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sábado, 2 de janeiro de 2021

Miniconto Poético: Paredes




Miniconto/01

Por Lucirene Façanha


Seus gemidos roucos chegavam através da parede. Se afastou da abertura, disposto a levar as últimas consequências seu protesto.

Escutou seus passos lentos, regulares. Nada mais havia a argumentar.

Não podia desfazer a história ou apagar os erros.

Na porta, estacou.

Levantou a cabeça.

Como num filme: o inicio idílico louco de paixão exacerbada. As travessuras. Depois: As viagens. Ausências. Inferno astral.

Olhou em frente. As palavras se movem. Reescreveria sua história. O horizonte além daquelas paredes se abriria para um recomeço.

E foi.



 

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

A ELAS COM AMOR: Um mar em Maria*

 

Por Marta Cortezão

 

Olhava fixamente aquela linha que se esticava longe separando mar e infinito horizonte. Estar ali lhe remexia de uma maneira especial por dentro e, ao mesmo tempo, lhe causava uma estranheza tamanha. Nunca esteve naquele lugar, contudo a sensação era de que estivesse estado sempre. De alguma forma sentia que esteve ali, não saberia explicar. Não tinha respostas, nenhuma, apenas sentia e entregava-se a esse prazer de sentir. Com setenta e nove anos nas botinas da vida e estava ali por primeira vez redesenhando em seu caleidoscópico paneiro de recordações (tão distantes, tão vagas, mas tão vivas...) o caminho que seus avós Francisco e Maria Jesuína haviam feito, desde aquela provinciana e pequena cidade de Messejana, no Ceará (agora um bairro) até o perdido Eldorado do Norte. Tempos duros, de fome, de estradas, de chão de terra, de caminhos incertos, de constantes perigos, de muitas dificuldades. Sua família foi buscar e plantar esperança no Norte. Primeiro veio o avô Francisco, arranjou trabalho duro para uma vida dura nos seringais do Acre e com o passar do tempo, com muita luta diária, prosperou e mandou buscar a família, “a vovó, meus tios e tias e minha jovem mãe”, pensou Maria Arlinda com o olhar caminhando sem pressa pela linha comprida que contornava o horizonte que tinha diante de si.

A família reunida foi uma grande alegria para todos, podia ver e contemplar o sorriso cunhatã de sua mãe se desenhando naquele infinito azul. “Como seria maravilhoso estar presente naquele momento não vivido!” e continuou pensando no amor que não pode receber do avô, que morreu de uma febre constante, sem fim, talvez malária, o corpo só esfriou com a morte mesmo. O tio Jeremias, que num descuido trágico, foi alcançado por uma árvore que lhe ceifou infante vida... 

A ausência do avô trouxe tantos problemas. Maria Jesuína não pode continuar no Acre, sentiu-se só sem saber que rumo tomar; sem o conhecimento necessário dos negócios que tinha o marido, viu-se obrigada a vender as poucas propriedades; o peso da viuvez lhe saiu caro, a sociedade não perdoa (nem gostava de pensar nisso, mas a vida foi assim de dura com as mulheres, sempre). Portanto, Jesuína não viu outra saída: vendeu tudo e foi viver com os filhos na Ilha do Ariá, nas proximidades do município de Coari, dentro do rio Coari Grande, nos confins do Amazonas, onde vivia o irmão Alberto que, dentro do que pode ser, foi o melhor e mais importante apoio que Jesuína pode ter, do seu jeito peculiar de ser. “E a vida seguiu seu curso como esse mar, gigante feito dragão, que agora mesmo desfila bem diante de mim”, pensou.

Tanta gente que a vida não lhe permitiu abraçar! Essas lembranças não lhe visitavam com dor, mas sim com amor, o amor que guardou para o avô, para o tio, para todos aqueles que se foram sem que a vida lhe pudesse presentear com o prazer da convivência, um amor que cresceu em seu peito e brotava em momentos especiais como aquele que estava vivendo agora e que lhe enchia de uma forma especial de sentir o pulsar da viva em seu peito. Veio em sua mente o rosto de sua mãe Ana Maria, que já há alguns anos havia feito a travessia, essa que todos faremos e para a qual nunca estamos preparados. Ana Maria era dona de um olhar severo, mas que no fundo escondia uma docilidade cor de mel. Era uma mulher sensível que aprendeu ser dura por necessidade e que travou muitas lutas para ser dona não apenas de seu olhar, mas também de seu próprio destino. Agora Maria Arlinda ali – com seu olhar feito um passarinho pousado no aconchegante ninho, naquela imensidão azul de céu e mar – era um pêndulo que se balança agarrada no fio do horizonte, sentia-se leve balanceando entre as fendas do presente e passado, do passado e do presente, tudo se entrelaçava e, ao mesmo tempo, tudo era cada vez mais nítido... Era ali que queria estar, era ali o lugar perfeito para sentir...

Deu-se conta de que aquele azul que banhava seus olhos era o mesmo azul que fazia morada nos olhos de sua avó Jesuína, em especial, quando ela lhe contava sobre as histórias vividas junto a seus pais e irmãos em Messejana, naquela casinha pobre, naquela rua muito pobre de barro batido, naquele chão de muita pobreza.

