, Cecília Meireles, livro de 1980.

(19) Baladas para El-Rei, Cecília Meireles, livro de 1925.

(20) Cânticos, Cecília Meireles, livro póstumo, de 1981.

(21) “(...) Que o teu olhar, estando em toda parte/Te ponha em tudo, / Como Deus.” (excerto do Cântico I, in: Cânticos, Cecília Meireles, livro de 1981).

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* Nic Cardeal, catarinense radicada em Curitiba, graduada em Direito, é autora de Sede de céu (poesia, Penalux/2019) e Costurando Ventanias - uns contos e outras Crônicas (Penalux, 2021). Atualmente tem textos publicados em 44 antologias e coletâneas no Brasil, Portugal e Alemanha. É integrante do movimento Mulherio das Letras desde sua criação. Seus escritos estão compilados na página do Facebook “Escrevo porque sou rascunho”. É editora adjunta da Revista Feminina de Arte Contemporânea Ser MulherArte.


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Flavia Ferrari
[foto arquivo pessoal]

Poeta e professora da rede pública de São Paulo, Flavia Ferrari lançou, em novembro/2021,  o seu primeiro livro de poemas, intitulado "Meio-Fio: Poemas de Passagem". A obra foi editada pelo Toma Aí Um Poema, o maior podcast de leitura de poemas lusófonos. Flavia Ferrari escreve desde a adolescência, mas começou publicar seus poemas no início da pandemia, compartilhando seu trabalho nas redes sociais e contribuindo com revistas literárias digitais. Desde o princípio, os seus poemas foram muito bem recebidos pelos leitores e pelos periódicos digitais. @fmferrari

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO, POR CAROLLINA COSTA


LINGUAGEM DO BATOM VERMELHO|14


SOBRE A VISIBILIDADE DAS ESCRITORAS NEGRAS + RESENHA DO LIVRO "O QUE É LUGAR DE FALA?" DE DJAMILA RIBEIRO


Por: Carollina Costa


Novembro mal começou e parte dos algoritmos na internet já se "mobilizaram" para aumentar a visibilidade de diversos criadores de conteúdo que falam sobre racismo e negritude. Pena que esse empenho só acontece uma vez por ano.

Vendo os anúncios, em especial de escritores e artistas, comecei a me perguntar quantos autores negros tenho na minha estante de livros e, mais ainda, quantas autoras negras. Para minha vergonha, não tantas quanto deveria. Apesar de ser brasileira e do meu país ter uma maioria da população negra, percebo que nos livros e nas artes esse grupo ainda é uma minoria, talvez nem tanto de produção, mas com certeza de alcance e divulgação. Isso me lembra uma professora de teoria literária que tive na faculdade contando sua experiência durante a palestra da famosa ativista negra estadounidense Angela Davis no Brasil.

Minha professora, assim como várias outras pessoas que foram empolgadas para ouvir a palestra de Angela Davis na conferência "A Liberdade é uma Luta Constante", não esperava que Angela exaltasse uma ativista e intelectual brasileira ao dizer "Eu acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês jamais aprenderão comigo" (tempo do vídeo: 51:40). Angela não entendia porquê nós no Brasil buscávamos referências negras fora do Brasil, se ela própria tinha como referência uma brasileira. E de fato buscar fora do país estudos que expliquem o nosso país e nossas questões melhor do que nossos intelectuais é, no mínimo, curioso.

São muitas as vertentes que esse questionamento pode apresentar, mas me atenho aqui à visibilidade — ou falta de — que muitos estudiosos, artistas, criadores, escritores negros possuem em nosso país. Quando pensamos nas mulheres negras, menos ainda. Atualmente temos a Carolina Maria de Jesus, que foi "redescoberta" como escritora quase 50 anos depois de sua morte. Quando pensamos em como essas e outras escritoras, artistas e intelectuais negras conseguem visibilidade, não há como negar a importância que ainda tem a validação de uma elite intelectual qualquer ou a existência de um espaço de alcance democrático. Mesmo com algumas limitações e controvérsias, a internet cumpre esse papel de espaço democrático que, apesar do alcance dos algoritmos, ainda permite aos usuários existir e resistir no compartilhamento de artes e ideias.

Olhando cuidadosamente minha estante de livros, encontrei um que acredito explicar de forma bem didática alguns processos de visibilidade, em especial da mulher negra, é O Que É Lugar De Fala, da filósofa e ativista brasileira Djamila Ribeiro. Cheguei a escrever uma breve resenha dele ano passado para minha página pessoal do Instagram e decidi compartilhar novamente esse ano, dessa vez no espaço do Feminário, que existe e resiste como um espaço virtual para mulherências diversas.


RESENHA: O QUE É LUGAR DE FALA?, DE DJAMILA RIBEIRO

Existe um termo que tem sido muito usado atualmente que é “Lugar de Fala”. Porém, seu significado muitas vezes é mal interpretado e utilizado como desculpa para pessoas optarem pelo silêncio por julgarem não ter “lugar de fala” sobre determinado tema ou realidade.

