quinta-feira, 6 de outubro de 2022

LIÇÕES DE SILÊNCIO: DEUS ME DEFENDA E GUARDE, POR RITA ALENCAR CLARK



LIÇÕES DE SILÊNCIO|04

POR RITA ALENCAR CLARK

DEUS ME DEFENDA E GUARDE  


“Deus me defenda de mim e da maldade de gente boa, da bondade da pessoa ruim…” Juliette ressuscitou a música de Chico César pra nos dar voz, nós os desencantados esperançosos. Da maldade de gente boa é fácil se safar, basta um pouco de malandragem. Mas da bondade de gente ruim… dessa precisa ter corpo fechado.

Um dia, lá no meu passado, conheci Wanda, uma menina amiga da minha filha, era vizinha de condomínio, brincavam juntas no play. Wandinha gostava de chocar a todos, fazia perguntas indiscretas, abaixava a saia das amiguinhas e cravava a cueca dos meninos daquele jeito cruel e sádico. Ela ria… ria quando todos a reprovavam! Um dia deu um tapa na cara da minha filha, assim sem nenhum motivo, a mãe, lívida ao meu lado, nada fez. Corri com ímpetos de vingança, mas pude me controlar a tempo de um desastre… “Você tá louca, garota?” “Ela me provocou!” A filha em estado de choque. Wandinha sorria com o canto da boca enquanto fazia escorrer uma lágrima falsa daqueles olhos de gente ruim. Olhei para a mãe, enquanto abraçava a filha em prantos, um olhar absorto como se fosse surtar ou sair correndo. “Wandinha, meu bem, você não pode bater nos amiguinhos…” Olhei firme na pupila dos olhos da garota e vi uma escuridão profunda, por instantes correu-me um calafrio, mas retomei o duelo, trêmula por dentro, nada consegui dizer. Tive pena da mãe. Não era um olhar de criança aquilo, eram olhos de gente velha, ruim e dissimulada.

Tem gente assim. Índole, espírito ou maldição? Não sei, sei que Wandinha muitas vezes fingia ser boazinha, gostava de mim a peste, acho que fui das poucas que a enfrentei. A questão é que gostava de me contar seus planos para o futuro. “Tia, não vejo a hora de crescer, sabia?" "Por que Wandinha?... tão bom ser criança." "Bom nada! Bom é ser adulta… quando eu crescer vou ter dois maridos! Um pra me dar as coisas, outro só pra namorar mesmo!" "Como?!" Ela ria, gostava de chocar, como já disse, continuava nos delírios…"joias, carros pelo menos dois dos bem grandes, viagens e claro, roupas! Muitas roupas!"...e saltitava rodopiando, rindo, talvez, da minha cara. O queixo já estava deslocado neste momento, não podia acreditar na desenvoltura criativa daquela pequena ambiciosa. Os olhos de velha ruim cravados nos meus…"Você também tem dois maridos, tia?" "Não, Wandinha, no momento tenho nenhum mesmo…"  "Ué então como você faz pra viver, tia?!"  "...eu trabalho, Wandinha, eu trabalho." "Coisa mais sem graça…Deus me livre!" Os olhos da anciã reviraram em desaprovação.

Não sei por que fui lembrar dessa história agora… deve ser pelo fato de estar passando por uma tempestade financeira. Não, pior, bem pior, um terremoto de magnitude 4, talvez, qual a escala máxima?! Bom, esse estado de coisas que me encontro trouxe Wandinha de volta ao meu universo criativo, assim como a canção de Chico César renascida na voz de Juliette, aliás Chico deu uma declaração linda outro dia onde dizia que colou a foto de Juliette na porta de sua geladeira pra nunca esquecer de agradecer quem ajudou a colocar comida de volta dentro dela. Gente, quase chorei… Gratidão, que palavra delicada. Obrigada Chico, obrigada por me reacender a chama da gratidão dentro da alma. Mas, voltando à Wandinha, a garota dos olhos de velha ruim… hoje, deve ter mais de 30 anos, idade da minha filha mais velha, qual terá sido seu destino? Confesso que deu vontade de fantasiar um pouco a respeito.

Terá conseguido realizar seus delírios de ter dois maridos? Carros? Viagens? Se ela hoje está feliz… Nunca saberemos.

Wandinha nos afrontava, nos incomodava com suas tiradas, penso eu porque, não havia muito tempo ainda, lutávamos pelas causas feministas e pagávamos alto preço pela liberdade, afronta e ousadias. "Bobagem, bobas são vocês sonhando com essa tal de aposentadoria!!"...Deus, ela não nos dava trégua! Continuando, a verdade é que convencidas e doutrinadas para sermos independentes, autossuficientes, mães responsáveis, heroínas da aldeia etc. e tal, corremos nós o risco (vejam só) de acabar, uma hora dessas, cheias de certezas insólitas, numa noite de tempestade qualquer, uma taça de gin tônica na mão, com a testa colada à janela e pensando: "...e se a Wandinha estivesse certa, afinal?" Bom, agora, meu bem, agora Inês é morta! Tá feito, e bem feito! 



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Rita Alencar Clark
[foto arquivo pessoal da autora]
Rita Alencar Clark, professora de Língua portuguesa e Literatura, poeta Amazonense, contista, cronista, ensaísta, revisora e curadora. Membro do Clube da Madrugada (AM) desde 1987, membro fundador da ALB/AM- Academia de Letras do Brasil/Amazonas e da ACEBRA-Academia de Educação do Brasil. Colaboradora do Blog Feminário Conexões e dos Coletivos Enluaradas e Mulherio das Letras, com participação em diversas coletâneas e antologias poéticas, sempre representando o Amazonas. Tem dois livros publicados: "Meu grão de poesia" e "Milton Hatoum - Um certo olhar pelo Oriente-Amazônico".

2 comentários:

  1. Maravilha! Está difícil manter o corpo fechado! Que Deus me proteja...

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  2. Sim, muito difícil...mas espertas e sabidas que somos daremos conta do recado, na luta, sempre! Beijos 🌻

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