terça-feira, 27 de agosto de 2024

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - HISTÓRIAS DE MINHA MÃE: a curva da Velha Beta... Por Rosangela Marquezi



CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA/05


 HISTÓRIAS DE MINHA MÃE:

A CURVA DA VELHA BETA

Rosangela Marquezi



Minha mãe... Que ainda brinca!
Fonte: Arquivo pessoal (autoria de Carina Pelegrini)
Ressignificar momentos. Ando com esse pensamento me adentrando nos últimos tempos. Talvez seja o inverno indo embora e, com ele, o desejo de uma nova primavera. Talvez seja simplesmente a necessidade que nós, humanos seres, temos de nos reinventar a cada tempo... Talvez seja o desejo de entender na profundidade a famigerada frase de Heráclito de Éfeso, aquela que nos diz que nenhum homem se banha duas vezes no mesmo rio, pois já não é mais o mesmo rio e nem mais o mesmo homem...

Enfim, que dessa vontade de ressignificação, ando conversando muito com minha mãe, Maria Lucia, que atualmente tem 76 anos, e ouvindo suas histórias de tempos outros. Dentre essas histórias, compartilho a que intitulei “Curva da Velha Beta”. 

Conta minha mãe que quando era moça de seus 16, 17 anos adorava ir aos  bailes que aconteciam nas comunidades próximas ao sítio onde residia com seus pais e irmãos, no interior de Santa Catarina, em um pequeno vilarejo chamado Veadas (Hoje, Vila Kennedy). Naquela época, vivendo no interior e sem muitos recursos financeiros, iam a pé, chegando a fazer 6, 7 km de caminhada!

Próximo ao sítio onde ela morava havia uma curva mal-assombrada... Era a curva da Velha Beta, uma senhora idosa que residia próximo à estrada. Dizia a vizinhança que apareciam fantasmas por lá e, por isso, quase ninguém tinha coragem de por ela passar. Por isso, faziam um desvio, indo por um carreiro (caminho estreito, atalho) no meio da capoeira da estrada.

Na volta dos bailes, já alta madrugada, minha mãe e seu irmão mais velho, o Tio Miguel, que sempre a acompanhava nas diversões, iam à frente dos outros vizinhos que também tinham ido ao baile e amarravam alguns dos matinhos, de um lado a outro do carreiro, para que os que vinham atrás neles se enroscassem. Não chegavam a cair e nem se machucar, segundo ela, pois o mato arrebentava facilmente. Mas era uma diversão. Riam aos borbotões. Outros tempos.

Essa história me fez pensar que podemos fazer novos caminhos sempre que possível e, neles, ressignificar a nossa história. Vejamos: a curva da estrada é assombrada como a da Velha Beta? Abramos um carreiro, contornando a dificuldade. Chegaremos de qualquer jeito, afinal, como já ensinava D. Juan a Carlos Castañeda, “um caminho não é mais do que um caminho” e, talvez, até levemos menos tempo... A jornada é demorada e pesada? Inventemos brincadeiras e distrações no caminho tornando-a mais leve e suportável. Rir, segundo a sabedoria popular, ajuda a “desopilar o fígado”, fazendo com que tenhamos uma vida mais saudável.

Ressignificar é ato de empoderamento, visto que passamos a ter o controle sobre as narrativas de nossa vida. Vermos o passado sob novos olhares nos dá a oportunidade de atribuirmos novos significados a situações que, talvez, nos incomodam ou nos causam medo. Permite-nos transformar vivências em aprendizado.

Abraços,

Seja Feliz.

Rosangela Marquezi
Professora de formação e atuação, mas ouvinte de histórias por opção.


--------------------------------
DICAS DA SUSTÂNCIA
--------------------------------

1. Ouça “Vilarejo”, na voz de Marisa Monte. É uma canção linda que nos remete a um local que para cada um pode ser diferente... Qual o seu vilarejo?? Qual o seu lugar de recordação? A letra, de 2006, é de Marisa Monte, Carlinhos Brown, Arnaldo Antunes e Pedro Baby (filho de Baby Consuelo e Pepeu Gomes).

“Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão”

2. Assista ao filme “O lado bom da vida” (2012), dirigido por David. O. Russel e estrelado por Jennifer Lawrence e Bradley Cooper. Lawrence, por sua atuação neste filme, recebeu o Oscar de Melhor Atriz. É baseado no livro homônimo do escritor norte-americano Matthew Quick. A história envolve duas personagens com problemas emocionais/psicológicos que decidem, juntos, lutar e aprender mais sobre como lidar com seus problemas. É uma história boa, que nos mostra que, como diz o personagem de Cooper, o Pat: “Quando as coisas são difíceis, você tem que tentar ver o lado bom da vida”.

3. Leia o clássico da literatura infantojuvenil, “Pollyanna”, da escritora norte-americana  Eleanor H. Porter. O livro conta a história de uma pequena órfã, Pollyanna, que vai morar com uma tia após a morte dos pais. Com o Jogo do Contente, que aprendeu com seu pai quando esperava ganhar uma boneca e acabou recebendo um par de muletinhas (eram doações que vinham à igreja onde o pai era missionário). Ele lhe ensinou a “ressignificar” o presente, pois a fez ver que poderia ficar contente por não precisar usar as muletas. Desse dia em diante, Pollyanna ressignifica todas as situações ruins que vão lhe acontecendo, vendo-as sob outros olhares. O livro foi escrito em 1913 e se tornou um clássico. Em 1915, a autora escreveu a continuação: Pollyanna Mulher.