O Que É Lugar De Fala? é um livro em formato de bolso, de 111 páginas e dividido em 4 capítulos + Apresentação e Notas. Possui diversas referências teóricas citadas de forma muito didática e bem explicada. O livro aborda principalmente a questão do feminismo negro e a predominância do saber acadêmico eurocêntrico e utiliza esses temas para desdobrar o significado e uso do termo “Lugar de Fala”. 

O que Djamila Ribeiro, filósofa e intelectual do feminismo negro brasileiro, vem nos mostrar com esse livro, ao explicar o termo que ela própria difundiu no Brasil, é que todos têm lugar de fala. Lugar de fala é de onde você vê determinada realidade, diferente de protagonismo, que é você viver determinada realidade. A consciência de que todos temos um ponto de onde observamos diversas situações é essencial para entendermos nossa força de ação sobre ela, mas nem todos enxergam a influência que têm seus lugares.

Uma citação de Lélia Gonzalez abre o livro de Djamila e convida o(a) leitor(a) para uma viagem pela história da luta das mulheres negras desde o início do movimento feminista ao surgimento do feminismo negro, seguindo para explicações do termo "Lugar de Fala" e suas formas de uso.

Acredito que esse livro seja uma leitura essencial para quem já faz muito uso do termo, sabendo pouco ou muito sobre ele. Mas para quem não tem familiaridade com o assunto e busca uma forma didática, simples e ao mesmo tempo completa para um primeiro contato com o conceito, esse também é um excelente livro!

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

MOSAICO DE IDEIAS: O DIA DE CÃO, POR SANDRA SANTOS

 

MOSAICO DE IDEIAS - SEMEANDO PALAVRAS E COLHENDO BORBOLETAS|02 

O   D I A   D E   C Ã O

POR SANDRA A. SANTOS

As viagens no metrô paulistano geralmente são longas e cansativas, principalmente para quem mora na periferia. Um período de tempo em que passamos às voltas com nossos pensamentos, dando espaço às reflexões que surgem de forma intrusa, e por vezes deslocadas. Gente demais, com espaço de menos, e cada um isolado no seu mundo.

O silêncio, a alma do trem, instala-se como uma trilha sonora invisível a inundar um cenário, onde pessoas estranhas se encontram, amontoam-se, e são forçadas a um desconfortável grau de proximidade.

Quando o vagão lota completamente, desequilibrar-se é impossível para quem segue viagem em pé, pois mesmo sem segurar o corrimão, basta apoiar-se na parede hermética de carne e ossos que involuntariamente balança na mesma onda.

Fiz essa viagem por muitos anos e tinha dificuldades com um certo tipo de passageiro: aquele que, estranhamente, presume que o outro queira prosear durante o trajeto, e qualquer um serve, desde que tenha ouvidos. Concluo que talvez a solidão incentive esse tipo de comportamento, e mesmo sem nenhum empenho de minha parte, muitas pessoas dividiram suas vidas comigo, querendo eu ou não. Por mim, viajaria calada na companhia dos meus pensamentos nada silenciosos, e mesmo à contragosto, nunca neguei atenção a quem me puxasse conversa.

Antes da febre dos smartfones, as viagens eram mais interessantes e mesmo que praticamente ninguém se olhasse nos olhos, as pessoas ainda estavam lá. Com o passar do tempo e com o avanço da tecnologia celular, elas migraram para um universo paralelo onde os olhos ficam na tela, e alma sai do corpo. Entretanto, há quem resista a essa escravidão virtual e abra um livro; eu me identifico quando encontro outro herói da resistência.

Em São Paulo as distâncias são imensas, e o trajeto de casa para o trabalho e do trabalho para casa, de forma cruel nos rouba a individualidade. Mesmo assim, insisto em amar essa cidade engolidora de gente, emprestando-lhe uma aura de poesia que só os loucos e os poetas conseguem ver.

O dia começara como outro qualquer, e estando eu entregue voluntariamente aos labirintos da minha mente, fui puxada para a realidade pela figura de um homem que, apesar de extraordinariamente comum, despertara minha atenção, fazendo com que um arrepio gélido percorresse todo o meu corpo. Havia nele algo que estava além de seu rosto magro e do seu aspecto sofrido: um sorriso cruel, os olhos frios e desprovidos de brilho. Ao invés de sentar-se, parou de frente para a porta com as pernas abertas e os braços cruzados, fitando-a como se pudesse movê-la com a força de seu pensamento.

Passei a observá-lo de forma mais atenta, e pressenti que viria confusão, pois ele parecia pronto para enfrentar a turba ensandecida que entraria na estação seguinte. Aquilo não daria certo, e ouso dizer que nada me preparou para o que aconteceu quando a porta 28-A se abriu.

Com um enorme salto e de braços abertos, o homem lançou-se para frente com uma fúria terrível. Seus olhos estavam em brasa, e ele latia, rosnava e babava-se como um cão raivoso.  Eu, que nunca vira alguém imitar um cachorro com tamanha precisão, duvidei que fosse apenas uma simulação, pois parecia que ele havia se transformado em um animal. Para mim, aquele homem acreditava ser um cachorro.

