sexta-feira, 28 de março de 2025

HISTÓRIA COLETIVA. / DE MULHERES. / DE MENINAS.

HISTÓRIA COLETIVA. / DE MULHERES. / DE MENINAS.[1]

Por Marta Cortezão 


“Mulheres não são pessoas no capitalismo, apenas corpos.”

(Silvia Federici, Folha de S. Paulo-Uol, novembro,2023)


Imagem Pinterest

Todos os dias, nos noticiários, nas mídias, nas manchetes aterradoras, a morte nos lembra como o machismo mata e aterroriza mulheres e meninas em uma violência crescente e assustadora. O Brasil é o 5º país que mais mata mulheres no mundo[2]. E, com infâmia, inscreve, na perversa história desses brutais crimes, as marcas de um profundo ódio a esses corpos femininos, devorados pelo utilitarismo e pela ganância de um mundo que vive o capitalismo em seu extremo. Um mundo que consome a hipersexualização e a objetificação de corpos femininos; um mundo que apavora pelo sexismo estrutural, reforçando a discriminação baseada no sexo e/ou gênero e violando direitos humanos, impedindo mulheres e meninas de desfrutarem de suas liberdades fundamentais. Quando nossos corpos serão, de fato, nossos?

A garota voltava da escola, falou com um desconhecido e desapareceu. Mais uma vida ceifada. Foi encontrada em um terreno baldio, pedaços de seu corpo noticiados em imagens desfocadas no jornal do meio-dia. A mesa estava posta, quase nem houve tempo de assimilar tantas notícias...

Homem segue mulher na parada do ônibus. Ela retornava, à noite, do emprego de funcionária do lar. Era o suposto ex-marido. Consta que ela o havia denunciado por ameaças de morte. Morreu desacreditada e sem apoio do Estado. Vítima da violência das mãos do feminicida, deixou duas crianças que agora são órfãs de seu cuidado maternal. Os restos mortais da vítima, de 36 anos, foram encontrados calcinados em um lixão da cidade.

Imagem Pinterest
Adolescente é assediada no ônibus, a caminho da escola. Transporte lotado. Ela deu alarme, mas não obteve apoio. O assediador era um senhor bem-vestido, de terno e gravata, que se agarrou no discurso de homem respeitável e pai de família abnegado. A menina desceu chorando seu desespero na primeira parada que pôde. Alguém gravou a cena enquanto a adolescente expressava sua angústia e a publicou nas redes sociais...

Senhora de 65 anos vai a óbito ao cair do quinto andar. Suspeitas de um relacionamento tóxico e suas consequências depressivas. Ela envolveu-se com um rapaz pelas redes sociais. Ele foi ganhando sua confiança, também o acesso à sua conta bancária, à sua casa, à sua vida. Enfim, um caso a ser investigado, diz a polícia, meio desacreditada de encontrar uma prova cabal. Mas há fortes indícios de suicídio...

Mulheres e crianças são as maiores vítimas da guerra. Deu também nos noticiários, mas “deu”/bateu mais forte em minhas carnes. O que faço com esta impotência em meu corpo? Com essa dor, faca afiada e fria da morte, prestes a atravessar a jugular? Agora mesmo não tenho nem forças nem disposição racional para continuar falando sobre este tema, mas o feminicídio grita em todos os lados. Está escancarado nas janelas do mundo. É preciso sair da apatia social que aliena mentes, é preciso enxergar, do contrário, nos tornamos cúmplices e culpadas, porque nossa passividade tem implicações morais[3].  

Imagem Pinterest

Um corpo frio sobre a pedra do necrotério. Um corpo não identificado. Uma notícia tão corriqueira que quase ninguém se sensibiliza. Há muita pressa, há coisas mais importantes para se ocupar. Por quê? Onde? Quando perdemos a nossa empatia? Nossa capacidade de comoção? De nos importarmos com a vida de nossas iguais?

Um corpo que é coletivo, mas que não nos pertence. A essas mulheres, a essas meninas que vivem na mira da misoginia de uma sociedade patriarcal que objetifica nossos corpos em prol do lucro e do capital. Em uma sociedade onde não somos pessoas, apenas corpos. Apenas números na crescente lista da vergonha que, a cada fração de segundo, pode ganhar mais uma vítima fatal. A escritora Rosangela Marquezi, de Pato Branco, no poema Coletivo Corpo, de seu livro (In)certas Escreveduras (Editora Medusa, 2023), faz uma abordagem direta sobre este tema. Escancara nossas dores e agruras ao descrever o poema:

Coletivo Corpo

 

O corpo estava ali.