A menina sorriu. 
– Pois é do jogo, não sabe?
– Do jogo? Que jogo? 
– O “Jogo do contente”, não conhece?
[...]
– Oh, o jogo é encontrar em tudo qualquer coisa para ficar alegre, seja lá o que for, explicou Pollyanna com toda a seriedade” (Porter, 1978, p. 30-31).

 

☆_____________________☆_____________________☆


Arquivo pessoal (autoria de Alan Winkoski)

Rosangela Marquezi é professora de formação e atuação que acredita a literatura tem o poder de modificar vidas... Nas poucas horas vagas escreve poemas, crônicas e contos e já participou de coletâneas e antologias no Brasil e também em Portugal. Faz parte da Academia de Letras e Artes de sua cidade, Pato Branco - PR, onde também é Professora de Literatura na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).

Sustância - personagem fictícia que define a escritora de crônicas que habita em mim, "a ânsia, a substância, a Sustância!" (Marquezi, 2017).

domingo, 11 de agosto de 2024

CONTAR A PRÓPRIA HISTÓRIA É UM ATO POLÍTICO, POR MARTA CORTEZÃO

                           Por Marta Cortezão

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
Pela primeira vez, na história das Olimpíadas, o Brasil levou uma delegação, em sua maioria, composta por atletas mulheres.  Um registro significativo dos Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, que tem suscitado profícua discussão sobre paridade de gênero pelo mundo. Até o momento que escrevo esse texto, são 14 medalhas olímpicas, sendo duas de ouro, 5 de prata e 7 de bronze. Nesta conta que não fecha, o destaque é das esportistas mulheres com 9 medalhas, mas o protagonismo é negro, assim como é negro o ouro do Brasil machista, misógino e racista.



Fonte: @artivistha - Thais Trindade
No contexto desta equação machismo + discurso de ódio + aversão às mulheres e a tudo que é relacionado ao universo feminino, temos como resultado a crescente violência contra as mulheres que multiplica o número de feminicídios e os casos de estupro. Os registros do Fórum Brasileiro de Segurança Pública revelam a brutal cifra de 83.988 casos registrados, em 2023. É assustador pensar que uma mulher é estuprada a cada 6 minutos e que as maiores vítimas do crime de estupro são meninas negras de até 13 anos.


No momento que escrevia o parágrafo anterior, lembrava do poema Não há oásis no deserto, da escritora gaúcha Cátia Castilho Simon, publicado na coletânea Se Essa Lua Fosse Nossa (Ser MulherArte Editorial, 2021):

Fonte: Pinterest

Não há oásis no deserto 

Hoje foi a vez da diarista e outras mais

O jornal anunciou o assassinato de cinco mulheres por seus homens

Outro dia uma juíza foi morta na frente das filhas

Em outros dias, horas, meses, anos,

Agora, agorinha

Por séculos dos séculos, amém e ai de nós

Elas têm se revezado como em uma corrida em meio ao deserto

Uma a uma acredita no oásis e sucumbe:

A bruxa

A frentista

A cabeleireira

A advogada

A professora

A escritora

A costureira

A médica

A manicure

E assim vão morrendo de morte matada, todas

Não há filhas nem filhos capazes de salvar daquele que se entende escarnecido, ainda que seja o pai

Era necessário esfaquear dezesseis vezes para que voltasse ao seu lugar

Sucumbir diante das filhas ou filhos é um morrer sem fim,

É cortar o osso e segurar a dor

Doca Street, o assassino de Angela Diniz, morreu aos 86 anos há poucos dias. Morreu de morte natural, 44 anos após o crime, como um justo que nunca foi.


Fonte: @artivistha - Thais Trindade
É nesse palco, onde a tragédia da vida real segue sendo representada initerruptamente, que os feitos olímpicos de Paris 2024 ganham relevância nas vozes das protagonistas atletas mulheres: “Mulherada, pretos e pretas é possível”, disse Beatriz Souza quando recebeu sua medalha de ouro; a ginasta Rebeca Andrade, após vitória reafirmou a sua felicidade em “representar a negritude”; Dayane Santos, após pódio de Simone Biles e Rebeca Andrade, não economizou palavras para falar desde esse lugar-de-dor-ausência da mulher negra, trazendo para a cena do discurso a questão necessária sobre a representatividade preta: “Ela representa todos. Mas a representatividade de 56% de uma nação, que é excluída, subjugada, que muitas vezes quando ganha é pertencente. [Mas] e quando não ganha? [...] Tomara que as pessoas reconheçam o valor dessas mulheres pretas”; ainda, para delírio dos racistas, a imagem preta, no pódio, da reverência de Simone Biles e Jordan Chiles à brasileira Rebeca Andrade correu o mundo, selando, com medalha de ouro, mais um capítulo histórico que marca o lugar de fala como um ato político de resistência, de luta e, especialmente, de pertencimento.