Sentia os pés na areia fofa e úmida de uma entre tantas praias de Fortaleza... sentia os pés no mundo e o coração afagava a alma. "Existe um mar aqui diante meus olhos e há outro dentro de mim", constatou Maria Arlinda.

*Texto dedicado às mulheres de minha linha materna.
 


AUTORA DA VEZ: “ETERNIDADE X FINITUDE”, DE MÁRCIA MACHADO - POR HYDELVÍDIA CAVALCANTE


AUTORA DA VEZ/02

“ETERNIDADE X FINITUDE”, de Márcia Machado


Por Hydelvídia Cavalcante


Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

Será?

Sou estranha por não me apoquentar com isso?

A exemplo de Drummond,

“O presente é a minha matéria...”

Se a espiritualidade

simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

isso me incomoda.

Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...”

Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

boa, má?

Certa, errada,

ora sim, ora não

antíteses me (in)definem...

Antes de iniciar nossa apreciação, precisamos observar que, como linguista, faz anos que não nos dedicamos à análise de obras literárias. Assim sendo, pedimos desculpas por não enveredarmos pelas trilhas do saber literário que ora não temos condições de apresentar. 

O título do poema de Márcia Elizabeth Machado nos chamou atenção, logo que iniciamos a leitura. Eternidade x finitude são palavras que denotam, para nós, situações opostas, pois o que é eterno não tem fim. A eternidade se aliaria, portanto a uma situação de infinitude. Percebemos, de antemão, mesmo antes da leitura do texto, que o poema se envolveria com os aspectos dualísticos que induzem a uma análise da vida.

Duas características expressam, sobremaneira, os diferentes sentidos do poema Eternidade x finitude: a intertextualidade e as marcas literárias da Escola Barroca. A intertextualidade se faz presente não apenas quando menciona o discurso já dito de alguns escritores brasileiros, mas também quando a autora expressa o seu próprio sentimento a respeito do tema. Quanto às marcas literárias da Escola Barroca, são facilmente percebidasas características de dualidade, contraste, inquietação, sentimento de inferioridade, pessimismo, ênfase na dualidade matéria e espírito, dúvidas, questionamentos, religiosidade, dubiedade de sentidos e as figuras de linguagem como metáforas, antíteses, paradoxos, hipérboles e interrogações. Duas características que marcaram a poesia barroca também se fazem presente no poema em análise: o cultismo ou gongorismo que se evidencia em um jogo de palavras, criação literária do poeta espanhol Luiz de Gôngora; e o conceptismo ou quevedismo que ressalta o jogo de ideias, uma criação do poeta espanhol Francisco Quevedo.

Para melhor explicitar as afirmações mencionadas, vamos à análise considerando os versos que compõem o poema:

1) Corpo, matéria finita, alma revive em outros corpos...

    Será?

São versos que denotam dúvida, inquietação. Há uma certeza de que o corpo, por ser matéria, um dia acaba, deixa de existir, transforma-se em pó.  Essa certeza se manifesta ao lado de uma dúvida, de uma inquietação, o que denota uma contradição, um contraste. Inquietação e contraste são marcas literárias do Barroco.  A inquietação se mostra trazendo nas entrelinhas a dúvida: acredito ou não acredito na reencarnação? A autora em um único verso e com apenas uma palavra interrogativa, será?, demonstra a dúvida com relação ao seu próprio questionamento: o espírito retorna em outro corpo físico? O fato de a interrogação se encontrar sozinha, isolada, em um único verso, também denota uma aflição, um questionamento, uma inquietação de cunho pessoal. No entanto, sabemos que essa inquietação toma conta da mente de muitas pessoas: acreditar ou não acreditar no processo de reencarnação, aceitar que existe vida após a morte ou acreditar que o espírito só anima apenas uma vez um corpo físico. Os questionamentos, as interrogações fizeram parte das inquietações de escritores do Barroco, como Gregório de Matos Guerra cujas poesias se caracterizam pelos contrastes e pelas contradições.

2) Sou estranha por não me apoquentar com isso? 

Este verso nos diz o seguinte: posso até acreditar, mas prefiro não refletir a respeito. Também expressa uma contradição: não querer se apoquentar já admite existir um questionamento, uma inquietação a respeito do assunto. A expressão “sou estranha ”traz a voz de quem sabe haver outras pessoas que se importam em querer saber sobre a vida do espírito, após a morte do corpo. Mas, por que eu também preciso me preocupar com isso? Essa interrogação presume que há uma preocupação com o que outras pessoas acham em relação a essa atitude de não querer se apoquentar com isso. Na vida, este comportamento é um fato real. Sofremos muito, pensando no que os outros vão achar de nossas opiniões, ideologias e de nossos valores. Por incrível que pareça é o que pensamos que os outros pensam de nós mesmos que nos deixam apoquentados. Bakhtin (2006 [1979], p. 342) nos diz que “eu não posso passar sem o outro, não posso me tornar eu mesmo sem o outro; eu devo encontrar a mim mesmo no outro, encontrar o outro em mim”.O ser humano não consegue viver sem esse outro que lhe apoquenta a vida. 