Nunca fora seu, era coletivo.

 

O pai mandara se cobrir.

O marido mandara se abrir.

 

E a ela ninguém ouviu.

E a ela ninguém sequer viu.

 

História coletiva.

De mulheres. De meninas.

 

Correntes que não se quebram.

Sinas que não se desfazem.

 

Seu corpo estava ali.

Nunca fora seu, nem agora.

 

Na mesa fria da necropsia.

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O corpo de uma mulher jaz inerte “na mesa fria da necropsia”. Em vida, já havia sido despojado das vontades, da dignidade, de tudo – inclusive de sua autonomia. Um corpo que alcança o extremo da objetificação na análise póstuma. Um corpo feminino submetido às expectativas e imposições sociais. Um corpo frio “que estava ali”, mas “nunca fora seu, era coletivo”. Um corpo que compartilha a infeliz ventura da história triste de tantas mulheres, vítimas da violência machista, engrossando a lista de mortes de inúmeros corpos de mulheres e meninas subjugados pela sociedade.

O pai, figura que representa a moral e os bons costumes, ordena que a filha se resguarde, que se cobra, que se comporte como uma mulher deve se comportar em uma sociedade patriarcal. O marido, proprietário e beneficiário desse corpo, ordena que ela se abra, que sirva a seus instintos, a seus desejos irrefreáveis. Tanto o pai quanto o marido – figuras de ordem – representam a imposição das normas masculinas sobre este corpo individual feminino. A ela, o corpo anônimo e invisibilizado, que jaz frio em uma mesa de necropsia, resta a negação de seus desejos e sonhos pela sociedade patriarcal falocêntrica. Resta-lhe a história da negligência de mulheres e meninas abandonadas à ausência da própria voz, da própria existência.

Imagem Pinterest

A noção de “História coletiva. / De mulheres. / De meninas” revela os fatos que se repetem, mudando apenas as vítimas das inúmeras tragédias das narrativas cruéis do cotidiano. São histórias que se entrelaçam nas “Correntes que não se quebram. / Sinas que não se desfazem”. É uma história viciosa que fortalece as relações de poder historicamente patriarcais destacando a universalidade dessas experiências e lutas e sugerindo a persistência de padrões restritivos ao longo do tempo. O poema alcança seu ápice no verso “Na mesa fria da necropsia”, encerrando uma reflexão contundente sobre a opressão sistêmica enfrentada pelas mulheres. Melhor não poderia dizer eu! Digo apenas que sempre é tempo de construir algo novo!

Imagem Pinterest

Silvia Federici afirmou, em uma entrevista que assisti recentemente, que quando perdemos a ilusão, sentimos a necessidade de fazer algo novo. E é colocando a esperança nos coletivos que a luta se fortalece. A luta de mulheres sempre esteve nesse ponto zero: ponto onde se perde a ilusão. Mas que este ponto seja não apenas de resistência, mas também de luta e de transformação social. Não queremos morrer todos os dias. Queremos seguir vivas!



[1] Revista Voo Livre. São Paulo. nº 46, pp. 48-53. Disponível em: https://revistavoolivre.com.br/2024/06/07/revista-voo-livre-vol-1-no-46-junho-de-2024/ . Acesso em: 28/03/2025.

[2] CUNHA, Carolina. Feminicídio – Brasil é o 5º país em mortes violentas de mulheres no mundo. Uol, 2025. Disponível em: Feminicídio: Brasil é o 5º país em morte violentas de mulheres no mundo - UOL Educação . Acesso em: 28/03/2025.

[3] TOKARCZUR, Olga. Escrever é muito perigoso – Ensaios e conferências. Gabriel Borowski (trad.). [livro digitalizado]. São Paulo: Editora Todavia, 2023, p. 57.