         

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
A importância destes eventos contraditórios é perceber que há um movimento de mulheres conscientes da vida fronteiriça que nos subjuga e nos maltrata, mulheres conscientes das lutas necessárias e que sabem do poder de transformação dos discursos e das ações e causas políticas, feministas, antirracistas que caminham na contramão de tudo o que representa o patriarcado. E não estamos sozinhas, pois como diz Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Sueli Carneiro se une a Davis quando toma a palavra e diz, em primeira pessoa: “Nós, mulheres negras, somos a vanguarda do movimento feminista nesse país; nós, povo negro, somos a vanguarda das lutas sociais deste país porque somos os que sempre ficaram para trás, aquelas e aqueles para os quais nunca houve um projeto real e efetivo de integração social”. A poeta ativista, feminista, Jeovânia P., também entra neste importante diálogo com o seu poema:

Falsa igualdade

Aqueles que pensam que o vírus é igualitário

Se enganam

Ele tem endereço certo para levar a morte

Os corpos estendidos na frente dos hospitais lotados

Sabem bem que eles são alvos de extermínio

Quem nada tem para comer

Com o corpo fraco

Com baixa imunidade

Sabe o quanto lhe cabe e é para si essa morte

Que ronda as cidades

São os pobres

São os pretos

Que ficam lançados no vazio do descaso

Que nem contabilizados são

Apenas restam mais um e um… corpo no chão

(fonte: https://revistaacrobata.com.br/anna-apolinario/poesia/4-poemas-de-jeovania-p/)

         

Fonte: @artivistha - Thais Trindade
Contar a própria história é um ato político. Falar da repressão de nossos corpos é libertador, é uma potente ferramenta de luta feminista. É preciso nunca esquecer que o patriarcado se coloca como ordem e se propaga através da linguagem com sua eterna narrativa simbólica. O racismo, assim como todos os preconceitos, é um ato de fala, portanto, contradizer o patriarcado será a nossa canção monódica, no sentido de que é um canto triste, porém, uma Canção dos corpos imprescindível, como sugere a poeta macapaense Leacide Moura, a ser entoada por uma legião de bruxas-mulheres (e desejamos que também seja entoada por homens que se unam à causa) que se sublevam e que não se calam diante do projeto patriarcal que é silenciar mulheres. O objetivo será sempre problematizar para avançar nas conquistas e reconquistas. Será esta atitude que nos colocará no caminho de um Feminismo Humano, esse lugar do exercício linguístico como forma de resistência.

 

Canção dos corpos

 

Sob o luar

Ao longe

Ouço o uivo das lobas

Bruxas em círculo de irmandade entoam

Canções de liberdade

Entre as árvores

As estrelas brilham

Enquanto o patriarcado ataca                                      

Elas atiçam o fogo

Em danças circulares

Acordam ancestralidades

Declaram que seu corpo

Não tem proprietário                 

Num coro ritmado

Entoam

As canções dos corpos

Que falam.

          Somos mulheres sobreviventes de um sistema que oprime e mata. A nossa revolta é legítima e política porque, não só nos conecta com outras mulheres, mas com nossa própria essência. Que nos emancipemos do patriarcado, que nos autorizemos a dizer sem medo, a construir espaços para diálogos conscientes através de nossas lutas. 

☆_____________________☆_____________________☆

Cátia Castilho Simon é escritora, doutora em estudos da literatura brasileira, portuguesa e luso-africanas/UFRGS. Publicações solo: Nos labirintos da realidade – um diálogo de Clarice Lispector com Machado de Assis (Prêmio UBE/RJ, 2014); Por que ler Clarice Lispector? (POA:TDA, 2017); Rastros de Estrela (contos), 2022; Não há oásis no deserto (poesia) – Venas Abiertas, 2023; Brigite – (infantil), ilustração Liana Tim, 2023. É coorganizadora do Digressões Clariceanas, desde 2021. Integra o Mulherio das Letras/RS, é vice-presidenta cultural da AGES, 2023/2024.


Jeovânia P. é escritora, professora, mestre em Filosofia. Nasceu em Natal/RN, vive em Bayeux/PB. Publicações: seis livros poesias, um de contos, e organizou nove coletâneas. Tem o selo e o canal no YouTube Literatura Feminina, onde desenvolve o projeto “Bom dia com literatura feminina!”. Faz parte da UBE/PB. É patrona da cadeira 27 da Academia Bayeuxsse de Ciências, Letras e Artes. Participou da XIV Bienal Internacional do Livro de Pernambuco.



Leacide Moura nasceu à meia noite, no meio do mundo, na lua nova, às margens do Rio Amazonas, em Macapá/AP, pelas mãos de parteira tradicional. É mãe, avó apaixonada de Maria e Arthur, professora, sindicalista, ativista da literatura, meio ambiente e empoderamento feminino. É da prosa e do verso, organiza obras e tem participação ativa na literatura nacional.

domingo, 21 de julho de 2024

ANIMAIS, CONTO DE SANDRA GODINHO

 

A N I M A I S

POR SANDRA GODINHO 

Imagem Pinterest
As vozes vinham de dentro das paredes e trabalhavam em uníssono; era preciso, para combater a fome e a sensação de vazio. As entranhas davam o tom e a cadência, tangendo a necessidade que, naquela casa, eram muitas. Bílis, vísceras, nervos e podridão, tudo desgastado pelo uso. As tábuas de madeira rangiam, no risco de se romperem. As dobradiças das janelas, enferrujadas, não obedeciam ao manuseio das mãos, não abriam nem fechavam. Também já não havia mãos. As que habitavam a casa há muito tinham se ido, antes que ela se precipitasse sobre os corpos, soterrando músculos e pelancas. Só restaram os ruídos e o estrago nas fendas.