Há também um jogo de ideias entre o verso “prefiro não me apoquentar com isso” e os versos anteriores: “alma revive em outros corpos... Será?”. Esse jogo de ideias refleta um refinado confronto intelectual, com raciocínios duvidosos, o que remete ou lembra o conceptismo que tem origem com o escritor espanhol Francisco Quevedo.

2) A exemplo de Drummond,

   “O presente é a minha matéria...”

A autora traz a citação de Carlos Drummond para amparar um sentimento que acha ser também próprio de seu viver neste plano: sua preocupação com o corpo físico no tempo presente, em tempo real. O que lhe importa é o corpo material, o corpo físico, sem nenhuma consideração com o espírito, com a energia inteligente que lhe dá vida. Há uma inquietação à mostra, remetendo à dualidade matéria x espírito, também uma característica da Escola Literária Barroca. O verso traz em si um fingimento, lembrando Fernando Pessoa, quando diz que o poeta é um fingidor. A autora tenta se enganar, tenta fingir que não se importa em saber se há ou não animação de outro corpo físico por um mesmo espírito. Se o espírito que dá vida inteligente ao seu corpo presente já lhe animou a vida em outro corpo em uma vida pretérita. Embora a autora cite Carlos Drummond, o fato de privilegiar o tempo presente lembra uma das características de Gregório de Matos Guerra, que também privilegiava o momento, o tempo presente, o carpe diem. Citar Carlos Drummond, nesse contexto poético, também se justifica, uma vez que, por ser este renomado escritor brasileiro o poeta da escavação do real, trouxe em seus poemas uma de suas mais reveladas preocupações: o impasse entre o homem e o mundo, a realidade interior e exterior, o mundo objetivo e o subjetivo, o sonho e a realidade.

4) Se a espiritualidade

     simbolizada em céu/inferno,

anjos e demônios

é algo elevado, sou reles

fome, injustiças, ganância.

Ostentação...

Sim, mil vezes sim,

Isso me incomoda.

 

Analisando os versos citados, encontramos: 

a)    Figura de contraste antítese: céu/inferno, anjos e demônios.

b)    Expressão de dualidade: céu e inferno, anjos e demônios.

c) Cultismo ou gongorismo: se a espiritualidade simbolizada em céu/inferno, anjos/demônios.

d) Feísmo. Sentimento de inferioridade. Não se sentir elevada, digna da espiritualidade: sou reles.

e)    Morbidez em relação aos aspectos elevados da espiritualidade: fome

f)  Manifestação de indignidade perante o comportamento dos que se dizem defensores da espiritualidade: injustiças, ganância.

g)  Contradição perante a fome e a injustiça, ostentação de muitos que usam a espiritualidade para enriquecimento e galgar a fama de líder: ganância.

h) Figura de linguagem hipérbole, uma afirmação exagerada para acentuar o sentimento de incômodo que a inquietação causa: sim, mil vezes sim.  Isso me incomoda.

i)     Expressão de perplexidade diante da vida e do mundo: Ostentação. Sim, mil vezes sim. Isso me incomoda. 

j)      Contrastante jogo de ideias, caracterizando o conceptismo ou quevedismo: Se a espiritualidade/ simbolizada em céu/inferno/ anjos e demônios/ é algo elevado/ sou reles/ fome, injustiças, ganância/ Ostentação.../ Sim, mil vezes sim/ Isso me incomoda. 

4) Não à toa,

gostaria de ter escrito

“Solidariedade”, de Murilo Mendes.

Estes versos apresentam o segundo exemplo de um discurso já dito. A autora menciona Murilo Mendes e, embora não cite trechos do poema Solidariedade, a ele faz referência na tentativa da possibilidade de ser ela também, como o poeta expressa em seus versos, solidária com pessoas e fatos que se caracterizam por apresentarem naturezas díspares. A contradição e a dualidade se encontram presentes na obra de Murilo Mendes, que procurou conciliar de tal maneira o sagrado e o profano, a ponto de se tornar conhecido como o poeta místico e cósmico. Esse viés literário também o fez criar um conceito particular de religiosidade, para que pudesse mostrar um processo de dilaceração do seu próprio Eu em conflito.

A autora gostaria de ter escrito Solidariedade, nos termos em que Murilo Mendes escreveu, para que pudesse expressar o sentimento de alteridade, mostrando o quanto seria capaz de ser solidária às pessoas com quem presume também se contrapor, seja por razões sociais, culturais ou morais. E assim, o ser humano conduz a vida, espelhando-se no outro, com vontade de ter as atitudes do outro. Acontece que, ao manifestar o desejo de realizar o que o outro já efetivou, ele declara sua própria leitura de vida em relação ao evento já efetivado pelo outro. Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2006 [1979], p. 383, grifo do autor) afirma que “O eu se esconde no outro e nos outros, quer ser apenas outro para os outros, entrar até o fim no mundo dos outros como outro, livrar-se do fardo do eu único (eu-para-si) no mundo”. O outro é e será sempre um amparo ou, podemos mesmo dizer, um espelho, para ver o nosso próprio eu.

5) Conecto-me com dores

de seres invisíveis,

nossos semelhantes

que às vezes pungem

e andam por aí...