A porta se fechou e ninguém entrou. Afinal, quem se atreveria a ser atacado por um monstro feroz? Foi tudo muito rápido, surreal. A movimentação automática na plataforma havia sido quebrada com louvor, e de forma inusitada, qualquer protocolo de convivência social comum aos transportes coletivos, diluíra-se ao som de latidos.

Um silêncio mortal circulou pelo vagão, e as pessoas se entreolhavam contorcendo-se nos acentos, e creio, que como eu, os outros passageiros foram tomados pela surpresa e pelo medo. Olhares confusos buscavam algum tipo razoável de explicação para o que acabávamos de testemunhar. Antecipei seus movimentos tentando traçar uma rota de fuga, afinal talvez fosse necessário. Mantive os olhos nele até que o infeliz me fitou diretamente, e eu por instinto, baixei rapidamente a cabeça considerando que não se olha um predador nos olhos, a menos que se queira enfrentá-lo.

Ele então, calmamente descruzou os braços e passou a nos analisar, observando-nos de forma acintosa, saboreando orgulhoso o impacto que causara. Divertindo-se às nossas custas ele sabia que tinha o controle da situação.

- Ceis gostaram do Toinho? - Indagou certificando-se que era ouvido.

- Esse cão “dos inferno” é meu companheiro, e é só nele que eu confio. Não confio em ninguém nessa cidade de loucos. Cidade de loucos sim. Eu odeio essa cidade. – Frisou aos berros tentando ofender-nos.

- Já passei muita fome, e até hoje não sei o que tô fazendo aqui..., nessa cidade de merda! Cidade fedida. Eu vim pra melhorar de vida e não consegui nada. – Sua expressão ensandecida, paulatinamente, assumia os ares de um solene discurso.

- Cheguei novo e cheio de esperança. A cabeça cheia de sonho. Cheio de vontade de trabalhar... E o que eu ganhei? O que eu ganhei? – Seu olhar nos atravessava e eu imaginei que talvez fosse melhor se o ignorássemos, mas olhar para ele era irresistível, e acho mesmo que, àquela altura, queríamos e merecíamos saber o motivo daquilo tudo.

Quando a voz robótica anunciou a chegada da próxima estação, o homem-cão posicionou-se novamente em frente à porta, pronto para o momento do bote.

- Vem Toinho, a porta vai abrir..., pega tsss tss Pega! Au uau au auuuuuuuu. – Ele berrava, e o Toinho latia como um cão obediente, pronto a proteger seu tutor. Dessa vez foi mais feroz e as pessoas na plataforma recuaram estonteadas. Ninguém se arriscou a entrar, nem na porta onde ele estava, nem nas outras mais distantes.

Impotentes, assistimos o trem ganhar novamente os trilhos enquanto ele continuava sua história. Sua expressão, paulatinamente se modificava, e eu notei que o ódio dava lugar a algo mais leve que eu ainda não conseguia identificar.

- Ceis gostam do Toinho né que eu sei? Eu também... só tenho ele! Ô cachorro danado. Esse é fiel. Au! Auau! Cala a boca Toinho, fica quieto e me deixa falar cachorro danado. - Ralhou com Toinho até conseguir seu silêncio canino.

- Não vi pai nem mãe e se meus irmãos são vivos, só Deus é quem sabe. Aqui carreguei muita areia e cimento no lombo. Nunca estudei, mas arranjei “uns rabo de saia” e trepei e trepei gostoso... Até que sosseguei e casei. Casei não..., caguei. Tive “uns menino” que nunca consegui sustentar direito. Nunca roubei, nunca matei e..., o que eu ganhei? – Suas perguntas só receberam nosso profundo, e agora, consternado silêncio.

- O que eu ganhei? Fala caralho..., eu tô perguntando... – Silêncio mais profundo.

 - Tô sem emprego, tomei uns “belo par de chifre” e agora tô aqui com meu amigo Toinho. Agora só eu e ele... “Ceis” tão com medo dele ou de mim? Fala com eles Toinho! – Fala pra eles que hoje a gente saiu com vontade de morrer ou de matar... Fala pra eles que nóis num tá brincando... Au au auauau – Lembro-me de sentir um certo alivio ao observar que ele não parecia estar armado.

De estação em estação, o desconhecido desabafou, o cachorro latiu e o trem seguiu vazio.

Aquele homem, em seu dia de fúria compartilhou sua triste história, deixando que do ódio explodisse o choro, em um lamento doído e barulhento. Pouco a pouco, o medo deu lugar a solidariedade e o homem-cão agora, era apenas um homem simples pedindo socorro.