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Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski)
Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que acredita a literatura tem o poder de modificar vidas... Nas poucas horas vagas escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. Faz parte da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR, onde também é Professora de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

sábado, 8 de março de 2025

TOPOGRAFIA DO MEDO

AVE, CRÔNICA|07

POR MARTA CORTEZÃO

Fonte: Pinterest
Alguns passos deixam marcas que a cidade não ignora. Uma mulher caminha pela cidade. Um homem caminha pela cidade. Dois fatos comuns, no entanto, totalmente distintos do ponto de vista da essência semântica e espacial do corpo que caminha. E não me refiro simplesmente à ação de caminhar, mas ao que não cabe nos fatos em si, o que transborda deles e escorre pelos interstícios do passado e do presente, que pulsam no organismo vivo da cidade. Há uma pragmática quase invisível entre o corpo caminhante e o corpo vivo da cidade, porém essas relações não se apresentam de forma neutra a todos os corpos. Sua topografia, construída por edifícios fálicos e belicosos, se impõe como o cenário dos acontecimentos cotidianos.  

Fonte: Pinterest
A cidade é um ser que respira, reage, amanhece e anoitece a cada passo. Aos passos do homem que caminha, ela abre os pulmões receptiva, e inspira o ar fresco matinal. A brisa favorável dos bons tempos percorre suas artérias, porque a cidade está feita à sua medida. Ela exibe sua fortaleza em suas largas avenidas desobstruídas, que fluem sorridentes, sem impedimentos, em todas as direções, num fluxo contínuo. Já a mulher trânsfuga, ao caminhar, pisa com seus medos no corpo urbano, vivo, mas limitado. A cidade exala, por entre postes e vielas, um ar pesado e sepulcral, como se, a cada passo, fosse revelar o inesperado, ao mesmo tempo previsto e temido, o susto iminente prestes a saltar de alguma esquina. Seus labirintos estreitos suspiram pesado e sussurram segredos medonhos por entre os dentes: fogueiras, massacres, violações, silenciamentos... As veias urbanas pulsam obstruídas no fluxo das incertezas, sem volta, sem refluxo, dificultando o próximo passo, facilitando o tropeço, o coágulo.

Fonte: Pinterest
A cidade, suas sombras e seus olhos de Argos se dissolvem. Invisíveis, espalham-se pelas paredes, pelas janelas, pelas construções, pelas frestas, pelo trânsito afoito dos automóveis, entre buzinas e piscadas de faróis. Um homem caminha pela cidade sem notar o tumulto, sem notar as sombras e os olhos, porque a cidade é neutra ao seu corpo. Ele atravessa sem sentir o bulício, mas seus olhos cravam-se na mulher que caminha em sua direção. Ela, atormentada pelo ruído da cidade, se assusta, sente o olhar do caminhante arder em seu corpo nu e desvia sinuosamente o percurso. A cidade cede palco aos olhos que não piscam – apenas os faróis atentos dos carros, que piscam em cumplicidade à buzina estridente da insinuação incômoda, na hora cansada da cidade. A mulher apressa os passos largos. Pelas frestas dos vidros dos carros, a cidade se assenhora do espaço que o corpo da mulher pisa. As sombras assobiam palavras obscenas que a atravessam, queimando a caminhante assustada como mãos de fogo que não tocam, mas ardem e marcam para sempre.

Fonte: Pinterest
A cidade, insaciável não dorme. Ela é um animal de humor instável, de garras afiadas, pronto para assaltar sua presa com seu baile de máscaras medieval. Com seu ar selvagem e fingido comportamento manso, de aparente desinteresse, prepara-se para dar o bote. Permite a passagem da mulher que caminha, para logo apresentar um risco calculado na próxima esquina. A cidade tem patas silenciosas e olhos de fera noturna. Durante o dia, deixa-se domesticar: ruas iluminadas, passos firmes. À noite, arqueia o lombo, mostra os dentes, e toda mulher aprende a andar como quem não quer acordá-la, pois há os corpos e as cicatrizes que a cidade devora. Até quando uma mulher que caminha pela cidade será apenas mais uma sombra em meio à cegueira extrema do espaço urbano? 


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sexta-feira, 20 de dezembro de 2024

GRÁVIDA DE MÚSICAS E CANÇÕES, OFERTO-LHES OS DEVANEIOS POÉTICOS DE JANETE MANACÁ

Montagem de Elizabete Nascimento
 

GRÁVIDA DE MÚSICAS E CANÇÕES, OFERTO-LHES OS DEVANEIOS POÉTICOS DE JANETE MANACÁ

 Por Maria Elizabete N. de Oliveira


A importância vocal de uma palavra deve, por si só, prender a atenção de um fenomenólogo da poesia. A palavra alma pode ser dita poeticamente com tal convicção que anima todo um poema. O registro poético que corresponde à alma deve, pois, ficar em aberto para as nossas indagações fenomenológicas.