Estes versos apresentam uma dualidade com versos já mencionados. A autora, no início do poema, demonstra claramente não querer se preocupar com assuntos que se relacionam com a dualidade matéria x espírito. No entanto, mostra, nestes versos, que está predisposta a se conectar com espíritos sofredores, ainda que não os veja. Quando menciona “seres invisíveis, nossos semelhantes”, a autora deixa nas entrelinhas acreditar na existência do espírito que dá vida ao corpo humano, aceitando e acreditando que, após o desencarne, muitos desses espíritos ficam vagando, sofrendo as punições que lhes são cabíveis. Mais uma vez, encontramos nestes versos, a característica inerente à natureza humana de se apoiar no comportamento do outro para manifestar seus próprios desejos, seus idênticos propósitos. 

6) Invocando Rosa, o Guimarães,

“Com dó, desgosto e desengano...” 

Mais uma vez a intertextualidade se faz presente no texto de Márcia Machado que traz a voz de Guimarães Rosa para manifestar a dor que pode sentir em relação à dor do outro. Há uma atitude responsiva em relação à dor alheia, uma atitude que carreia em si mesma o desgosto pelo acontecido e o desengano causado pelo desencanto que o turbilhão de sofrimento causa nas pessoas.

O simples fato de que eu, a partir do meu lugar único no existir, veja, conheça um outro, pense nele, não o esqueça, o fato de que também para mim ele existe - tudo isso é alguma coisa que somente eu, único, em todo o existir, em um dado momento, posso fazer por ele: um ato do vivido real em mim que completa a sua existência, absolutamente profícuo e novo, e que encontra em mim somente a sua possibilidade (BAKHTIN, 2010a [1920], p. 98).

Esse sentimento pode ser uma demonstração do impulso de alteridade que nos faz ver o outro, sentir o que se passa com o outro, até mesmo nos colocar no lugar do outro, mesmo sabendo que trazemos a marca da nossa unicidade e que o lugar que ocupamos na existência é único.

7) Basta não cegarmos.

Para quê olhos

se vê e não repara?

Estes versos se iniciam com um alerta: não vale fingir que não nos apercebemos do sofrimento alheio. Não apenas isto. Não vale fechar os olhos para encobrir o que não admitimos como certo, coerente e preciso para validar os princípios que regem a conduta correta e pertinente de uma vida saudável e salutar. O jogo de palavras “para quê olhos se vê e não repara” denota a contradição, a antítese que, muitas das vezes, limita o comportamento humano para uma aceitação, uma acomodação. Encontramos nestes versos mais uma característica das poesias barrocas: o cultismo ou gongorismo. Ao mesmo tempo, o joga de ideias denota o conceptismo. 

8) A mim basta não encarnar

o mito de Narciso

vivendo em torno

do próprio umbigo

Estes versos enfatizam que, embora se confirme a unicidade do ser, ninguém consegue viver as experiências da vida, sozinho, considerando tão somente seus próprios defeitos, suas próprias qualidades. “Não encarar o mito de Narciso” significa não ficar apaixonado por sua própria beleza, pelo seu próprio eu físico. Narciso, personagem da mitologia grega, filho deus de Cefiso e da ninfa Liríope, por ser apaixonado por sua própria beleza física, tornou-se o símbolo da vaidade, o que no mundo de hoje, tem induzido a sociedade ao culto da beleza, levando muitas pessoas a um transtorno obsessivo pela própria imagem corporal. Quanto ao verso “vivendo em torno do meu próprio umbigo”, ainda que não aceitemos, no mundo da vida, a nossa unicidade se faz presente em nossos atos, o que é confirmado por Bakhtin (2010 a [1920], p.43), quando observa que o “ato da atividade de cada um, da experiência que cada um vive, olha, como um Jano bifronte, em duas direções opostas”. A nossa própria unicidade nos remete às dualidades, às contradições.

9) boa, má?

certa, errada,

ora sim, ora não . 

“Boa, má; certa, errada; ora sim, ora não” são versos que refletem justamente o que é o espírito não totalmente evoluído, mesmo quando não se encontra no plano da erraticidade. Somos bons ou maus, dependendo do contexto, da situação e das pessoas com quem convivemos. Para alguns, muitas das nossas ações são tidas como boas; para outros, podem ser a causa de uma ferida que deixou marcas. Temos atitudes certas e outras também erradas, em determinados momentos de nossa vida. Como somos seres inconclusos, a nossa inconclusibilidade nos pode remeter, dependendo do nosso nível de discernimento, para o acerto ou para o erro. Ora acertamos, ora erramos e essa avaliação se constata com as possíveis interações que realizamos com o outro em nossas experiências de vida.   A nossa preocupação em saber como os outros nos definem é que nos fazem, na maioria das situações, saber quem somos nós, como nós estamos e como nos vemos. Com base nessa concepção, Bakhtin (2006 [1979], p. 341) observa que “Eu tomo consciência de mim e me torno eu mesmo unicamente me revelando para o outro, através do outro e com o auxílio do outro”. Sem o outro, sem a interação o outro para mim e eu para o outro, se torna mais difícil termos um nível de consciência do nosso próprio eu.