Uma espécie de conversa de boteco mesclada a uma sessão de terapia de grupo se instalou aos poucos, e não faltaram os mais variados conselhos para que ele seguisse sua vida: um partilhou sua história de chifre garantindo que com o tempo, a dor passaria; outro pregou um discurso religioso; alguém, da outra ponta do vagão, ensinou uma simpatia para tirar o encosto; a senhorinha sentada ao meu lado, ensinou um chá milagroso para acalmar a alma. Houve até quem brincasse com o cachorro..., se o Toinho fosse de verdade, provavelmente ganharia um cafuné.

Fato é que em um certo momento, alguém do outro lado do vagão gritou:

- Eita que a porta vai abrir e o vagão vai encher! Pelo amor de Deus homem, solta o Toinho!

Todos riram, e arrisco a dizer que o cachorro Toinho, agora abanava a cauda alegremente.

FIM.

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Sandra A. Santos 
é pedagoga com especialização em Educação Ambiental, ambientalista apaixonada pela natureza e pela vida em todas as suas formas. Hoje aposentada, dedica-se à literatura, escrevendo contos, romances e poesias que giram em torno do universo feminino. Com trabalhos publicados em antologias no Brasil e na Argentina.

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

VERBO MULHER: PINTOU UM CLIMA, POR HELENA TERRA

 


V E R B O   M U L H E R|05

P I N T O U   U M   C L I M A 

POR HELENA TERRA 

          

        Em março de dois mil e doze, escrevi na última página do livro O Remorso de Baltazar Serapião, do Valter Hugo Mãe, a seguinte frase: o livro mais violento que já li, violência contra a mulher, desumanização. Na época, ele me lembrou, apesar do contexto diferente, do filme Boxing Helena, aquele em que um homem vai amputando partes de sua companheira até ela ser só cabeça e tronco. Os dois, livro e filme, ilustram o que o patriarcado, apesar da ordem, humanidade e justiça que prega, acaba por criar e permitir: desigualdade e violência. E é sobre violência que quero falar, da física à psicológica, das linguagens da violência e sobre os seus efeitos, por vezes, devastadores sobre as mulheres.

        Eu já fui vítima de ambas. Meus agressores, todos homens vestidos de bons ou de bem, não importa se de esquerda ou de direita, se eleitores do Lula ou do Bolsonaro, sabem os abusos a que me submeteram e o que me fizeram. A maior parte nunca se desculpou. Nem irá. Tampouco espero que tente. São covardes até para se reconhecer como agressores. E a covardia não costuma dialogar com o arrependimento e com a decência. A covardia se entende com o orgulho, com as mentiras e as perversidades e com o mau em si. A covardia gosta de errar e, aí, acontece, como escreveu Imre Kertész em seu livro Um outro crónica de uma metamorfose, que: “Os inúmeros pequenos erros individuais criam o grande erro comum. E este erro é a nossa única verdade”,

    Ou seja, a partir de certo momento, a covardia é legitimada por quem a exerce, metabolizada como se fosse um alimento, se não do corpo, da alma. Alma, pois é, que tipo de alma os homens violentos carregam? Eis, uma pergunta que a minha racionalidade encontra dificuldade para responder. Talvez, não exista uma explicação. Talvez, citando, outra vez, o Imre Kertész: “o realmente irracional e o efetivamente inexplicável não é o mal, ao contrário: é o Bem”. Essa frase ele escreveu no Kadish por uma criança não nascida, um livro sobre a recusa de um homem a possibilidade de um dia vir a ser pai depois de ter sobrevivido a um campo de concentração nazista, experiência cruel que ele, Imre Kertész, viveu aos quatorze anos de idade.

       Aqui no Brasil, não sei se em outros países também, sair dos quatorze anos, passar para os quinze, para as meninas, costuma ser uma data carregada de simbolismo e de cobranças, uma espécie de marcador de crescimento físico e emocional. Bailes de debutantes e festas, apesar dos custos aviltantes que geram, ainda acontecem. Orienta o patriarcado, principalmente na classe média, que as jovens sejam vistas então como mulheres. Portanto, nada mais natural que elas desfilem e se exibam para os rapazes e mesmo para os homens com as idades de seus pais ou avôs. Alguém há de, um dia, escolher uma para casar ou ter ao lado se, digamos, “pintar um clima”. E lado, é bom que fique claro, trata-se de um eufemismo, porque estamos todas cansadas de saber em que lugar, de que jeito e sob que condições nos querem.

     Condição, aliás, é uma palavra usada por abusadores e opressores. “Minha condição de homem, sua condição de mulher, você não tem condições disso e daquilo, você está sem condições”, fazem parte do repertório da violência verbal masculina. Violência verbal não é só palavrão como alguns pensam. É também aquela que se constitui por meio de palavras mais sutis ou de seus silenciamentos e que ocorre, em geral, nos espaços domésticos, entre quatro paredes. Aquela, por exemplo, que, depois de você ter faxinado, no sábado de manhã, a casa de seu namorado porque ele pouco se importa com a urina derramada sobre o assento do vaso sanitário ou do piso do banheiro, explode sobre o que ele entende como excesso ou falta de peso em seu corpo, sobre uma ideia que você tem e por aí vai. E vai longe. Depois da ofensa verbal, não é improvável que surja a física. O patriarcado promove a educação pela força e pelo medo. Como os torturadores da ditadura militar, gosta de enfraquecer a autoestima da vítima antes de dar o bote.