 

Gaston Bachelard, 2005

 

 Oferto-lhes para brinde natalino, nesse ano de 2025, o poema Aborto, de Janete Manacá:                       

ABORTOS 

é imprescindível expulsar as tristezas internas

e esvaziar-se para receber as dádivas do amanhä

 

abortei tudo que ouvi

durante toda a minha vida

e que intoxicou o meu corpo

abortei as cicatrizes internas

cada pedra que me atiraram

e as palavras que me dilaceraram

abortei as culpas que me impuseram

mágoas dos abraços negados

e o pavor de ser rejeitada

abortei o incômodo da ingratidão

as vezes que fingiram não me ver

o rosto virado para não me cumprimentar

abortei as críticas ácidas e cruéis

as mentiras que disseram a meu respeito

e o meu pânico diante do espelho

abortei o sentimento de impotência

as lágrimas cristalizadas na alma

e tudo que neguei por não me aceitar

hoje em êxtase e grávida de músicas

eu quero apenas parir canções de amor

que possam inspirar outras gerações.

Antonio Candido (2011), em sua teoria sobre a função humanizadora da literatura, endossa que a arte literária é essencial para que o ser humano se reconheça, se sensibilize e transcenda sua própria existência. O poema de Janete Manacá dialoga diretamente com essa perspectiva, pois o "abortar" simbólico descrito no texto não é apenas um ato de negação, mas um processo de libertação e reconstrução do eu, vejamos: Abortei tudo que ouvi/ durante toda a minha vida.

O poema atribui voz à subjetividade de um eu que busca se purificar das amarras sociais, das narrativas que o aprisionam. Nesse ínterim, Candido sugere que a literatura é um espaço de reconstrução da dignidade humana, e nesse poema, o eu lírico busca essa redenção ao expulsar as "intoxicações" advindas do sistema capitalista no qual nos inserimos. Nessa vertente, literatura é catártica e humanizadora, pois apresenta como culminância desse processo: [...] quero apenas parir canções de amor / que possam inspirar outras gerações. Assim, a literatura e a arte apresentam o movimento entre a morte e o renascimento como dádivas criativas que ultrapassam o sofrimento individual, transformando-se em bens coletivos, reflexos dos processos humanizadores defendidos pelo autor.

Ainda na vertente do diálogo, Beth Brait (2010) discute as vozes discursivas ao convidar para o debate o dialogismo baktiniano e enfatizar que a literatura é um espaço de diálogo entre múltiplas vozes e discursos. Assim, o poema "Abortos" pode ser lido como uma resposta direta a vozes sociais opressoras e internalizadas, em um processo de confronto e apagamento dessas vozes, em  [...] as palavras que me dilaceraram e [...] as críticas ácidas e cruéis; Janete Manacá dá destaque às vozes que marcam negativamente à identidade do sujeito. Essas falas sociais tornam-se tóxicas e devem ser "abortadas". O poema, portanto, insere-se em um jogo dialógico: primeiro, escuta-se a voz opressora, depois, ela é rejeitada e transformada.   O "eu lírico" constrói uma nova voz ao dizer: [..] hoje em êxtase e grávida de músicas. Um enunciado marcado por positividade, amor e criação que sugere uma ruptura com o discurso anterior. Ao considerar a voz de Beth Brait, trata-se de um deslocamento do sentido: o discurso opressor é esvaziado para dar lugar a uma nova enunciação.

Essa nova enunciação alia-se as imagens propostas por Gaston Bachelard e a poética do espaço interior, em sua obra A Poética do Espaço (2005), pois estas surgem da interioridade do ser humano, ao analisar a casa como metáfora do eu, com seus espaços íntimos e ocultos. No poema "Abortos", o corpo e a alma do eu lírico tornam-se esse espaço simbólico, no qual dores e experiências negativas foram "guardadas" e precisam ser expulsas e o ato de "abortar" pode ser interpretado como uma [...] limpeza do espaço interno: /[...] é imprescindível expulsar as tristezas internas e esvaziar-se. A imagem do esvaziamento apresenta-se como um ato essencial para a renovação do ser. Segundo Bachelard, o espaço precisa ser "preparado" para o novo, assim como a alma do eu lírico se prepara para "parir canções de amor". O autor valoriza a imagem do sonho e da criação poética. Assim, o "êxtase" e a gravidez de músicas simbolizam um espaço imaginário onde a criação poética surge como forma de ressignificação da vida.