9) antíteses me (in)definem...  

Somos seres dualísticos? Nossa persona, o retângulo ou o quadrado de nossa máscara se deixa ilustrar por antíteses?  Essa resposta é facilmente encontrada, quando estamos em um grupo de amigos e perguntamos sobre como consideram ou veem a personalidade de uma pessoa. As respostas são as mais divergentes possíveis. Neste verso, a autora, após mostrar vários aspectos que se contrastam, se coloca como uma antítese, uma pessoa que se revela por meio de contradições e que, ao mesmo tempo, permanece como uma incógnita, porque nem mesmo as antíteses conseguem defini-la completamente. Somos assim: seres incompletos, seres inconclusos. E essa nossa incompletude faz com que nossas ações nem sempre permaneçam com as mesmas intenções, com os mesmos propósitos.

 

REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal.Trad. do russo por Paulo Bezerra.5ª.ed.São Paulo:Martins Fontes, 2006 [1979].

BAKHTIN, M. M. Para uma filosofia do ato responsável. Trad. Valdemir Miotello e Alberto Faraco. São Carlos: São Paulo: Pedro & João Editores, 2010a [1920].


 




quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Dançando pela vida


Conto/03

 

Por Janete Manacá

 

Naquela tarde a chuva já havia me presenteado com a beleza de suas gotas cristalinas que ao cair sobre o chão exalavam um agradável cheiro de terra. Poderia ser um dia comum, como tantos outros, não fosse o meu primeiro encontro com a dança contemporânea.

Aos meus olhos, a dança sempre foi algo que de tão extasiante me provocava vertigens. Ao som da música e os passos milimetricamente pensados antes de serem executados era a perfeição em movimento. As bailarinas, delicadas, esbeltas, feito porcelanas, denotavam uma beleza inigualável, era algo quase surreal.

Nunca me reconheci naquele padrão que parecia ultrapassar os limites da realidade. Mas naquela composição do esteticamente belo havia muitas pessoas do outro lado da margem social que não se enquadravam na estética exigida para ser integrante de uma companhia de dança.

Eu era uma delas. Enquanto assistia aos espetáculos de dança havia em mim um encanto frustrado por acreditar que jamais chegaria àquele espaço. A começar pelo biotipo, as condições financeiras e o tempo necessário que era empregado no labor para a sobrevivência, em detrimento da arte.

Mas de repente, você se encontra com um grupo diferente. Cada qual a habitar um corpo único com suas dores, limitações e histórias, mas um corpo que se move, luta, sorri e comove. Então você se dá conta de que um infinito de possibilidades habita dentro de você.

Neste grupo, eu presenciei a boniteza de expressões de vários corpos, cada qual com a sua poética singular e expressiva. Vi gato, leopardo, beija-flor, águia, falcão, ventania e furacão. Eu vi e senti o desejo de entrega no peso de cada gesto em busca de leveza e superação.

Havia corpos atrofiados, profanos, sagrados. Mas, também, corpos que resistiam e insistiam para além de imposições por se reconhecerem como um universo dentro de outro universo. Continham neles um poder imenso de super(ação) que os remetiam à metamorfose da lagarta à suavidade da borboleta. Cada qual com sua potência efêmera, porém, bela, necessária e essencial.

O que não me ensinaram é que independente de estar numa oficina, estúdio ou academia, o destino de cada ser é dançar. Mas uma dança sem reconhecimento e sem aplausos. É a dança da vida pela sobrevivência. Nossos corpos se movimentam na dança ao som do preparo do alimento. Durante o banho ao ritmo das águas que caem sobre ele. Nos manifestos de reivindicações nas ruas. E suavemente quando embalamos os filhos nos braços ao som amoroso de cantigas de ninar...

Há que se ter urgência em se desvincular desse cotidiano autômato ou então perderemos boa parte das melhores produções artísticas executadas frenética ou suavemente nas atribuições do dia a dia.

A cada movimento da dança eu me movia pelo desejo de decifrar cada gesto do corpo até então dormente. Transpirei muito, como quem rasga o próprio ser e expulsa as más águas ali represadas pelas frustrações no decorrer da vida. A mesma música era lançada muitas vezes para que cada um buscasse o seu patuá de memórias e, enfim, percorresse a própria estrada e oferecer a sua graça, beleza, medo, impotência e tudo que de forma conveniente ou inconveniente lhe afetava.

Para cada parte do corpo ainda dormente era dada a possibilidade de despertar. Era necessário ousar e esvaziar-se para enfim expulsar os adjetivos cruéis que muitas vezes nos são impostos durante o tempo que aqui permanecemos. Por sorte, minhas primeiras experiências se passaram no outono: tempo propício para se trocar a pele que nos habita impregnada do que não serve e deixar ir, no ritmo da ventania e nos impregnarmos de maturidade, que é a qualidade dessa estação.

Ainda que o meu corpo tenha dormido por tantos anos, é chegado o tempo de despertá-lo para se adaptar a uma nova pele e ousar os mais belos movimentos para enfim dançar, dançar, dançar... de forma a encantar os olhos do mundo.