      Exemplos e estatísticas de bote contra as mulheres na primeira metade do ano de dois mil e vinte e dois depois de Cristo neste nosso país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza:

1.  Segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, 31 mil casos de violência doméstica foram registrados. Você que me lê, sabe dizer, assim de cabeça, o número do canal de denúncia? E se sabe, de fato, liga para ele quando sofre um ato violento ou percebe que uma mulher está sendo agredida? 

2. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, os casos de estupro ultrapassam os 66 mil, sendo que 61,3% das vítimas têm menos de treze anos de idade e em 79,6% foram estupradas por um conhecido.

     E daqui, diante da violência contra meninas, não tenho como não lembrar do romance Lolita ou A confissão de um viúvo de cor branca, do Vladimir Nabokov, em que o padrasto de Dolores Haze, Lolita, Lô para os ainda mais íntimos, tenta se inocentar da violência psicológica e sexual para com a enteada, fazendo de conta de que não há dominação e verticalidade de experiência e de tudo entre eles. Um homem perverso. Pedófilo. Sendo que, sob sua ótica, o problema não está nele. Lolita é que é irresistível e Lolita o quer: "Na verdade, talvez jamais teria existido uma Lolita se, em certo verão, eu não houvesse amado uma menina primordial”, ele declara, como se o suposto afeto por alguém da idade de seu primeiro amor tivesse congelado o seu envelhecimento e o liberasse para manipular e abusar. “Liberdade para escravizar melhor os outros”, como Octávio Paz diz, se referindo às exaltações do Marquês de Sade no livro Um mais além erótico, e como alguns homens fazem, transformando meninas e mulheres em seus brinquedos.

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt).

sexta-feira, 7 de outubro de 2022

VERBO MULHER: EU VI A MULHER PREPARANDO OUTRA PESSOA, POR HELENA TERRA



V E R B O M U L H E R|04

EU VI A MULHER PREPARANDO OUTRA PESSOA

POR HELENA TERRA 


        “Não existe verdade inferior. E, se eu não relatar essa experiência até o fim, estarei contribuindo para obscurecer a realidade das mulheres e me acomodando do lado da dominação masculina do mundo”, Annie Ernaux diz em seu livro O Acontecimento. Annie Ernaux, para quem ainda não sabe, é a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Eu, até outro dia, falo do mês de agosto, nunca tinha lido nada dela. Eu gosto da palavra agosto. Separa o A e muda o sentido! E gosto muito do livro Luz em Agosto, do William Faulkner, aquele em que uma jovem, em um estado interessante, caminha descalça por uma estrada, usando um vestido comprado por reembolso postal.

        Eu gosto da palavra estado e do verbo Estar. Quando a gente começa a estudar inglês, começa com o verbo To Be. Eu comecei aos seis anos e, na época, achei estranho um verbo representar dois da nossa língua. Como pode ser Ser e Estar ao mesmo tempo, eu me perguntava.  Até hoje há muitas coisas que eu me pergunto e acho estranhas, incompreensíveis mesmo, sendo uma delas a maternidade, e eu sou mãe. Mãe duas vezes embora eu tenha um único filho. O primeiro se tornou uma espécie de segredo do meu corpo. Então, sendo segredo, o melhor a fazer é falar sobre o livro O Acontecimento.

       E de que ele trata? Também de maternidade. No caso, da gravidez indesejada de uma jovem em busca de alguém que a ajude a abortar. Sim, ela não quer ser mãe. Aliás, muitas mulheres não querem. Muitas mulheres geraram e pariram filhos por obrigação. Muitas mulheres inclusive morreram dando à luz ou a evitando. Dar à luz é uma expressão que me intriga ou, talvez, incomode. É, me incomoda. E penso que não é pelo contraponto de uma outra vida estar no que chamam de escuridão de um útero. Me incomoda porque ela parte da premissa de que nós, as mulheres, temos de dar. Dar o tempo todo. De tudo. De sermos a doação em pessoa, custe o que custar, mesmo quando a vida não está correndo conforme o planejado ou, vai, está. A vida, às vezes, por incrível que pareça, corre bem. Durante as minhas duas gestações, eu vivi em um mundo cheio de estrelinhas. E por quê? Por uma série de fatores, sendo o mais significativo a atuação impecável do pai dos meus bebês.

       Pois é. O pai do meu filho, nesse quesito, merece um parágrafo. O pai do meu filho, desde o instante em que soube que a nossa família iria aumentar, moveu mundos e fundos para que eu me sentisse feliz, zelando pelo meu bem-estar físico e emocional como se ele próprio tivesse adentrado minha natureza, como se fossemos, naqueles meses, a mesma pessoa. E, de certa forma, fomos. Os batimentos cardíacos dele e o meu se uniram em um intenso estado de desejo, nos conduzindo a uma forma de paixão e gozo que desconhecíamos. Grávida, mais do que em qualquer outra fase, fui desejada. Grávida, o pai do meu filho e eu nos tornamos, verdadeiramente, um homem e uma mulher. 