Essa concepção emaranha-se também à poética do tempo e do renascimento de Octavio Paz (1982), em que o autor apresenta a ideia de morte e renascimento como centrais ao fazer poético. Para Paz, a poesia é capaz de quebrar o tempo linear, transformando o passado em presente e criando um novo futuro. Neste viés, o poema "Abortos" encarna esse ciclo de morte simbólica e renascimento criativo, pois o ato de abortar simboliza o fim de um ciclo marcado pela dor e pela rejeição: [...] abortei as culpas que me impuseram / mágoas dos abraços negados. A palavra "abortar" é impactante porque carrega uma conotação de interrupção, mas no contexto do poema, ela é ressignificada como libertação, redimensiona o sentido inicial. Octavio Paz diria que o tempo é refeito aqui: as culpas passadas são "abortadas" para que o eu lírico possa se recriar no presente. Deste modo, o poema culmina em um futuro criativo e inspirador: [...] quero apenas parir canções de amor. Esse verso dialoga com a ideia de Octavio Paz de que a poesia é um ato de criação que transcende a destruição, sendo o amor e a música símbolos do renascimento do eu e a sua capacidade de oferecer algo ao mundo ao romper com o ciclo de dor.

Podemos inferir que o poema "Abortos" de Janete Manacá é uma poderosa expressão do renascimento do sujeito feminino, que, ao "abortar" tudo o que o oprime, reconstrói-se de forma criativa e amorosa. Por intermédios das lentes teóricas de Antonio Candido, Beth Brait, Gaston Bachelard e Octavio Paz, percebe-se que o texto dialoga com a literatura como espaço humanizador, com a ruptura dos discursos opressores, com a poética da interioridade e com o tempo cíclico de morte e de criação, tão caro à literatura de autoria feminina porque é a própria pele. Assim, o ato de "parir canções de amor" simboliza não apenas a superação pessoal, mas também o compromisso do eu lírico feminino [por que parir é uma ação exclusivamente feminina] com um futuro inspirador que se conecta a função essencial da arte e da poesia: transformar dores em dádivas.

Que possamos, minhas companheiras, parir muitas canções de amor em 2025 e continuar com a po-ética do abraço.

Um brinde à vida!

 Referências bibliográficas

BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

BRAIT, Beth. Literatura e outras linguagens. São Paulo: Contexto, 2010.

CANDIDO. Antonio. O direito à literatura. In: CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. Rio de Janeiro: Ouro sobre azul, 2011.

CORTEZÃO, Marta. II Tomo das bruxas: corpo & memória. Curitiba: Eu-i, 2024.

PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

** Imagens do texto - fonte: Pinterest.

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Janete Manacá (Cuiabá/MT) - é devota de Gaia, apaixonada pela vida, rios, florestas, animais... Tem a poesia como uma grande aliada e a música uma dádiva, ambas se complementam no seu bailado cotidiano para se autoconhecer, ser melhor e superviver.



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Elizabete Nascimento (Cáceres/MT) -  é poeta, professora e avó. O silêncio e o tempo são seus mestres e, por isso, tenta guardar as dores com dignidade e as ressignifica em páginas, na ânsia de apontar que o verbo pode ser abrigo, cura e voo. Cada palavra que rabisca é na tentativa de ofertar um sopro de esperança ao mundo. Aprendeu que escrever e amar são, voos de pássaros, os únicos caminhos, verdadeiramente, eternos.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - HISTÓRIAS DE MINHA MÃE: a curva da Velha Beta... Por Rosangela Marquezi



CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA/05


 HISTÓRIAS DE MINHA MÃE:

A CURVA DA VELHA BETA

Rosangela Marquezi



Minha mãe... Que ainda brinca!
Fonte: Arquivo pessoal (autoria de Carina Pelegrini)
Ressignificar momentos. Ando com esse pensamento me adentrando nos últimos tempos. Talvez seja o inverno indo embora e, com ele, o desejo de uma nova primavera. Talvez seja simplesmente a necessidade que nós, humanos seres, temos de nos reinventar a cada tempo... Talvez seja o desejo de entender na profundidade a famigerada frase de Heráclito de Éfeso, aquela que nos diz que nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio, pois já não é mais o mesmo rio e nem mais o mesmo homem...