Percebi que é impossível prosseguir a vida sem dançar. Então seguirei dançando a indignação, o descontentamento, as frustrações e a esperança, até os nossos corpos expandirem as asas e finalmente voarem numa coreografia cósmica e transcendental. Que os sons dos tambores que reverberam no labirinto interno do nosso ser possam nos manter acordados para o bailado de cada amanhecer.

 


ELES LEEM ELAS: TOCAIA DO NORTE, POR ODENILDO SENA caia Do Norte: o Novo Voo Literário da Sandra


ELES LEEM ELAS|03

Tocaia do Norte, de Sandra Godinho


Por Odenildo Sena


Quando a narrativa feita pelos poderosos de plantão é manipulada, notadamente em tempos de ditadura, restam-nos duas alternativas para buscar a verdade: a reconstituição dos acontecimentos feita por historiadores comprometidos com a realidade factual ou, decorrente disso, a recriação dos acontecimentos com as ferramentas da criação literária. E, neste segundo caso, como faço lembrar em meu livro “Aprendiz de escritor”, a literatura nos serve de estrada e nos abre caminhos para melhor entendermos as coisas da vida, uma vez que “a ficção projeta de forma refletida e trabalhada um mundo no qual nos recusamos a viver. Ela é fruto da nossa insatisfação, do nosso desconforto, da nossa busca por novas utopias”. Ou seja, por mais paradoxal que possa parecer, a ficção nos conduz às verdades.

Mas a ficção, como bem nos lembra Mario Vargas Llosa, “não é a vida como ela é, mas uma outra vida, inventada com os elementos que aquela fornece e sem a qual a vida de verdade seria mais sórdida e pobre do que é”. Neste sentido, acho que o maior risco de um escritor que se arvora a trabalhar a criação literária a partir da reconstituição comprometida com a verdade dos fatos é se deixar levar pela narrativa histórica e abdicar da magia da criação literária. Ora, no resgate dos fatos históricos a beleza está no que se diz, já na construção dos fatos literários a beleza está ancorada no como se diz: a matéria-prima é a mesma, são as palavras, mas a forma de operar com elas é diferente.

Pois é exatamente aí que a meu ver está a grande virtude da Sandra Godinho em seu romance “Tocaia do Norte”, que li fazendo um esforço danado para não me deixar levar pela vontade de querer devorá-lo do dia para a noite, leitor que sou daqueles que fincam pé para digerir com calma e parcimônia as palavras, as frases e os parágrafos de um livro. Pois bem, os fatos que Sandra teve em mãos, já postos ou frutos de sua pesquisa, são em si historicamente tão cheios de desvãos e curiosidades, que poderiam representar uma tentação para que da história ela fizesse apenas história. Mas Sandra não caiu nessa armadilha. Montou uma trama própria conduzida em primeira pessoa por um personagem que, ao confessar suas dúvidas, hesitações e dramas existenciais, sem nada esconder, desnuda os acontecimentos de tal modo, que vai deixando pelo caminho pistas fundamentais para o leitor se encantar metaforicamente com a beleza literária da narrativa, mas sem perder o fio da realidade que descortina as armações, as mentiras, a ambição e a sordidez política que levaram ao massacre da expedição do padre Calleri e ao genocídio do povo Waimiri-Atroari, no final da década de sessenta.

Dizer o que eu disse penso ser a razão fundamental de ver em “Tocaia do Norte” um livro que está apenas começando sua jornada para se tornar um daqueles romances de leitura obrigatória para quem é amante da boa literatura, mas isso abarca muito pouco do muito que o leitor descobrirá navegando em cada uma de suas páginas e confirmando o novo voo literário, seguro e promissor, da Sandra Godinho.




 

Distopias Utópicas


Poema/01

 

Por VâniaAlvarez

 

Eis que chega

O último dia distópico

De um tudo ou nada

Que nos ensinou a sermos sós

Ensaio desse estranho viver

O medo de morrer

Cidades apocalípticas

Pessoas em escombros

Corações cheios de dor

Andrajos atônitos

E foi assim que escrevemos

O amar à distância

Sem toques efusivos

Sem abraços loucos

Sem palavras de felizes festas

Último dia distópico

E escrevemos com lágrimas e borrões

A poesia do sempre querer

A poesia do agora

Reaprendendo a ser quase tudo!

No modificado instante

Da vida passada a limpo

Aprendemos que somos

Quase nada

Diante do poema que calou-se!




 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A Fruteira


Conto/02

Por Danielli Cavalcanti


A toalha de crochê, herdada da avó, vestia a mesa, testemunha de tantas mudanças da família e palco dos caprichos da fruteira. Esta delirava de orgulho por seu apelo decorativo valer mais que o de utilidade, pois mal cabia-se meia dúzia de laranja lá e a fruteira vaidosa arremessáva-as ao chão.

As bananas ficavam na geladeira, do contrário, não durariam nem dois dias naquela cozinha mormacenta.

Toda manhã, o café da menina era vitamina de banana.

Toda noite, em frente à TV com sua mãe, ela descascava uma bacia de laranja.

Quando a menina adoecia, a fruteira era a única a sentir-se satisfeita, pois, finalmente, desfrutava de outras companhias.