         Um dos meus filmes favoritos é o Um Homem e Uma Mulher, do Claude Lelouch. Não é fácil ser um homem e uma mulher, viver a parceria de um homem e uma mulher. Quem viu o filme sabe do que estou falando. E não é simples, para um casal, manter-se um homem e uma mulher durante a gestação de um filho. Na verdade, é um desafio. Alguns homens falham diante da exuberância de uma barriga. Os piores homens. Que tipo de homem trai a mulher que traz o seu filho no corpo?

        Uma mulher grávida, se a gente parar para pensar, é como um teste de caráter e de honra. A gravidez de uma mulher revela, em alta escala, o caráter de quem a engravidou e a presença ou a falta de empatia com as transformações do corpo feminino.  Por detrás de traições, sabemos, existem sempre argumentos, mas, por detrás das desse tipo, o que há é a indiferença e, por que não dizer, a crueldade de homens invejosos e egocêntricos. Poucos. De acordo com uma pesquisa encomendada pelo Ashley Madison, o maior site de relacionamentos extraconjugais desse planeta redondo, no momento da gestação de um filho, a maior parte dos homens gostam de estar com suas mulheres. Estar é mesmo um verbo interessante.


Ana Carolina - Força Estranha - Elas Cantam Roberto Carlos

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

VERBO MULHER: HELENA TROUXE O AMOR, POR HELENA TERRA


 

V E R B O M U L H E R|03

HELENA TROUXE O AMOR

POR HELENA TERRA 


        Outro dia morreu a rainha da Inglaterra. E, nas minhas redes sociais, uma boa parte dos posts e comentários foram dentro do padrão afetivo que rege o Brasil de uns anos para cá, ou seja, dentro do discurso de ódio atribuído apenas à Direita do país. “A armadilha do ódio é que ele nos prende muito intimamente ao adversário”, escreveu o Milan Kundera. Portanto, o ódio não é uma boa ideia. Eu, por sorte, não tenho uma natureza convergente com hostilidades e grosserias. Apesar de vir de uma família, usando um eufemismo, barulhenta, não fui socializada por pais que queriam a cabeça de A ou o coração de B e “que tudo o mais vá para o inferno”. Queriam paz e respeito entre nós, os filhos, entre si e com a sociedade em que vivíamos, o que, de modo algum, significava cegueira, alienação ou conivência com a época. Eu nasci, fui criança durante o período militar numa cidade pequena em que havia um batalhão, e os meus pais, diferentemente de muitos outros, abrigaram em nossa casa todos os jovens chamados, pelo sistema, de subversivos que puderam. Assunto importantíssimo, mas que agora não vem ao caso, porque esse texto é para falar sobre o amor. 

      Sim, o amor, esse sentimento, patrimônio emocional, sonho tão almejado mundo afora. Não que eu o conheça e domine e não que eu não o conheça e domine. Estou, aludindo ao título da obra do Marcel Proust, ainda em busca do amor não perdido. E digo não perdido porque a ideia de tê-lo encontrado e tê-lo deixado ir me é insuportável. O amor, dizem, quando recíproco e verdadeiro, se enraíza. Não sei. Sou solteira. Não. Sou divorciada.  Vinte anos passei casada. E não foi fácil dar por encerrado esse tempo e vínculo. Mas enfim consegui. Conseguimos, mesmo que às vezes nos oferecendo um copo de cólera.

       Um Copo de Cólera foi o primeiro livro que eu li do Raduan Nassar. Para quem não o leu, fazendo breve sinopse, ele gira em torno de uma briga depois de uma trepada fenomenal. Serei eu censurada por escolher essa palavra? Julgada por trepada não soar elegante na boca de uma mulher? Não que eu não tenha sido julgada antes, mas, desde que o senhor que está ainda na presidência dessa república recebeu sua faixa, sem sombra de dúvida, os julgamentos sobre o que falo, escrevo, visto, canto, faço etc. aumentaram, duplicaram, multiplicaram-se. E esses julgamentos vieram de todos os lados, inclusive dos homens da Esquerda, os homens pelos quais nutro mais simpatia. Ou nutria. Eu já não sou a mesma. Nunca fui a mesma. Sempre vivi dentro do Livro do Desassossego, do Fernando Pessoa, ou melhor, do Bernardo Soares, apesar da minha natureza pacienciosa e estável. 

       Mas voltemos ao livro do Raduan Nassar. Ela, a protagonista, é, segundo o homem que a ama, uma “jornalistinha de merda”; e ele, segundo ele mesmo, não passa de um “biscateiro graduado”. Autodefinição que não o constrange. “Confesso que em certos momentos viro um fascista, viro e sei que virei, mas você também vira fascista, exatamente como eu, só que você vira e não sabe que virou; essa é a única diferença, apenas essa”, ele, lá pelas tantas, diz. E então aqui me pergunto se o amor aceita também raiva, humilhação, violência? E mais, como eu sei que amo alguém? Hoje de manhã, o Marcelo Branco, um amigo, aqui do Sul, "legado da não miséria" de um relacionamento que vivi, me enviou um vídeo em que a psicanalista Maria Homem fala sobre esse tema.