As fendas eram muitas. Profundas. Algumas se preenchiam com raízes de árvores próximas, que avançavam sobre o local que mais parecia um túmulo. Por acaso não sabiam que, para cada função, havia uma madeira específica? Paxiúba para revestir assoalhos, caibros de andiroba para afastar os carapanãs, acariquara para os parapeitos e as varandas, louro vermelho para as paredes laterais, palha do buçu para a cobertura. Tivessem escolhido a madeira adequada, não estaríamos lá, nos banqueteando com os restos.

Imagem Pinterest
Aquela família ribeirinha resistia por obra de Deus ou do Diabo, só para entender o resto da sua existência. Nunca aprenderam que as árvores nos davam o mundo inteiro, a nós e a eles. As castanheiras forneciam os ouriços; os açaizeiros, o fruto, tão energético que punha todos de pé e em estado de espera, aguardando a farinha e o peixe. O fruto roxo saía da floresta e chegava ao porto ainda de madrugada, em paneiros ou rasas[1] de açaí, para ser comercializado em todo canto. Todos lá trabalhavam. O pai pescava o tambaqui, o menino colhia o açaí das árvores, a menina criava as galinhas e a mãe passava horas para produzir a farinha de macaxeira. Esse era o mundo inteiro, o mundo que conheciam, o que fazia explodir histórias em fúria lenta, sempre à noite e sob a luz dos candeeiros, conversando com os vizinhos e os compadres. Viviam bem até darem ouvidos a quem sempre foi surdo à natureza. Cederam tanto a esses rabos de conversa que, em pouco tempo, a vida degringolou, feito barranco de rio em época da vazante, quando os espaços de ar desmanchavam a terra.

Imagem Pinterest
É só descuidar do fogo da coivara e deixar o terreno arder um pouco mais pra botar pasto, dizia um. Umas cabeças de gado, só para começar, dizia outro. Se não der, o compadre passa a terra pra frente, que o que não falta na região é grileiro e garimpeiro, retrucava o outro, forasteiro. A região se encheu deles, insistiam que tinha muita empresa querendo tomar posse e facilitar a mineração. Foram tantas as ideias alimentadas pelas palavras dos outros que o pai viu seu futuro cintilar antecipado na planície. Um futuro enfeitiçado, onde a tudo botavam preço: água, terra e céu. Um lago azul no meio do verde valia milhões. Foi assim que o pai se esqueceu do rio, da mata, dos animais, dele mesmo e dos gestos de generosidade que ainda vicejava na família e naquele mundo de compadrio. As palavras martelaram, costurando muitos dias e noites na imaginação, em poderosa urdidura. Até que a família colocou as palavras em prática. Atearam fogo e energia, se empenharam a desbastar o que viam pela frente. Não notaram as chuvas se espaçarem, a terra ressecar, os rios murcharem. Dentro em pouco, atravessaram até a outra margem do seu mundo. O açaí começou a queimar no pé, sem força de florescer. Os rios e igarapés perderam a correnteza. Nem golfinho conseguia atravessar as barreiras do imponderável, morrendo na superfície dos rios e dos lagos; a mandioca desistiu de crescer, mergulhada no próprio enterro, debaixo da terra. Sem o milho, as galinhas morriam de fome, desgraçadas pelo destino.

Imagem Pinterest
Foram as primeiras a se rebelar depois que a generosidade deixou de existir entre eles. Os animais, como homens, se defendiam da fome, procurando outros caminhos. Cruzaram o sítio como se a família fosse a inimiga, bicando e debicando as mãos que encontraram pela frente antes de sumir pelos arbustos. Mãos que tentaram segurar a carne branca que ainda viam como sustento. De nervos expostos, sangrando, sem se conciliar ao sono, a família partiu, calando as corujas, os guaribas e os jacus, que deixaram de visitar o sítio.

Para nós, restaram as madeiras. Já não fazemos distinção de nenhuma delas, também nós mudamos com o novo clima; seguiremos abocanhando até a última farpa. No ano que vem, a gente não sabe como vai ser. Talvez tenhamos de aprender a nos alimentar de podridão, assim como os urubus.



[1] Cestos tecidos com fibras naturais

☆_____________________☆_____________________☆



Sandra Godinho nasceu em 1960 em São Paulo, é graduada e Mestre em Letras. Já participou de várias coletâneas e antologias de contos, sendo agraciada com alguns prêmios. É membro número 78 da AILB, Academia Internacional de Literatura Brasileira. 

terça-feira, 9 de julho de 2024

FRAGRÂNCIAS DE UM TEMPO, POR ELIZABETE NASCIMENTO

 

FRAGRÂNCIAS DE UM TEMPO

PAULINA MACIEL CASTRILLON: UMA VIDA DE POESIA E HISTÓRIA

                                                               

       Por Maria Elizabete Nascimento de Oliveira

 

 A cidade, como a história da vida, é sempre a possibilidade desses trajetos que são nossos percursos, destino, trajetória da alma. Ecléa Bosi (2003, p. 75)

 

Paulina Maciel Castrillon, uma mulher de garra e determinação, minha querida aluna na Educação de Jovens e Adultos (EJA), recentemente, a (re)encontrei pelas mãos de uma amiga, por meio do livro: Minhas recordações de Cáceres (1999), uma obra recheada de letras afetuosas sobre o seu lugar e a sua gente, parece que eu estava conversando com Paulina no horário dos intervalos, na então Escola Estadual Milton Marques Curvo, senhora afetuosa e que quase todos os dias me presenteava com uma guloseima ou fruta.  Nascida nessa pequena cidade do interior do Mato Grosso – Cáceres/MT, Paulina poetizou sua profunda admiração pela terra que a viu crescer. Em 2022, o mundo se despediu de Paulina, mas suas palavras poéticas e suas homenagens a terra e às pessoas que marcaram sua vida continuarão a ecoar como um legado imortal que, mesmo tímido e com pouca visibilidade já perdura por quase 25 anos.