Enfim, que dessa vontade de ressignificação, ando conversando muito com minha mãe, Maria Lucia, que atualmente tem 76 anos, e ouvindo suas histórias de tempos outros. Dentre essas histórias, compartilho a que intitulei “Curva da Velha Beta”. 

Conta minha mãe que quando era moça de seus 16, 17 anos adorava ir aos  bailes que aconteciam nas comunidades próximas ao sítio onde residia com seus pais e irmãos, no interior de Santa Catarina, em um pequeno vilarejo chamado Veadas (Hoje, Vila Kennedy). Naquela época, vivendo no interior e sem muitos recursos financeiros, iam a pé, chegando a fazer 6, 7 km de caminhada!

Próximo ao sítio onde ela morava havia uma curva mal-assombrada... Era a curva da Velha Beta, uma senhora idosa que residia próximo à estrada. Dizia a vizinhança que apareciam fantasmas por lá e, por isso, quase ninguém tinha coragem de por ela passar. Por isso, faziam um desvio, indo por um carreiro (caminho estreito, atalho) no meio da capoeira da estrada.

Na volta dos bailes, já alta madrugada, minha mãe e seu irmão mais velho, o Tio Miguel, que sempre a acompanhava nas diversões, iam à frente dos outros vizinhos que também tinham ido ao baile e amarravam alguns dos matinhos, de um lado a outro do carreiro, para que os que vinham atrás neles se enroscassem. Não chegavam a cair e nem se machucar, segundo ela, pois o mato arrebentava facilmente. Mas era uma diversão. Riam aos borbotões. Outros tempos.

Essa história me fez pensar que podemos fazer novos caminhos sempre que possível e, neles, ressignificar a nossa história. Vejamos: a curva da estrada é assombrada como a da Velha Beta? Abramos um carreiro, contornando a dificuldade. Chegaremos de qualquer jeito, afinal, como já ensinava D. Juan a Carlos Castañeda, “um caminho não é mais do que um caminho” e, talvez, até levemos menos tempo... A jornada é demorada e pesada? Inventemos brincadeiras e distrações no caminho tornando-a mais leve e suportável. Rir, segundo a sabedoria popular, ajuda a “desopilar o fígado”, fazendo com que tenhamos uma vida mais saudável.

Ressignificar é ato de empoderamento, visto que passamos a ter o controle sobre as narrativas de nossa vida. Vermos o passado sob novos olhares nos dá a oportunidade de atribuirmos novos significados a situações que, talvez, nos incomodam ou nos causam medo. Permite-nos transformar vivências em aprendizado.

Abraços,

Seja Feliz.

Rosangela Marquezi
Professora de formação e atuação, mas ouvinte de histórias por opção.


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DICAS DA SUSTÂNCIA
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1. Ouça “Vilarejo”, na voz de Marisa Monte. É uma canção linda que nos remete a um local que para cada um pode ser diferente... Qual o seu vilarejo?? Qual o seu lugar de recordação? A letra, de 2006, é de Marisa Monte, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e Pedro Baby (filho de Baby Consuelo e Pepeu Gomes).

“Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão”

2. Assista ao filme “O lado bom da vida” (2012), dirigido por David. O. Russel e estrelado por Jennifer Lawrence e Bradley Cooper. Lawrence, por sua atuação neste filme, recebeu o Oscar de Melhor Atriz. É baseado no livro homônimo do escritor norte-americano Matthew Quick. A história envolve duas personagens com problemas emocionais/psicológicos que decidem, juntos, lutar e aprender mais sobre como lidar com seus problemas. É uma história boa, que nos mostra que, como diz o personagem de Cooper, o Pat: “Quando as coisas são difíceis, você tem que tentar ver o lado bom da vida”.

3. Leia o clássico da literatura infantojuvenil, “Pollyanna”, da escritora norte-americana  Eleanor H. Porter. O livro conta a história de uma pequena órfã, Pollyanna, que vai morar com uma tia após a morte dos pais. Com o Jogo do Contente, que aprendeu com seu pai quando esperava ganhar uma boneca e acabou recebendo um par de muletinhas (eram doações que vinham à igreja onde o pai era missionário). Ele lhe ensinou a “ressignificar” o presente, pois a fez ver que poderia ficar contente por não precisar usar as muletas. Desse dia em diante, Pollyanna ressignifica todas as situações ruins que vão lhe acontecendo, vendo-as sob outros olhares. O livro foi escrito em 1913 e se tornou um clássico. Em 1915, a autora escreveu a continuação: Pollyanna Mulher.