      Diz a Maria Homem: “se você faz essa pergunta é porque a resposta é não, você não está amando ... Por quê? Porque quando você começa a se interrogar, começa a racionalizar, começa a medir os prós e contras, os defeitos, mas também as qualidade, veja bem, não gosto muito, mas, bom, minha vida é confortável ... quando você entra nessa posição que, em última instância, é absolutamente moderna, utilitarista, que vai fazer a mensuração do maior bem possível para o menor mal possível, é que aí você já está na equação utilitária sobre as relações e os pactos sociais.” 

       E o que eu penso sobre isso? Marcelo me fez essa pergunta. De fato, estabelecer uma união pautada em benefícios causa estranheza. Sua presença me faz bem, não faz bem, faz bem, gosto disso e daquilo, não gosto, esse bem-me-quer-mal-me-quer do cérebro e do ego me incomodam e tocam um alarme. Pode ser falso, é claro. No livro O Amor Nos Tempos Do Cólera, do Gabriel Garcia Marquez, Florentino Ariza esperou pelo amor de Fermina Daza durante cinquenta e nove anos, dois meses e quatro dias depois de ter sido dispensado por ela que não o amava ou amava e não sabia. Pois é. E haja paciência! O bom é que ele não esperou sentado. Tampouco ela. Fermina, na cama do marido que não a amava, mas a queria bem. O que é esse tal de querer bem?

      “Ele tinha consciência de que não a amava. Casara-se porque gostava da sua altivez, sua seriedade, sua força e também por um tipo de vaidade, mas enquanto ela o beijava pela primeira vez teve a certeza de que não haveria nenhum obstáculo para inventar um bom amor”, o narrador revela a respeito do homem a quem ela, usando um clichê, entregou o coração. Florentino, por sua vez, esperou solteiro, conhecendo outras mulheres. Dezenas, ou terá sido centenas? Faz diferença a quantidade? Sexo não é amor embora o favoreça. E favorecer também não é o suficiente. Se não me engano, Florentino anotava em uma caderneta as tentativas de substituir Fermina, ciente de que não era possível substituí-la mesmo quando ele se entregava a pequenas paixões. Substituir. Talvez o amor desconheça esse verbo, seja exatamente essa impossibilidade. Não sei. Carlos Drummond de Andrade disse que "amar se aprende amando".

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Helena Terra publicou os romances A Condição Indestrutível de Ter Sido (Editora Dublinense, 2013) e Bonequinha de Lixo (Editora Diadorim, 2021). Organizou, com o escritor Luiz Ruffato, a antologia Uns e Outros (TAG Livros, 2017). É coautora na novela Bem que Eu Gostaria de Saber o que é o Amor (Editora Bestiário, 2020, com o ator e escritor Heitor Schmidt). 

 

 

 

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

NA TRILHA DO FEMININO: AMAR - ELO QUE FAZ A COR DAR, POR RILNETE MELO


N A   T R I L H A   D O   F E M I N I N O|04

 AMAR - ELO QUE FAZ A COR DAR

Por RILNETE MELO


"Marisa,  26 anos, universitária, teve fotografias íntimas divulgadas pelo seu ex-namorado. A jovem terminou um relacionamento de 8 meses e  Túlio, seu parceiro inconformado, chegou a ameaçá-la de morte. Marisa fez o boletim de ocorrência face à ameaça e, então Túlio vazou as fotos da sua ex-amada nas redes sociais, em sites pornográficos e perfis falsos do Instagram.  Tal fato quase leva Marisa a tirar sua própria vida."

O relato acima é matéria de jornal e os nomes são fictícios,   mas a realidade sobre a exposição imagética feminina no ciberespaço é preocupante, pois tem levado muitas pessoas ao suicídio.


Pegando carona nesses meados de “setembro amarelo", eu faço uma breve reflexão sobre o assunto,  pois a violência contra as mulheres na Internet tem gerado uma onda de suicídio e tem me  incomodado muito. Há alguns meses, a filha “trans”  de uma amiga minha, sofreu bullying e injúria através de comentários em uma rede social, chegando a cortar os pulsos.  Outra filha de uma conhecida,  teve um vídeo intimo viralizado no ciberespaço e tentou envenenar-se com medicamentos.... São muitos os casos!  Vamos fazer valer a campanha de prevenção ao suicídio que visa a conscientização sobre esse grave problema e formas de evitá-los. Fiquemos atentas para o sinal de alerta e vigiai o espaço virtual!