As poesias de Paulina homenageiam os lugares e as pessoas que fizeram parte de sua história. Seu jardim não era apenas um espaço físico, mas um símbolo de crescimento e transformação: “no jardim tinha retreta / dando volta os namorados / que bela forma de amar / com muitas rosas do lado” (1999, p.11). “Recuperar a dimensão humana do espaço é um problema político dos mais urgentes” (Bosi, 2003, p. 76).

Em seus versos, a autora atribui vida às ruas da cidade, cada esquina contava uma história, e o transporte era mais do que um meio de locomoção; era uma ponte entre o passado e o presente, entre os sonhos e a realidade “o Etrúria fazia as viagens / de Corumbá para cá / Trazia mercadorias, / atravessando o pantanal” (1999, p. 15). A memória é o ponto focal da produção poética de Paulina: “[...] Naquele tempo em Cáceres / Só tínhamos uma balsa / Era o Geraldo quem atravessava o rio / trabalhando noite e dia / fazendo a travessia” (1999, p.15).

Paulina também dedicou suas palavras às primeiras indústrias que impulsionaram o desenvolvimento de sua cidade natal: “À Usina da Ressaca / fazia pinga e açúcar / tinha açúcar de potô / que era morena e fina / igualzinha a um pó” (1999, p. 17) acrescento: “A Descalvados era outra fazenda / fábrica de graxa, charque e sabão / ela foi naquela época // muito importante para a região” (1999, p. 17). Em suas poesias, essas indústrias eram comparadas a gigantes adormecidos que despertavam para trazer progresso e oportunidades para as pessoas do lugar. Os monumentos históricos, por sua vez, eram descritos como guardiões do tempo, testemunhas silenciosas das transformações que contribuíram na formação cultural da identidade local.

É importante compreender no contexto supramencionado que:

 

A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no espaço e no tempo, não arbitrariamente mas porque se relacionam através de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre ela incide o brilho de um significado coletivo. (Bosi, 2003, P. 31)

 

A primeira escola de sua cidade foi outro tema recorrente. Para Paulina, essa escola era um farol de sabedoria, um lugar onde as crianças começavam a trilhar seus caminhos e descobrir suas vocações. Os profissionais liberais e autônomos, como médicos, advogados, comerciantes e artesãos, eram celebrados como pilares da comunidade, cujas mãos e mentes construíam o futuro coletivo. “Ao professor Natalino / a quem eu peço licença / Dona Estela e outros / que foram grandes na história / e vão ficar na memória” (1999, p. 22) ou ainda, “[...] haviam as costureiras sob medidas / Branca da Rocha e Maria Maia / com máquinas sem motor / faziam tudo com muito amor” (1999, p. 23), complemento: “o famoso carpinteiro / trabalhando o ano inteiro / Em tudo: portas, janelas, móveis em geral / fazendo também funeral” (1999, p. 25).

Os eventos públicos eram momentos de união e celebração, onde a comunidade se reunia para compartilhar alegrias e tradições “os nossos pantaneiros / também eram violeiros / com sua viola e ganzá / rimava fazia versos / nas festas dos santos / tirava os biscoitos do altar” (1999, p. 51). As palavras poéticas de Paulina descrevem essas ocasiões como danças harmônicas, em que cada participante desempenhava um papel essencial na grande sinfonia da vida “mostrando a natureza / todo tempo trabalhou / para que as tradições deste lugar / não pudessem acabar”. (1999, p. 51). Os pássaros e as árvores surgem como símbolos de liberdade e continuidade, simbolicamente anunciam a conexão entre o ser humano e a natureza “As árvores da Praça Barão / são as grandes moradias / das andorinhas que aqui passeiam / todos os anos, alguns dias”  (1999, p. 45) “A Praça Barão do Rio Branco / É o grande cenário / Onde elas sobem e descem / fazendo o seu espetáculo” (1999, p.44).

A autora e também costureira, Paulina Maciel, tinha um profundo respeito pelo Pantanal, uma das maiores riquezas naturais da região em que nasceu. A fauna e a flora desse ecossistema único são descritas em suas poesias com apreço e reverência quase sagrada. Cada animal, cada planta era uma peça vital de um mosaico, onde a beleza e a harmonia da natureza se manifestavam para narrar a pacata cidade de Cáceres no interior de Mato Grosso, bem como, as relações que o lugar propiciava “Naquele tempo em Cáceres, / usava-se uns lampeõezinhos / pois as ruas eram escuras / conversávamos nos vizinhos” (1999, p. 13) ou ainda: “[...] quase todas as famílias eram ligadas, / por algum tipo de parentesco, / uns porque eram compadres, / outros por amizade” (1999, p. 13).

