HISTÓRIA COLETIVA. / DE
MULHERES. / DE MENINAS.[1]
“Mulheres não são
pessoas no capitalismo, apenas corpos.”
(Silvia Federici, Folha
de S. Paulo-Uol, novembro,2023)
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A garota voltava da escola, falou com um desconhecido
e desapareceu. Mais uma vida ceifada. Foi encontrada em um terreno baldio,
pedaços de seu corpo noticiados em imagens desfocadas no jornal do meio-dia. A
mesa estava posta, quase nem houve tempo de assimilar tantas notícias...
Homem segue mulher na parada do ônibus. Ela retornava,
à noite, do emprego de funcionária do lar. Era o suposto ex-marido. Consta que
ela o havia denunciado por ameaças de morte. Morreu desacreditada e sem apoio
do Estado. Vítima da violência das mãos do feminicida, deixou duas crianças que
agora são órfãs de seu cuidado maternal. Os restos mortais da vítima, de 36
anos, foram encontrados calcinados em um lixão da cidade.
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Senhora de 65 anos vai a óbito ao cair do quinto andar.
Suspeitas de um relacionamento tóxico e suas consequências depressivas. Ela envolveu-se
com um rapaz pelas redes sociais. Ele foi ganhando sua confiança, também o
acesso à sua conta bancária, à sua casa, à sua vida. Enfim, um caso a ser
investigado, diz a polícia, meio desacreditada de encontrar uma prova cabal. Mas
há fortes indícios de suicídio...
Mulheres e crianças são as maiores vítimas da guerra. Deu
também nos noticiários, mas “deu”/bateu mais forte em minhas carnes. O que faço
com esta impotência em meu corpo? Com essa dor, faca afiada e fria da morte,
prestes a atravessar a jugular? Agora mesmo não tenho nem forças nem disposição
racional para continuar falando sobre este tema, mas o feminicídio grita em
todos os lados. Está escancarado nas janelas do mundo. É preciso sair da apatia
social que aliena mentes, é preciso enxergar, do contrário, nos tornamos
cúmplices e culpadas, porque nossa passividade tem implicações morais[3].
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Um corpo que é coletivo, mas que não nos pertence. A
essas mulheres, a essas meninas que vivem na mira da misoginia de uma sociedade
patriarcal que objetifica nossos corpos em prol do lucro e do capital. Em uma
sociedade onde não somos pessoas, apenas corpos. Apenas números na crescente lista
da vergonha que, a cada fração de segundo, pode ganhar mais uma vítima fatal. A
escritora Rosangela Marquezi, de Pato Branco, no poema Coletivo Corpo,
de seu livro (In)certas Escreveduras (Editora Medusa, 2023), faz uma abordagem
direta sobre este tema. Escancara nossas dores e agruras ao descrever o poema:
Coletivo Corpo
O corpo estava ali.
Nunca fora seu, era coletivo.
O pai mandara se cobrir.
O marido mandara se abrir.
E a ela ninguém ouviu.
E a ela ninguém sequer viu.
História coletiva.
De mulheres. De meninas.
Correntes que não se quebram.
Sinas que não se desfazem.
Seu corpo estava ali.
Nunca fora seu, nem agora.
Na mesa fria da necropsia.
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O pai, figura que representa a moral e os bons
costumes, ordena que a filha se resguarde, que se cobra, que se comporte como
uma mulher deve se comportar em uma sociedade patriarcal. O marido, proprietário
e beneficiário desse corpo, ordena que ela se abra, que sirva a seus instintos,
a seus desejos irrefreáveis. Tanto o pai quanto o marido – figuras de ordem – representam
a imposição das normas masculinas sobre este corpo individual feminino. A ela, o
corpo anônimo e invisibilizado, que jaz frio em uma mesa de necropsia, resta a
negação de seus desejos e sonhos pela sociedade patriarcal falocêntrica. Resta-lhe
a história da negligência de mulheres e meninas abandonadas à ausência da
própria voz, da própria existência.
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[1] Revista Voo Livre.
São Paulo. nº 46, pp. 48-53. Disponível em: https://revistavoolivre.com.br/2024/06/07/revista-voo-livre-vol-1-no-46-junho-de-2024/
. Acesso em: 28/03/2025.
[2] CUNHA,
Carolina. Feminicídio – Brasil é o 5º país em mortes violentas de mulheres no
mundo. Uol, 2025. Disponível em: Feminicídio: Brasil é o 5º país em
morte violentas de mulheres no mundo - UOL Educação . Acesso
em: 28/03/2025.
[3] TOKARCZUR, Olga. Escrever é muito perigoso – Ensaios e conferências. Gabriel Borowski (trad.). [livro digitalizado]. São Paulo: Editora Todavia, 2023, p. 57.
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Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski) |