Sou consciente que  existe uma dificuldade de controle das novas tecnologias,  mas convenhamos que a existência de leis, como a  13.718/18 que tipifica crime de divulgação de imagens, não é uma condição para erradicação desses e outros crimes que acontecem no universo virtual feminino, pois o patriarcado machista não nos exime sequer das violências fisicas/domésticas. O que se observa é que o estigma de inferioridade e subordinação social da mulher é gritante nesse tipo de violência, e tal crime configura difamação,  violência psicológica e injúria. O que se recebe como bônus é simplesmente a retirada do conteúdo do provedor, e uma pena (se tiver) de doação de cestas para o agressor, mas a dor da vítima permanece, o estrago na honra e na alma é irreparável  e a mente fraca...  ah! Essa  é  capaz de apagar o brilho do sol!

Estejamos atentas queridas leitoras, Mães,  adolescentes,  jovens mulheres ou qualquer gênero que possa sofrer esse tipo de violência, pois a vulnerabilidade do ciberespaço é algo extremamente perigoso.

Tenho um perfil no Facebook com mais de 4.000 seguidores, por ser escritora, às vezes aceito solicitações de perfis masculinos, com interesse em comum (literário), porém já sofri vários assédios provenientes de postagem de uma simples foto da minha imagem. Ou seja, não posso me dar ao luxo da prática da auto estima? Simplesmente porque sou mulher? Sei que pode existe crimes cibernéticos contra a figura masculina, mas os maiores índices de crimes praticados no ambiente on-line são contra nós mulheres, o que tem nos levado a uma grande  insegurança ao navegarmos no ambiente virtual, onde somos vítimas de uma misoginia desenfreada.

E falando de misoginia, eu já cheguei a uma conclusão que a  Vagina é o órgão mais poderoso desse universo. Sim!  Uma simples anatomia do corpo  é capaz de trazer desigualdades, revolta, insegurança,  agressividade e por aí vai... Como bem disse Simone de Beauvoir “Ninguém, na frente das mulheres,  é mais arrogante, agressivo e desdenhoso do que o homem inseguro da sua própria masculinidade.”

É  hora de darmos um basta nessa  violência sem limites que está interrompendo vidas. Vamos tirar da teoria a   sororidade, vamos nos dar as mãos,   unir forças e lutar para fazer valer a lei ‘Carolina  Dieckmann" e muitas outras que dormem nos arquivos dos tribunais. É hora de soltar a voz, seja através da poesia, música  ou qualquer meio de comunicação e/ ou movimentos coletivos.

O nosso blog “Feminário Conexões” é um dos grandes aliados nessa luta, pois tem sido um importante espaço virtual para deixar ecoar esse grito, uma espécie de  carinho no que se refere  às  causas femininas, onde, através da poesia,  crônicas  contos e outros textos, temos abordados assuntos que traçam rotas, estratégias e articulações em torno das questões que dizem respeito às nossas vivências e pautas enquanto mulheres.  

De acordo com o relatório da Febrasgo (Federação brasileira de ginecologia e obstetrícia, o número de suicídios femininos no Brasil cresceu de 45,7% entre 2009 e 2021 e muitos desses casos foram provenientes de crimes cibernéticos. E essa dor é nossa. Essa dor é minha, pois veste a minha pele e aperta minha alma,  e embora com um misto de insegurança e impotência, eu grito e não desisto. A poesia é minha arma,    pois como escreveu Gabriel Celaya  em “ Cantos Íberos”, “A poesia é uma arma carregada de futuro”. É através da poesia que ouço meus ecos e mato os meus demônios todos os dias. A dor do suicídio sangra nas minhas entranhas,  pois já andou rondando a minha vida... Eu considero-me uma mulher gigante, embora com 1,50m de altura e uma dismetria na perna direita, eu me apoio na “esquerda”  e sigo pisando as pedras no meio do meu caminho. É sem papas na língua que alcanço essa realidade que me inquieta. Eu solto o verbo no papel por todos, todas e todes que sofrem com esse caos e essa barbárie que caminha o nosso país nesse desgoverno misógino, racista e que tenta cercear a nossa liberdade de expressão.

O momento é de expungir essa sociedade de “machos" e fazer um apelo aos  que transitam no nosso espaço presencial e virtual: Expulsem de vocês essa insanidade do patriarcado machista, tornem-se homens elegantes e lembrem-se que pelo sacrifício divino viestes ao mundo através de uma mulher, portanto deixem-nos viver em paz. Deixo para alguém, que  em algum momento possa ter tido um pensamento suicida o Poema “Eco", de minha autoria:


ECO


Presa no porão escuro

das dúvidas atormentadas,

quando em desatino

desatei o nó em palavras

desfiz  o suicídio...

 

Na ponta do lápis

o socorro em tessitura

Agarrou o papel

 

Com as lágrimas do ontem

E o pó da agonia ,

Eu fiz meu café

ferver na poesia,

Exalando o socorro

dos dias pósteros

Em que transcorria

 

Não sei em qual tempo

(Talvez setembro...)

Amarelo

Tempo que não nego

Ao ouvir em meus versos

Quase em decesso


A voz

Numa  rima atrevida

Em eco:

Vida

Vida

Vida

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EDITAL ENLUARADAS II TOMO DAS BRUXAS

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