Paulina ressalta a importância da família. Para ela, a família era o alicerce de tudo, a raiz que sustentava sua existência e a fonte de seu amor e inspiração. Por meio de seus versos, expressa gratidão e admiração por cada membro de sua família ao reconhecer o papel fundamental que desempenharam em sua existência. Enfatizamos que:

 

O sonho, com efeito, não remete apenas à história individual, mas é igualmente a marca ancestral da espécie. É a expressão específica de um eu profundo que ultrapassa os limites da identidade oficial. Pode-se mesmo dizer que o sonho é o abandono total do princípio de identidade. Nele, graças a ele, cada um de nós ‘se despedaça’ e vive pequenas histórias múltiplas que o fazem participar de todas essas fantasias coletivas constitutivas da história humana. Fantasias cujos vestígios encontraremos nos contos e lendas de nossa infância, mas que estão na própria base do sentimento de pertencimento a um lugar e uma comunidade específicos. (Maffesoli, 109)

 

Paulina Maciel Castrillon partiu para outro plano em 2022, mas suas poesias continuam a florescer aqui no plano terrestre, nos corações daqueles que tiveram a sorte de conhecê-la ou de ler sua obra. Sua vida é um testemunho do poder transformador da educação e da capacidade humana de encontrar beleza e significado nas coisas simples e cotidianas. Suas palavras, carregadas lirismo vivencial, nos convidam para que todos nós olhemos com mais cuidado e amor para a terra que nos abriga e para as pessoas que fazem parte de nossa história, afinal “na realidade, não há percepção que não esteja impregnada de lembranças” (Bosi, 2003, p. 35).

A autora nos deixa uma importante contribuição ao poetizar sua vida, aponta à possibilidade de perceber que não importa quando começamos a aprender ou a criar, o importante é que nunca deixemos de florescer e de espalhar nossa luz pelo mundo. Eu, ironicamente, fui aluna da filha de Paulina Maciel na graduação na Universidade do Estado de Mato Grosso/UNEMAT e, posteriormente, tive a honra de ser professora de Paulina na Educação de Jovens e Adultos/atual EDIEB Milton Marques Curvo, muito mais aprendi que ensinei. Partilhei de histórias com essa senhorinha e tenho a impressão de que ouvi alguns desses poemas na sua voz-melodia, afirmo: ela teve luz própria e esses poemas reverberam o brilho e amorosidades impregnados em Paulina Maciel Castrillon!

 

 

REFERÊNCIAS

Bosi, Ecléa. O tempo da memória: Ensaios de Psicologia Social. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003.

Castrillon, Paulina Maciel. Minhas recordações de Cáceres. Cáceres/MT: Gráfica Laser Ltda: 1999.

Maffesoli, Michel. O ritmo da vida: variações sobre o imaginário pós-moderno. Rio de Janeiro: Record, 2007.

 

Paulina Maciel Castrillon – “Nossa casa era sempre muito alegre. Ela costurava e cantava... cozinhava e cantava... fazia doces de frutas e cantava... cuidava de suas roseiras e cantava... brilhava a casa e cantava. Sempre gostou muito de ler e escrever. Mesmo tendo a quarta série primária, publicou um livro, contendo poemas onde narra suas recordações de Cáceres” (Castrillon, Maritza Maciel/filha-(2) Facebook).


Maria Elizabete Nascimento de Oliveira - Doutora em Estudos Literários pela Universidade do Estado de Mato Grosso/Unemat, da tese publicou o livro: Sinfonia de Letras: Acordes Literários com Dunga Rodrigues (2021). Mestre em educação pela Universidade Federal de Mato Grosso/UFMT, com a pesquisa que originou o livro: Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos (2019). Também é autora dos livros de poemas: Asas do inaudível em asas de vaga-lume (2019) e Granada (2023). Acadêmica do curso em Tecnologia de Teatro, na Ênfase de Produção Cultural pela Unemat, em parceria com a MT Escola de Teatro.

sexta-feira, 31 de maio de 2024

LEIA MUITO, MARIA! NÃO ESTAMOS SOZINHAS, POR ELIZABETE NASCIMENTO


LEIA MUITO, MARIA! NÃO ESTAMOS SOZINHAS 

      Maria Elizabete Nascimento deOliveira[1]

Saímos de um estado que embora insatisfatório, embora esmagador, estava estruturado sobre certezas. Isso foi ontem. Até então ninguém duvidava do seu papel. Nem homens, nem muito menos mulheres. [...] Mas essa certeza nós a quebramos para poder sair do cercado.


                          [Marina Colasanti]

 

 

Apresentamos a obra - Chão Ancestral - de Margarida Montejano (2023), por intermédio de um recorte já anunciado no título dessa reflexão ao evocar o título de três poemas da autora. Ainda nesse viés, exibimos, na íntegra, essa tríade poética que ostenta a figura feminina nas suas diversas facetas e nos impulsionam às trilhas de emancipação e autoria de percursos.

 

LEIA MUITO

 

leia muito.

 

Leia marx

leia cristo

leia paulo freire

leia poesia!

 

Reflita, discute, estuda

dispa-te da venda

que te nutre a cegueira

 

e destrava

tua língua

tuas florestas

tuas matas

teus rios

teus bichos

 

resgate a ti deste lugar onde te calaram

(Montejano, 2023, p.49)

MARIA

 

tarde da noite Maria sai

enfrenta as ruas

os olhares de esgueio

o julgamento alheio

Maria sabe que a caminhada é longa

que há perigos à espreita

e, mesmo temendo, confia

endireita o tronco, respira fundo

floreia e segue

espanta o medo, segura a fé

enfrenta o mundo

sente na pele o preconceito, o machismo, a ignorância sente no corpo a sede,

a fome, o cansaço

Maria segue

Maria resiste

 

Maria vence.

