quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Dançando pela vida


Conto/03

 

Por Janete Manacá

 

Naquela tarde a chuva já havia me presenteado com a beleza de suas gotas cristalinas que ao cair sobre o chão exalavam um agradável cheiro de terra. Poderia ser um dia comum, como tantos outros, não fosse o meu primeiro encontro com a dança contemporânea.

Aos meus olhos, a dança sempre foi algo que de tão extasiante me provocava vertigens. Ao som da música e os passos milimetricamente pensados antes de serem executados era a perfeição em movimento. As bailarinas, delicadas, esbeltas, feito porcelanas, denotavam uma beleza inigualável, era algo quase surreal.

Nunca me reconheci naquele padrão que parecia ultrapassar os limites da realidade. Mas naquela composição do esteticamente belo havia muitas pessoas do outro lado da margem social que não se enquadravam na estética exigida para ser integrante de uma companhia de dança.

Eu era uma delas. Enquanto assistia aos espetáculos de dança havia em mim um encanto frustrado por acreditar que jamais chegaria àquele espaço. A começar pelo biotipo, as condições financeiras e o tempo necessário que era empregado no labor para a sobrevivência, em detrimento da arte.

Mas de repente, você se encontra com um grupo diferente. Cada qual a habitar um corpo único com suas dores, limitações e histórias, mas um corpo que se move, luta, sorri e comove. Então você se dá conta de que um infinito de possibilidades habita dentro de você.

Neste grupo, eu presenciei a boniteza de expressões de vários corpos, cada qual com a sua poética singular e expressiva. Vi gato, leopardo, beija-flor, águia, falcão, ventania e furacão. Eu vi e senti o desejo de entrega no peso de cada gesto em busca de leveza e superação.

Havia corpos atrofiados, profanos, sagrados. Mas, também, corpos que resistiam e insistiam para além de imposições por se reconhecerem como um universo dentro de outro universo. Continham neles um poder imenso de super(ação) que os remetiam à metamorfose da lagarta à suavidade da borboleta. Cada qual com sua potência efêmera, porém, bela, necessária e essencial.

O que não me ensinaram é que independente de estar numa oficina, estúdio ou academia, o destino de cada ser é dançar. Mas uma dança sem reconhecimento e sem aplausos. É a dança da vida pela sobrevivência. Nossos corpos se movimentam na dança ao som do preparo do alimento. Durante o banho ao ritmo das águas que caem sobre ele. Nos manifestos de reivindicações nas ruas. E suavemente quando embalamos os filhos nos braços ao som amoroso de cantigas de ninar...

Há que se ter urgência em se desvincular desse cotidiano autômato ou então perderemos boa parte das melhores produções artísticas executadas frenética ou suavemente nas atribuições do dia a dia.

A cada movimento da dança eu me movia pelo desejo de decifrar cada gesto do corpo até então dormente. Transpirei muito, como quem rasga o próprio ser e expulsa as más águas ali represadas pelas frustrações no decorrer da vida. A mesma música era lançada muitas vezes para que cada um buscasse o seu patuá de memórias e, enfim, percorresse a própria estrada e oferecer a sua graça, beleza, medo, impotência e tudo que de forma conveniente ou inconveniente lhe afetava.

Para cada parte do corpo ainda dormente era dada a possibilidade de despertar. Era necessário ousar e esvaziar-se para enfim expulsar os adjetivos cruéis que muitas vezes nos são impostos durante o tempo que aqui permanecemos. Por sorte, minhas primeiras experiências se passaram no outono: tempo propício para se trocar a pele que nos habita impregnada do que não serve e deixar ir, no ritmo da ventania e nos impregnarmos de maturidade, que é a qualidade dessa estação.

Ainda que o meu corpo tenha dormido por tantos anos, é chegado o tempo de despertá-lo para se adaptar a uma nova pele e ousar os mais belos movimentos para enfim dançar, dançar, dançar... de forma a encantar os olhos do mundo.

Percebi que é impossível prosseguir a vida sem dançar. Então seguirei dançando a indignação, o descontentamento, as frustrações e a esperança, até os nossos corpos expandirem as asas e finalmente voarem numa coreografia cósmica e transcendental. Que os sons dos tambores que reverberam no labirinto interno do nosso ser possam nos manter acordados para o bailado de cada amanhecer.

 


3 comentários:

  1. Que o som desses tambores nos acordem para as lições que não aprendemos ontem... Dancemos com música agradável como agradável é esse sua Crônica!

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    1. Ronaldo Rhusso, Que possamos dançar as nossas dores e nossas alegrias e voar se preciso for. Grata. Abraços.

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