Aos 10 anos de idade, a menina teve catapora, a mãe achou por bem comprar umas frutas diferentes, na tentativa de despertar seu interesse apetecível, e trouxe-lhe uma maçã meio macenta e outra azedinha.

Esta maçã era a rainha da feira, importada da Argentina, disse a vendedora num papo de dar água na boca e de secar o bolso.

A menina não tomou gosto por nenhuma das duas, mas a mãe era crentinha que esse desgosto macieiro era fastio de bucho adoentado. E bastava a menina ter uma gripezinha, lá estava a fruteira orgulhosa de ter fruta importada, para desespero gustativo da menina que já não se dava mais ao luxo de adoecer para a mãe não ter que compra-lhe maçãs.

Anos se passaram e a menina-mulher foi morar num país, onde havia mais maçãs que laranjas, e experimentou outras sensações desse fruto proibido. Percebeu que seu medo de gostar de maçãs, era culpa pelo sacrifício da mãe em comprá-las. Deu a si mesma outra chance. Assim, o strudel de maçã tornou-se uma das suas sobremesas preferidas, e o bolo de maçã com canela perfuma sua casa nas festividades natalinas.

No seu país residente, a maioria dos muros das casas é bem baixinho e em muitos quintais, há um pé de maçã e/ou um mastro. A mulher gosta de observar as macieiras vivendo suas estações. No último outono, ela plantou uma macieira, uma cerejeira e uma ameixeira no seu jardim. Dentro de casa, ela cultiva uma mangueira. Ela nunca poderá ser transplantada lá fora, pois não resistiria ao frio escandinavo. A mulher a batizou de pé da lembrança. A mangueira não dará frutas, mas aguá-la é sentir os pés pequeninos daquela menina saltitarem.

A fruteira de sua mãe ela não sabe que fim levou. Lembra-se dela sempre, pois continua descascando bacias de laranja, agora com a filha.

 


LIVROS & ENCANTAMENTOS: 2PERMANÊNCIAS OUTONAIS", POR ROBERTA GASPAROTTO


LIVROS & ENCANTAMENTOS/02

"AOS QUE PENSAM NAO VIVER."

"PERMANÊNCIAS OUTONAIS", DE VANIA CLARES

POR ROBERTA GASPAROTTO


São para essas pessoas que a poeta e escritora Vania Clares dedica o seu livro, Permanências Outonais, Ed. Sarasvati.

Livro sensibilíssimo e que trata de um tema tabu de forma sublime e, ao mesmo tempo, muito corajosa.

O leitor é convidado a mergulhar no mundo da personagem (e também, narradora) que, diga-se de passagem, não tem nome.

Essa personagem bem poderia ser eu, você ou todo mundo, ou ao menos, todos que sejam valentes o suficiente para mergulhar em suas dores e se deixar impregnar por suas escuras e nebulosas tintas.

Sejamos sinceros: quem, se for minimamente honesto consigo, já não pensou que seria melhor não viver?

E a perspectiva que a autora escolhe para fazer essa narrativa é a mais acertada possível: do ponto de vista da alma, que não julga, não tem preconceitos, nem faz cobranças. Apenas acolhe o que vem, seja lá o que for.

Logo no início do livro, a personagem tece longos pensamentos a respeito de como seria sua própria morte: onde, de que maneira, qual o lado do muro seria mais adequado cair, e outras divagações sobre o tema.

Depois, ela recorda, pouco a pouco, situações dolorosas da infância, seu grande amor que se foi, e as angústias vivenciadas durante o processo.

Ressalto aqui, que essas lembranças não vem de forma óbvia. O caminho escolhido pela autora é sempre o caminho do paradoxo, da abertura para um pensar além das aparências. Talvez por isso, ao ler esse livro, eu tive a forte impressão de estar envolvida em um ambiente onírico, não no sentido de fantasioso, mas no sentido de tudo ser possível - sem riscos de achatamento ou julgamentos morais.




 

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

A Mulher de Todos os Dias


 

Conto/01


Por Ana Dietmüller


Dia agitado na organização que presta serviços de aconselhamento jurídico a refugiados e imigrantes.

Nos últimos minutos de expediente adentra um rapaz de semblante grave, mas bastante educado e com bom entendimento da língua do país onde estava agora residindo.

- Bom dia, senhora. Gostaria de saber o que é necessário para trazer minha esposa, que ficou no Afeganistão.

A jurista explica todo o procedimento e os requisitos obrigatórios a serem cumpridos a fim de possibilitarem a vinda da esposa. Legalmente, tudo correto e a documentação trazida para conferência estava, da mesma forma, dentro do exigido. O marido - originalmente refugiado sírio - já residia há anos no país europeu que lhe conferiu asilo; já exercia trabalho remunerado e ganhava o suficiente para demonstrar às autoridades que tinha reais condições de trazer sua esposa para morar consigo.

Com a resposta da profissional, o consultante demonstrou alívio, mas um único detalhe foi suficiente para que retomasse o semblante grave: era também requisito obrigatório que a esposa fosse, pessoalmente, à embaixada do país que receberia o pedido de reunião familiar para entrega da documentação.