(Montejano, 2023, p. 75)

NÃO ESTAMOS SOZINHAS

 

somos uma rede e em rede enredadas estamos

 

somos uma, somos muitas somos intocáveis

 

quando ferem a mim ferem elas

 

quando ferem elas ferem a mim

 

sou-somos um fio da rede e quando desfiadas, integramos outras

 

estamos “(entre)laçadas”.

(Montejano, 2023, p. 27)

 

O poema Leia muito traz a força da voz imperativa que pode ser interpretada como um apelo à leitura crítica e consciente que propõe a luta pela libertação pessoal e social por meio do conhecimento e da reflexão crítica. Composto por versos livres, sem rima ou métrica fixa, confere uma sensação de espontaneidade e urgência, onde a ausência de pontuação sugere um fluxo contínuo de pensamentos e de ideias.

O eu poemático evoca figuras icônicas como Marx, Cristo e Paulo Freire, além de “poesia”. Cada um desses nomes carrega uma simbologia de ideias e pensamentos que convidam à reflexão sobre diferentes aspectos da vida: política, espiritualidade, educação e a arte como expressão humana. Nos versos “Reflita, discute, estuda”, há um chamado à ação intelectual, onde os verbos no imperativo incitam o leitor a não ser passivo, mas a participar ativamente do processo de aprendizagem e questionamento do seu lugar no mundo.

Imagem Pinterest
A metáfora: “dispa-te da venda que te nutre a cegueira” insinua a necessidade de remover a ignorância imposta, que é nutrida pela falta de conhecimento ou pela aceitação passiva de informações, fato que fortalece a ideia de que essa venda mantém a cegueira e se constitui como um impedimento ao necessário entendimento e à liberdade.

Versos como: “destrava tua língua / tuas florestas / tuas matas / teus rios / teus bichos” podem ser interpretados como um chamado para se reconectar com a essência natural e original do ser humano ao contexto externo, conexão vista como parte do processo de libertação e autoconhecimento.

Já o último verso: “resgate a ti deste lugar onde te calaram” reforça a ideia de que a leitura e o conhecimento são ferramentas poderosas para fortalecer a própria voz e identidade, que podem ter sido silenciadas por forças externas ou internas ao longo do tempo. Assim, o poema é uma convocação à emancipação intelectual e pessoal por meio da leitura e do pensamento crítico, onde a inclusão de figuras históricas e literárias serve para ilustrar a diversidade de pensamentos que enriquecem a compreensão do leitor sobre o mundo e sobre si mesmo; pois ler e refletir são atos revolucionários que desatam as amarras da ignorância e da opressão, permitindo uma reconexão mais profunda com a própria essência e com o entorno natural.

O segundo poema, intitulado: Maria apresenta uma narrativa sobre a resistência e a perseverança de uma mulher chamada Maria. Trata-se de um poema escrito em versos livres, sem rima ou métrica regular em que a linguagem é simples e direta contribui na intensidade e na clareza da mensagem. A estrutura linear da narrativa poética acompanha a trajetória de Maria e cria um efeito de progressão e movimento que permeia seu cotidiano. O poema situa Maria em um momento específico do dia: “tarde da noite”, horário que sugere um contexto de vulnerabilidade e perigo. Maria “enfrenta as ruas / os olhares de esgueio / o julgamento alheio”, indica que sua jornada não é apenas física, mas também social e emocional. Apesar dos perigos e do julgamento, Maria continua: “mesmo temendo, confia / endireita o tronco, respira fundo”. Destaca-se nesses versos a coragem de Maria que enfrenta seus medos com determinação e com uma postura física que simboliza resistência.

Imagem Pinterest
Maria sente “na pele o preconceito, o machismo, a ignorância”. Esta tríade de opressões representa os desafios sociais que muitas mulheres enfrentam diariamente e que cada dia está mais evidenciado nas mídias e no contexto social. A menção ao “preconceito”, “machismo” e “ignorância” indica uma crítica social e um reconhecimento das lutas de gênero, no entanto, além das adversidades sociais, Maria também enfrenta dificuldades físicas: “sente no corpo a sede, / a fome, o cansaço”. Assim, destaca-se que a resistência de Maria é tanto física quanto emocional, ao mostrar sua capacidade de superar múltiplas adversidades. Nesse viés, a mulher quando fala, mesmo na voz de um eu poemático está, muitas vezes, a falar “de sua própria tessitura verbal, algo tão vivo, frágil e poderoso como a própria vida ali representada pela ficção”. (Coelho, 1993, p. 274).

O poema culmina com a afirmação de que “Maria segue / Maria resiste / Maria vence”. Este desfecho é uma celebração da força e da resistência de Maria que simboliza a superação de todas as mulheres que enfrentam desafios similares. Trata-se de uma ode à força e à resistência, especialmente daquelas que enfrentam preconceitos, machismo e outras formas de opressão. A figura de Maria é emblemática e representa a luta diária e a perseverança que muitas mulheres encarnam em suas vidas. A narrativa do poema é simples, mas não simplista porque destaca a trajetória de Maria desde a vulnerabilidade inicial até a superação. Cada verso acrescenta uma camada à compreensão do leitor sobre a experiência de Maria que culmina em um final que celebra a resiliência, a coragem e a resistência feminina e reconhece os desafios que enfrenta em sua trajetória cotidiana em busca de um processo evolutivo necessário e urgente. Evolução que como disse Nelly Novaes Coelho, “[...] podemos resumir como o embate dialético entre o eu e o outro, entre a unidade e a dispersão, entre o pensamento e a linguagem, ou em termos de forma poética, entre o ‘discurso’ e a ‘escritura’”. (Coelho, 1993, p. 60).