A menina sorriu. 
– Pois é do jogo, não sabe?
– Do jogo? Que jogo? 
– O “Jogo do contente”, não conhece?
[...]
– Oh, o jogo é encontrar em tudo qualquer coisa para ficar alegre, seja lá o que for, explicou Pollyanna com toda a seriedade” (Porter, 1978, p. 30-31).

 

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Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski)

Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que acredita a literatura tem o poder de modificar vidas... Nas poucas horas vagas escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. Faz parte da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR, onde também é Professora de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017).

domingo, 11 de agosto de 2024

CONTAR A PRÓPRIA HISTÓRIA É UM ATO POLÍTICO, POR MARTA CORTEZÃO

                           Por Marta Cortezão

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
Pela primeira vez, na história das Olimpíadas, o Brasil levou uma delegação, em sua maioria, composta por atletas mulheres.  Um registro significativo dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, que tem suscitado profícua discussão sobre paridade de gênero pelo mundo. Até o momento que escrevo esse texto, são 14 medalhas olímpicas, sendo duas de ouro, 5 de prata e 7 de bronze. Nesta conta que não fecha, o destaque é das esportistas mulheres com 9 medalhas, mas o protagonismo é negro, assim como é negro o ouro do Brasil machista, misógino e racista.



Fonte: @artivistha - Thais Trindade
No contexto desta equação machismo + discurso de ódio + aversão às mulheres e a tudo que é relacionado ao universo feminino, temos como resultado a crescente violência contra as mulheres que multiplica o número de feminicídios e os casos de estupro. Os registros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam a brutal cifra de 83.988 casos registrados, em 2023. É assustador pensar que uma mulher é estuprada a cada 6 minutos e que as maiores vítimas do crime de estupro são meninas negras de até 13 anos.


No momento que escrevia o parágrafo anterior, lembrava do poema Não há oásis no deserto, da escritora gaúcha Cátia Castilho Simon, publicado na coletânea Se Essa Lua Fosse Nossa (Ser MulherArte Editorial, 2021):

Fonte: Pinterest

Não há oásis no deserto 

Hoje foi a vez da diarista e outras mais

O jornal anunciou o assassinato de cinco mulheres por seus homens

Outro dia uma juíza foi morta na frente das filhas

Em outros dias, horas, meses, anos,

Agora, agorinha

Por séculos dos séculos, amém e ai de nós

Elas têm se revezado como em uma corrida em meio ao deserto

Uma a uma acredita no oásis e sucumbe:

A bruxa

A frentista

A cabeleireira

A advogada

A professora

A escritora

A costureira

A médica

A manicure

E assim vão morrendo de morte matada, todas

Não há filhas nem filhos capazes de salvar daquele que se entende escarnecido, ainda que seja o pai

Era necessário esfaquear dezesseis vezes para que voltasse ao seu lugar

Sucumbir diante das filhas ou filhos é um morrer sem fim,

É cortar o osso e segurar a dor

Doca Street, o assassino de Angela Diniz, morreu aos 86 anos há poucos dias. Morreu de morte natural, 44 anos após o crime, como um justo que nunca foi.


Fonte: @artivistha - Thais Trindade
É nesse palco, onde a tragédia da vida real segue sendo representada initerruptamente, que os feitos olímpicos de Paris 2024 ganham relevância nas vozes das protagonistas atletas mulheres: “Mulherada, pretos e pretas é possível”, disse Beatriz Souza quando recebeu sua medalha de ouro; a ginasta Rebeca Andrade, após vitória reafirmou a sua felicidade em “representar a negritude”; Dayane Santos, após pódio de Simone Biles e Rebeca Andrade, não economizou palavras para falar desde esse lugar-de-dor-ausência da mulher negra, trazendo para a cena do discurso a questão necessária sobre a representatividade preta: “Ela representa todos. Mas a representatividade de 56% de uma nação, que é excluída, subjugada, que muitas vezes quando ganha é pertencente. [Mas] e quando não ganha? [...] Tomara que as pessoas reconheçam o valor dessas mulheres pretas”; ainda, para delírio dos racistas, a imagem preta, no pódio, da reverência de Simone Biles e Jordan Chiles à brasileira Rebeca Andrade correu o mundo, selando, com medalha de ouro, mais um capítulo histórico que marca o lugar de fala como um ato político de resistência, de luta e, especialmente, de pertencimento.