- Meu Deus, minha esposa terá de ir pessoalmente e fazer tudo sozinha?

- Sim, senhor. Do contrário, o processo não será aceito se for feito através de advogado ou terceira pessoa. Precisa ser sua esposa em pessoa.

- Sabe, senhora, por isso meu desejo em tirá-la de lá o mais rápido possível: ela, obviamente, fará tudo o que eu disser ou meu pai ou meu irmão, mas não terá muito domínio do que estará fazendo. Ela irá pessoalmente, mas, com toda a certeza, terá de ser acompanhada por um homem, porque lá as coisas funcionam assim ainda, infelizmente. Quero deixar tudo o mais “mastigado” possível no intuito de evitar complicações que ela não terá condição de resolver, por mais simples que sejam. Por isso, também, todo meu esforço em trazê-la: para que veja que as mulheres têm direitos, liberdade e podem resolver coisas quotidianas por si mesmas!

Após preencher os últimos documentos e o breve desabafo, o marido despediu-se, agradecendo a consultoria prestada.

A jurista, acostumada à repetição mecânica, diária e profissional do “sua esposa precisa ir pessoalmente”, deu-se conta de que, até então, jamais havia pensado sob esse prisma. Suspirou, silenciou e tergiversou: “a mulher, de todos os dias, que somos aqui, não é a mesma mulher, de todos os dias, de lá. Triste!”

Envolta em pensamentos, fechou a porta atrás de si e rumou para casa!





segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

ELES LEEM ELAS: PLATÃO, DIÁLOGO E GEOGRAFIA ESQUECIDA NA POÉTICA DE LUIZA CANTANHÊDE - POR PAULO RODRIGUES


ELES LEEM ELAS/01

PLATÃO, DIÁLOGO E GEOGRAFIA ESQUECIDA NA POÉTICA DE LUIZA CANTANHÊDE

Por Paulo Rodrigues


“pois não sobre o solo se move, mas sobre a cabeça dos homens ela anda”.

(Homero)

 

Pequeno tem origem na palavra latina pittittus ou pittinus. Era usada para designar algo reduzido. Nada no livro “Pequeno Ensaio Amoroso”, de Luiza Cantanhêde, busca a etimologia. São mais de quarenta poemas distribuídos em quatro seções: Ferida, Geografia Esquecida, Somente Boca e o Destino das Cicatrizes. Todas muito bem casadas, reinventando o cordão umbilical da ausência.

A Editora Penalux caprichou na diagramação da obra, que conta com uma tela de Joel DuMara como capa. Luis Henrique comenta na orelha: “circula na areia da poesia de Luiza, uma geografia esquecida, que nos faz lembrar o pulso da vida”.  Tudo nos versos desta poeta potente aumenta a pressão das sensações, no leitor.

O primeiro poema (Por Dentro, os Girassóis) demonstra a capacidade que ela tem de tocar a pele da palavra:

 

Voo para dentro

e fecho as janelas.

 

Amanhã acenderei

o candeeiro.

 

Permanece

o silêncio que nada

pergunta e nunca

se espanta.

 

Colherei

todos os girassóis

que não se despediram

de mim.


As imagens conversam com a dor, na porta da casa. O silêncio não se espanta com o acúmulo dos sacrifícios. Nem reconhece a luz do intangível. Parece com ela e com todos nós. Uma das características da poética de Luíza é este diálogo profundo com a humanidade. Parece que ela fundou sua própria religião. Tem valores, gestos, certezas salvadoras.

Finaliza o texto como se quisesse tampar um vulcão: “colherei/ todos os girassóis/ que não se despediram/ de mim”.

Eu disse na apresentação do “Pequeno Ensaio Amoroso”: “a poeta explora agora um tema pouco trabalhado em “Palafitas” e “Amanhã, Serei uma Flor Insana”, que é Eros”. Confirmo, pois com um aforismo dos romanos: verba volant, scripta manent.

Os muitos mitos do amor são refeitos pelas revelações dos versos da Luiza.

Parece uma tradução poética do diálogo o “Banquete”, de Platão. Faltam os personagens do simpósio, mas não faltam as indefinições das mãos que se foram. As sombras no sonho das manhãs. As corredeiras na reflexão. As perguntas no vácuo. O amor está bastante acima da ascese de Diotima de Mantinéia como podemos comprovar em Via Láctea:

 

O que

se perpetuou

primeiro?

Tuas asas saltando

abismos ou o instante

que aprendi a voar?

 

Dize-me: em que céu

fizeste teu exílio?

 

Estou indo com as mãos

carregadas de estrelas.

 

São páginas que fazem o tempo valer tanto quanto as dores do barranco. Luiza Cantanhêde apresenta o exílio do ser amoroso. Indaga-se. Não se contém. Volta como um Orfeu “com as mãos carregadas de estrelas”. São muitas ‘plantações de horizontes’, na escrita agressiva, que ela sustenta e amadurece.

Enfim, a ‘geografia esquecida’ ajuda desenvolver o tema. No entanto, não sintetiza o distanciamento da ferida. Há um exercício de tocar o machucado, na poesia da Luiza Cantanhêde.




 

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