O terceiro poema: Não estamos sozinhas explora a ideia da coletividade e da interconexão entre mulheres ao destacar a solidariedade e a força que emergem da união. Escrito em versos livres, com uma estrutura compacta que reforça a ideia de união e interconexão, o texto traz ainda a ausência de pontuação tradicional, como pontos finais, fator que contribui para a fluidez da leitura e reflete a continuidade e a interdependência das experiências femininas.

Imagem Pinterest
Nos versos: “somos uma rede e em rede enredadas estamos” nos reportam imediatamente a metáfora central do poema: a rede que simboliza a conexão entre as mulheres e sugere que estão intrinsecamente ligadas, que suas vidas e experiências estão interconectadas. Em: “somos uma, somos muitas / somos intocáveis” há uma dualidade que destaca a individualidade de cada mulher, mas também a força coletiva que representam. O termo: “intocáveis” insinua uma força inquebrável quando estão unidas.

Já nos versos: “quando ferem a mim ferem elas / quando ferem elas ferem a mim” enfatiza a empatia e a solidariedade mútua; onde a dor de uma é sentida por todas, instigam a pensar em como as experiências individuais de sofrimento são compartilhadas e reconhecidas coletivamente. Em: “sou-somos um fio da rede e quando desfiadas, integramos outras” alude que mesmo quando uma mulher é prejudicada ou enfraquecida (“desfiada”), ela encontra força e apoio na rede, integrando-se em outras conexões e renovando-se na/pela coletividade.

O termo: “entrelaçadas” reforça a ideia de que as mulheres estão firmemente ligadas umas às outras. A forma como a palavra é apresentada — “(entre)laçadas” — sugere uma camada adicional de significado e enfatiza que tanto a união, quanto a complexidade das relações destacam a força da coletividade e a importância da solidariedade. A metáfora da rede é central para a compreensão das experiências femininas e simboliza a interconexão e a interdependência de suas lutas cotidianas.

A estrutura do poema, com versos curtos e a ausência de pontuação tradicional, contribui para a sensação de continuidade e interligação ao refletir a própria natureza das conexões descritas. Cada verso adiciona uma nova dimensão à metáfora da rede, de modo a aprofundar a compreensão do leitor sobre a complexidade e a força da união feminina. A ideia de que as mulheres estão unidas em uma rede de apoio mútuo é central. A solidariedade é apresentada como uma fonte de força e de resiliência ao mostrar que a dor e a luta de uma são compartilhadas por todas. Esses elementos reforçam a ideia de que quando uma mulher é afetada, a rede de apoio permite a renovação e a continuidade da luta, sobretudo, ao despontar a resiliência coletiva, mesmo diante das adversidades.

Ao enlaçarmos essa tríade poética destacamos os quão interconectados precisam estar os aspectos focais apresentados nestes textos líricos na existência da figura feminina, primeiro pela necessidade de estarmos conscientes da árdua tarefa de construirmos rupturas por entre esse sistema econômico, político e cultural que sempre privilegiou a casta masculina; segundo pela necessária batalha para conhecer a nós, mulheres, nesse percurso que até pouco tempo foi delineado por homens e terceiro pela consciência do lugar que estamos a erigir e da necessidade da feitura desse lugar ser realizado no coletivo, no entrelaçar de mãos pungentes e, também, femininas. Desse modo, reafirmamos “a eterna tarefa dos poetas: ‘pensar o mundo’ e nunca pactuar com qualquer forma de poder arbitrário que aprisione ou esmague a liberdade de pensar, falar e agir de todos” (Coelho, 1993, p. 95).

                                                                            

Referências                                                                                                 

COELHO, Nely Novaes. A literatura feminina no Brasil contemporâneo. São Paulo: Siciliano, 1993.

MONTEJANO, Margarida. Chão Ancestral. Fotografias de André Montejano. Curitiba: Eu-i, 2023.

XAVIER, Elódia. Tudo no feminino: a mulher e a narrativa brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1991.



[1] Doutora em Estudos Literários, atualmente, professora formadora do componente curricular de Língua Portuguesa na Diretoria Regional de Educação/DRE-Cáceres/MT.

☆_____________________☆_____________________☆


Margarida Montejano é natural de Mogi Guaçu, SP. Reside em Paulínia, SP. É doutora em Educação, funcionária pública municipal em Campinas. Poeta e escritora. Autora dos livros de contos "Fio de Prata", 1ª ed., Scenarium Livros Artesanais em 2022, reed. pela Ed. Siano em 2023 e, do livro de poemas “Chão Ancestral”, Ed. TAUP em 2023.


☆_____________________☆_____________________☆


Elizabete Nascimento é Doutora em Estudos Literários. Autora das obras: A Educação Ambiental e Manoel de Barros: diálogos poéticos (2012); Asas do Inaudível em Luzes de Vaga-lume (2019); Sinfonia de Letras (2021); Granada (2023). Identidade mais sublime nessa vida: vovó do Samuel e da Alícia; acredita que o amor é infinito.

Feminário Conexões, o blog que conecta você!

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA - HISTÓRIAS DE MINHA MÃE: a curva da Velha Beta... Por Rosangela Marquezi

CRÔNICAS DA SUSTÂNCIA /05   HISTÓRIAS DE MINHA MÃE: A CURVA DA VELHA BETA Rosangela Marquezi Minha mãe... Que ainda brinca! Fonte: Arquivo p...