         

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
A importância destes eventos contraditórios é perceber que há um movimento de mulheres conscientes da vida fronteiriça que nos subjuga e nos maltrata, mulheres conscientes das lutas necessárias e que sabem do poder de transformação dos discursos e das ações e causas políticas, feministas, antirracistas que caminham na contramão de tudo o que representa o patriarcado. E não estamos sozinhas, pois como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Sueli Carneiro se une a Davis quando toma a palavra e diz, em primeira pessoa: “Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social”. A poeta ativista, feminista, Jeovânia P., também entra neste importante diálogo com o seu poema:

Falsa igualdade

Aqueles que pensam que o vírus é igualitário

Se enganam

Ele tem endereço certo para levar a morte

Os corpos estendidos na frente dos hospitais lotados

Sabem bem que eles são alvos de extermínio

Quem nada tem para comer

Com o corpo fraco

Com baixa imunidade

Sabe o quanto lhe cabe e é para si essa morte

Que ronda as cidades

São os pobres

São os pretos

Que ficam lançados no vazio do descaso

Que nem contabilizados são

Apenas restam mais um e um… corpo no chão

(fonte: https://revistaacrobata.com.br/anna-apolinario/poesia/4-poemas-de-jeovania-p/)

         

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
Contar a própria história é um ato político. Falar da repressão de nossos corpos é libertador, é uma potente ferramenta de luta feminista. É preciso nunca esquecer que o patriarcado se coloca como ordem e se propaga através da linguagem com sua eterna narrativa simbólica. O racismo, assim como todos os preconceitos, é um ato de fala, portanto, contradizer o patriarcado será a nossa canção monódica, no sentido de que é um canto triste, porém, uma Canção dos corpos imprescindível, como sugere a poeta macapaense Leacide Moura, a ser entoada por uma legião de bruxas-mulheres (e desejamos que também seja entoada por homens que se unam à causa) que se sublevam e que não se calam diante do projeto patriarcal que é silenciar mulheres. O objetivo será sempre problematizar para avançar nas conquistas e reconquistas. Será esta atitude que nos colocará no caminho de um Feminismo Humano, esse lugar do exercício linguístico como forma de resistência.

 

Canção dos corpos

 

Sob o luar

Ao longe

Ouço o uivo das lobas

Bruxas em círculo de irmandade entoam

Canções de liberdade

Entre as árvores

As estrelas brilham

Enquanto o patriarcado ataca                                      

Elas atiçam o fogo

Em danças circulares

Acordam ancestralidades

Declaram que seu corpo

Não tem proprietário                 

Num coro ritmado

Entoam

As canções dos corpos

Que falam.

          Somos mulheres sobreviventes de um sistema que oprime e mata. A nossa revolta é legítima e política porque, não só nos conecta com outras mulheres, mas com nossa própria essência. Que nos emancipemos do patriarcado, que nos autorizemos a dizer sem medo, a construir espaços para diálogos conscientes através de nossas lutas. 

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Cátia Castilho Simon é escritora, doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Publicações solo: Nos labirintos da realidade – um diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis (Prêmio UBE/RJ, 2014); Por que ler Clarice Lispector? (POA:TDA, 2017); Rastros de Estrela (contos), 2022; Não há oásis no deserto (poesia) – Venas Abiertas, 2023; Brigite – (infantil), ilustração Liana Tim, 2023. É coorganizadora do Digressões Clariceanas, desde 2021. Integra o Mulherio das Letras/RS, é vice-presidenta cultural da AGES, 2023/2024.


Jeovânia P. é escritora, professora, mestre em Filosofia. Nasceu em Natal/RN, vive em Bayeux/PB. Publicações: seis livros poesias, um de contos, e organizou nove coletâneas. Tem o selo e o canal no YouTube Literatura Feminina, onde desenvolve o projeto “Bom dia com literatura feminina!”. Faz parte da UBE/PB. É patrona da cadeira 27 da Academia Bayeuxsse de Ciências, Letras e Artes. Participou da XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.



Leacide Moura nasceu à meia noite, no meio do mundo, na lua nova, às margens do Rio Amazonas, em Macapá/AP, pelas mãos de parteira tradicional. É mãe, avó apaixonada de Maria e Arthur, professora, sindicalista, ativista da literatura, meio ambiente e empoderamento feminino. É da prosa e do verso, organiza obras e tem participação ativa na literatura nacional.

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